sexta-feira, 3 de julho de 2020

Gerir atalhos: 45 anos da independência de Moçambique

  • Carlos Filho

Gerir atalhos: 45 anos da independência de Moçambique


    
Por Elísio Macamo - Professor Catedrático de Sociologia e Estudos Africanos na Universidade de Basileia (Suiça) - Convidado especial do Blog
A imagem mostra algo que de tão trivial passa despercebido. É um atalho. Usei-o hoje a caminho do serviço. Alguns metros mais adiante, existe uma passadeira para peões atravessarem a rua com segurança. A ausência total de relvado ali significa que o atalho é usado por muita gente e todos os dias. A imagem não é de Xai-Xai (Cidade ao sul de Moçambique). É da cidade da Basileia, na Suíça. Ela documenta algo que é universal nos humanos: não é a existência de regras sociais apenas que condiciona o comportamento humano. As normas sociais são também importantes. (In)felizmente, essas normas são muito mais flexíveis do que as regras. Isto quer dizer que quem tem autoridade numa sociedade e gostaria de impôr regras, tem que saber lidar com a flexibilidade das normas, pois estas respondem de forma mais imediata, e eficaz, às necessidades e anseios das pessoas.
Hoje Moz (Apelido dado a Moçambique pela população) celebra 45 anos de independência. Parabéns a todos nós. Uma coisa que tem sido constante é o paradigma de governação. Ele assenta na ideia de que governar é resolver os problemas do povo. Para além de sobrecarregar quem governa – e, no processo, criar todo o tipo de disfuncionalidades – o paradigma dá prioridade ao que quem governa julga ser o problema do povo. O resultado disso é produzir regras sociais potencialmente frágeis porque vão ser ignoradas pelas normas sociais que vão criar os seus atalhos. Cada atalho que surge em resposta (rebelde) às regras exige mais regras que produzem mais atalhos e por aí em diante. Chega-se ao ponto em que governar passa a ser a gestão dos atalhos. Com um pouco de imaginação, a gente pode ver aqui a trajectória do País desde 1975, sobretudo desde 1977¹. Governar tem sido a gestão da resistência às regras.
Depois de 45 anos a fazer essencialmente o mesmo, podíamos mudar da forma de bater (como se diz em Xangan), isto é de método. Podíamos adoptar um paradigma que consiste na ideia de que governar é criar condições para que o povo identifique e resolva os seus problemas. Revela mais respeito pelas pessoas, corresponde melhor ao desiderato de independência e, como vou argumentar logo à noite no meu comentário semanal na Mídia Mais TV, constitui a melhor interpretação do legado de Mondlane (Um dos fundadores e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique). Para além de toda a discussão sobre se ele foi liberal, socialista ou comunista, uma coisa que salta à vista quando se olha para a sua obra com atenção é que ele acreditava em processos, não em resultados. Por isso, a guerra em si não era necessariamente o elemento central da sua estratégia de luta pela independência, mas sim a formação das pessoas, a sua consciencialização e a promoção de consensos.
A mudança de paradigma impõe-se, sobretudo num momento em que a qualidade da liderança deixa a desejar. A ideia de governar não pode mais assentar na presciência e na omnisciência de quem governa. Nunca foi boa ideia e os problemas que todas as lideranças tiveram, desde Samora (Primeiro presidente de Moçambique 1975-1986) passando por Chissano (1986-2005) até Guebuza (2005-2015), é prova disso (Filipe Nyusi desde 2015 é o presidente). Do ponto de vista político isso implica, inclusivamente, que o principal desafio para os próximos 45 anos vai ser de limitar o poder político. Enquanto prevaleceu o paradigma da resolução dos problemas do povo, vingou a ideia de que o principal recurso de governação seria o exercício de poder absoluto. Com o novo paradigma – praticado por muitas sociedades democráticas – limitar o poder de quem governa deveria ser o principal recurso. Isso vai abrir espaço para mais deliberação.
Crise político-militar no país entre FRELIMO (Partido no poder desde a independência) e a RENAMO (Principal oposição) desde a transição democrática em 1994 (Figura 1: Treinamento militar da RENAMO em Gorongosa-Centro de Moçambique; Figura 2: Protestos em Maputo exigindo Paz de conflito armado iniciado em 2013; Figura 3: Reuniões para acordo de paz entre representantes da FRELIMO e RENAMO firmado em Agosto/2014)

     Um efeito secundário, mas importante, da mudança de paradigma vai ser de cultivar nos governantes – e seus vigilantes oficiosos – o respeito pela opinião crítica. Boa parte da nossa intolerância crítica vem da cultura de presciência e omnisciência que marcou a guinada autoritária logo a seguir à independência. Se o governante sabe tudo e de antemão, quem critica só pode ser um maluquinho, na melhor das hipóteses, e inimigo da pátria, na pior.
Sei lá. 

¹Referência ao início da Guerra civil em Moçambique que durou oficialmente até 1992. Quer entender melhor o contexto dela e outros conflitos ocorridos? Acompanhe o nosso blog.

Referências:

Imagens:

- Figura 1 e 2: Acervo pessoal do autor.
- Figura 3 (Eduardo Mondlane e Samora Machel em guerrilha): https://vermelho.org.br/2020/06/18/eduardo-mondlane-100-anos-do-heroi-mocambicano/
Figura 4 (Colagem): https://www.dw.com/pt-002/doze-momentos-chave-do-conflito-entre-a-renamo-e-o-governo-de-mo%C3%A7ambique/a-17822725

Bibliográfica:

- MACAMO, Elísio (2016). Sociologia prática – como alguns sociólogos pensam. Imprensa Universitária. Maputo.
- MACAMO, Elísio (2017). Sociologia prática – como alguns sociólogos resolvem problemas analíticos. Imprensa Universitária. Maputo.
- MACAMO, Elísio. Cultura política e cidadania: Uma relação conflituosa. Desafios para Moçambique. IESE, 2014.
- MACAMO, Elísio. A transição política em Moçambique. Portugal: CEA/ISCTE.
- MACAMO, Elísio. “A nação moçambicana como comunidade de destino”IN: Lusotopie, 1995.

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