domingo, 3 de maio de 2020

A falsificação da história por um historiador


Estamos diante de um livro, escrito por um historiador [REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundosSão Paulo: Companhia das Letras, 2014], que poderia ser usado em sala de aula de um curso de História como modelo para os estudantes do que não deve ser um trabalho de historiador. Para E. Hobsbawm [HOBSBAWM, Eric. Sobre a História; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.286-287], o historiador deve ter um compromisso com a evidência e, portanto, escrever uma História não só apoiada em documentos como também baseada na comparação do maior número possível de fontes documentais que lhe permitam obter os elementos necessários para uma aproximação confiável dessa evidência. Caso contrário, o historiador ficará sujeito a reproduzir e difundir informações falsas, assim como interpretações errôneas e parciais da realidade que pretende retratar.
Nada disso é considerado por D. A. Reis. No seu livro, não se apresentam as fontes documentais das afirmações veiculadas. Em notas, presentes no final da obra, são citados livros ou arquivos de maneira genérica (por exemplo, “Fundo PCB no Arquivo da Internacional Comunista”, no qual existem milhares de documentos), deixando, portanto, o leitor privado da possibilidade de consultar o documento ao qual o autor se refere. Dessa forma, o leitor é induzido a aceitar como verdades indiscutíveis afirmações cuja origem dificilmente poderia ser comprovada.
Tal metodologia adotada por D. A. Reis, marcada pela incompetência e a irresponsabilidade do pesquisador, contribui para que nos encontremos diante de um texto repleto de erros factuais e de informações falsas, assim como de análises supostamente psicológicas de Prestes e dos demais personagens retratados no livro, embora não conste que o autor possua formação de psicólogo.
Entre inúmeros erros, constantes da obra de D. A. Reis, para citar apenas alguns – se fossem listados todos, seria necessário escrever outro livro –, pode-se apontar, por exemplo, o de antecipar o episódio da campanha da “Reação Republicana” de Nilo Peçanha de 1921-1922 para o ano de 1919 (p. 26), quando foi eleito presidente da República Epitácio Pessoa. Outro exemplo: o autor afirma que os dirigentes comunistas
Ramiro Luchesi e Fragmon Carlos Borges foram assassinados (p. 347), no início dos anos 1970, quando na realidade faleceram de morte natural; da mesma maneira, escreve que o general Miguel Costa já teria falecido em março de 1958 (p.279), sem indicar quando, o que só veio a ocorrer em dezembro de 1959; também afirma que, em março de 1990, entre as quatro irmãs de Prestes, só Lygia restara viva (p. 480), enquanto, na realidade, Lúcia faleceu em 1996 e Eloiza em 1998. Em diversos pontos da obra, o autor cita documentos constantes dos anexos no livro A Coluna Prestes, de A. L. Prestes, mas a referência incluída na bibliografia é de outro livro da mesma autora (Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes).
Em diversos momentos, D. A. Reis, que se considera entendido nas obras dos clássicos do marxismo, ao abordar a luta constante de Prestes tanto contra o oportunismo de direita quanto contra o oportunismo de esquerda, lhe atribui posições centristas (p. 330, 333, 358, 437), revelando desconhecimento dessa temática no marcos da teoria marxista. Segundo tal interpretação, V. I. Lenin, que sempre combateu os desvios de esquerda e de direita no seio dos movimentos socialistas e comunistas, teria sido um político de centro…
No que se refere às legendas das fotos reproduzidas no livro, verifica-se que inúmeras estão erradas: o tenente Victório Caneppa, carcereiro de Prestes (à época diretor da Casa de Correção), é apresentado como sendo o diplomata Orlando Leite Ribeiro, amigo de Prestes; a foto da formatura de Prestes no Colégio Militar (aos 18 anos) figura como se fosse da formatura da Escola Militar (aos 22 anos); as fotos de Anita, filha de Prestes, não correspondem às datas que lhes são atribuídas; o retrato da mãe de Prestes, tirado em Londres, em 1936, é atribuído ao período do exílio no México; etc.
Estamos diante de um texto eivado de fofocas, mexericos, intrigas e mentiras, em que se reproduzem as invencionices da viúva de Prestes, assim como de antigos dirigentes do PCB e de comandantes da Coluna Prestes, que viraram inimigos de Prestes. Este foi o caso de João Alberto Lins de Barros, autor de memórias publicadas três décadas após a Marcha, em que revela ressentimentos por seu antigo comandante haver se tornado comunista. Da mesma maneira, vários ex-dirigentes do PCB, em depoimentos prestados ao autor do livro, recorrem à falsificação dos fatos para justificar seus ressentimentos por Prestes ter rompido, em 1980, com a direção do partido da qual faziam parte.
Trata-se de um livro anticomunista, cujo objetivo é a desqualificação de Prestes, da sua mãe, de suas irmãs e também da sua esposa, Olga Benario Prestes; a desqualificação dos comunistas em geral. O autor tem a canalhice de tentar desmoralizar minha mãe, ao afirmar que ela teria abandonado um filho em Moscou (p.171, 205, 495), como se Olga fosse capaz de semelhante gesto. Os documentos citados – e pior ainda, o autor não cita documento algum, mas apenas o “Fundo PCB no AIC” – não são verdadeiros, pois conheço a documentação da Internacional Comunista, inclusive a pasta referente a Olga. Se alguém, em algum lugar, afirmou tal coisa a respeito de Olga, é mentira; conheci muitos amigos e amigas da minha mãe da época em que ela viveu em Moscou e a afirmação do autor é mentirosa.
O anticomunismo, disfarçado sob a capa de uma suposta objetividade histórica, é revelado a cada página da obra de D. A. Reis, tanto através das numerosas informações falsas que divulga quanto da repetição de juízos de valor questionáveis. Assim, a adoção por Prestes de posições políticas em que, incompreendido, ficou só, e as derrotas, enfrentadas por ele e pelos comunistas durante sua longa vida, seriam episódios desmerecedores da sua trajetória como homem público e revolucionário, que se empenhou na conquista de um mundo sem explorados e exploradores, sem oprimidos e opressores.
Ao rebater os juízos de valor adotados por D. A. Reis, vale lembrar William Morris, o revolucionário inglês do final do século XIX, cuja biografia constitui o primeiro trabalho importante de E. P. Thompson [THOMPSON, E.P. William Morris; romantic to revolutionaryLondres: Merlin Press, 1977]. Conforme foi assinalado por Josep Fontana, W. Morris, em 1887, “ao comemorar uma dessas grandes derrotas coletivas”, escreveu:
A Comuna de Paris não é senão um elo na luta que teve lugar ao longo da história dos oprimidos contra os opressores; e, sem todas as derrotas do passado, não teríamos a esperança de uma vitória final. [MORRIS, William. Why we celebrate the Commune of Paris. Commonweal, 3, n. 62, p. 89-90, Mars 1887, apud FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.490]
Também Paul Eluard, o poeta da Resistência francesa, pronunciou-se a respeito das derrotas:
Ainda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único momento de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros. [ELUARD, Paul. Une leçon de morale, prefácio, em Ouvres complètes. Paris: Gallimard, 1984. II, p. 304, apud FONTANA, Josep. Obra citada, p. 490]
Embora os intelectuais a serviço dos interesses dominantes, comprometidos com a preservação do sistema capitalista, como é o caso de D. A. Reis, empreendam todo tipo de esforços para desmoralizar e destruir a imagem de lutadores pelas causas populares, como Luiz Carlos Prestes e Olga Benario Prestes, não o conseguirão, desde que as forças democráticas e progressistas se mantenham alertas e atuantes na preservação do legado revolucionário desses homens e mulheres que deram a vida por um futuro de justiça social e democracia para toda a humanidade.
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Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br)

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