Memória
| Gungunhana
UM HERÓI PARA MOÇAMBIQUE
GRANDE REPORTAGEM
190, 28 de Agosto de 2004
Quarenta anos depois do início da luta armada pela independência moçambicana (1964), o país olha para o passado à procura de mitos. Das profundezas da História emerge o nome de Gungunhana, o mais poderoso régulo do Ultramar português, preso por Mouzinho de Albuquerque em 1895. Neto do temível Manukuse, outro ícone da resistência à ocupação europeia no século XIX, «Ngungunhane» nasceu na mesma província que Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim Chissano, os três líderes históricos da Frelimo: Gaza. Um punhado da terra do cemitério onde foi sepultado jaz na Fortaleza de Maputo. Os seus ossos estão para sempre perdidos em solo português, na lava da ilha Terceira, arquipélago dos Açores.
Aos treze dias de Março do ano da Graça de mil oitocentos e noventa e seis, Lisboa explode em festa. O África vomita os seus fumos céu acima, dezenas de embarcações correm sem destino no Tejo, a multidão invade o Paço em delírio. Num minúsculo pavilhão a estibordo do navio estão os últimos troféus das guerras africanas da monarquia: cinco homens e dez mulheres angunes, amontoando-se sombrios sobre os beliches nauseabundos da clausura e do abandono. Gungunhana, deitado sem glória numa esteira, tem a cara coberta. Quando a destapam, ergue-se com susto, distribui o olhar desconfiado, muito negro, e volta a cobrir o rosto com as mãos. É alto como só um chefe tribal, exibe a testa ampla dos grandes líderes, mas a sua imagem não tem agora a altivez que tanto impressionara Mouzinho de Albuquerque dois meses e meio antes, no dia do assalto a Chaimite.
«Como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior número e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição», conta o Diário de Notícias do dia seguinte, elogiando os «valentes expedicionários» de Mouzinho. E, de repente, o «leão de Gaza» rebenta num pranto inesperado. «Digam-me o que querem de mim. De que vos sirvo eu? Eu morro se não voltar a ver as minhas terras!», grita. Em desespero, pede clemência, oferece a fortuna em troco da libertação, chora muito – chora e implora pela primeira das muitas vezes que chorará e implorará até morrer em Angra do Heroísmo, baptizado, alfabetizado e alcoólico, quase onze anos depois.
Ao longo de décadas os compêndios europeus hão-de recordar o episódio como um ícone da subjugação do negro inferior. Um epílogo feliz para a mais longa e sofrida campanha portuguesa desde que o Mestre de Avis comandara em triunfo a expedição a Ceuta, havia cinco séculos. Durante os três meses que permanece internado no forte de Monsanto, como durante os mais de dez anos que viverá desterrado nos Açores, ou as quase oito décadas que África terá ainda de esperar pela libertação, Gungunhana, filho de Muzila e neto de Manukuse, celebrizado como o mais poderoso e sanguinário régulo de todo o Ultramar português, há-de emprestar o seu nome como pretexto para as mesmas chacinas, os mesmos saques e as mesmas mentiras que tanto apreciava, apenas protagonizados agora pelos homens que mais odiava e temia.
Só depois a História olhará para ele a sério: só depois Mudungazi, o homem que intitularam «o leão de Gaza» como tributo à sua crueldade – o mesmo que a si próprio chamara Ngungunhane («Gungunhana», segundo a ortografia colonialista) para imortalizar os seus feitos «terríveis» e «invencíveis» – será submetido ao rigor da investigação histórica. E então, uma dúvida emerge: quem é o verdadeiro Gungunhana: um preto sanguinário que os portugueses subjugaram ou um imperador justo que os brancos destruíram?
Em 1953, o filme Chaimite, de Jorge Brum do Canto, defendia a primeira versão em prol da propaganda colonialista. Em 1995, Joaquim Chissano celebrou em Chaimite e Coolela os cem anos da resistência do império angune e inaugurou em Mandlakazi um busto do régulo, na tentativa de o transformar numa referência nacional. «Ele é um dos nossos heróis», sublinha hoje Américo Pinto, adido cultural da embaixada moçambicana em Lisboa. «O drama é que Moçambique precisa de heróis”, escreve em 1995 Nélson Saúte, romancista moçambicano, num artigo no jornal Público em que cita vários intelectuais com a mesma opinião. E a verdade é que o busto de Mandlakazi acabou vandalizado apenas três dias depois, alegadamente por elementos da etnia rival chope, muito representada na vila.
«Ngungunyana», como hoje lhe chamam os moçambicanos, continua por isso um mistério: ele chorou de medo em Lisboa, sim, mas também havia esmagado cruelmente todos os que se lhe tinham oposto no passado – e entre eles contavam-se os antepassados de uma grande parte dos actuais moçambicanos. Como compreender uma figura tão fascinantemente contraditória?
Para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), nunca houve dúvidas: Gungunhana foi e é um herói. Quando em 1969 Samora Machel tomou o lugar de Eduardo Mondlane como líder do movimento, foi ao nome do imperador de Gaza que os partidários da unidade nacional moçambicana foram buscar forças para relançar a campanha da independência. Mondlane, o homem que iniciara o processo, tinha sido morto com a conivência de alguns condiscípulos – e no seu lugar teria, portanto, de emergir um líder forte, capaz de estimular a entrega e dissuadir a traição, tarefa para a qual um simples ex-auxiliar de enfermagem, como Machel, não parecia talhado. O boato de que o novo dirigente era um parente distante de «Ngungunhane», por via de um avô guerreiro chamado Maghivelari, foi o mote ideal – depois, o voluntarismo de Samora e a marcha dos tempos fizeram o resto. A 25 de Junho de 1975, pouco mais de uma década após o início da luta armada pela libertação, sobre a qual passam em 2004 quarenta anos, a independência do novo país é formalmente proclamada. Para quase todos os efeitos, o «leão de Gaza» era um símbolo de triunfo.
Mas não para todos os moçambicanos. Três anos depois das insinuações da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, na oposição) sobre novos massacres executados pela Frelimo, que ameaçaram colocar em causa o acordo de paz assinado em Roma por Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, em 1992, os partidários de Dhlakama continuam a contestar o facto de tanto Eduardo Mondlane (nascido em Manjacaze, em 1920), fundador do partido no poder, como Samora Machel (Chilembe, 1933) e Joaquim Chissano (Malehice, 1939), seus sucessores e primeiros Presidentes da República, serem todos de etnia changana – que provém de Sochangane, nome anterior de Manukuse – e oriundos da província de Gaza.
Ao mesmo tempo, os ossos de Gungunhana, solicitados por Maputo em 1983, continuam perdidos na terra de lava dos Açores, algures numa vala comum do cemitério da Conceição, em Angra do Heroísmo, misturados com os restos mortais de inúmeros anónimos. Muitos não o aceitam como herói até que regresse a casa. E é como se faltasse ainda escrever uma linha da História – como se um verso permanecesse em branco, à espera do futuro, tal como diz o poema.
Samora Machel pediu a devolução dos ossos do rei de Gaza pouco antes de uma visita oficial a Portugal, em Outubro de 1983. Eram os anos de rescaldo da mentalidade colonialista, o momento de enterrar para sempre as diferenças entre brancos e pretos, e tanto o presidente de Moçambique como o seu homólogo português, Ramalho Eanes, esforçaram-se por sublinhar o muito que unia os dois países, mais do que aquilo que os distanciava. Um dos momentos mais simbólicos da visita foi precisamente a entrega ao presidente moçambicano de um pote de cerâmica contendo aquilo que seriam as cinzas das ossadas Gungunhana. Para incutir maior solenidade ao regresso a casa do chefe angune – também dito «vátua», mas por engano –, Machel pediu que Portugal conservasse por mais algum tempo os restos mortais do imperador, de forma a que o Estado moçambicano pudesse preparar uma cerimónia de transladação condigna. E a urna é então depositada na capela do Palácio das Necessidades, em Lisboa, onde permanecerá durante quase dois anos.
Gungunhana despede-se finalmente de Portugal a 14 de Junho de 1985, numa sessão solene a que assistiram os dois chefes de Estado e o então presidente do Governo Regional dos Açores, Mota Amaral, bem como oficiais da Marinha e do Exército portugueses. A urna preparada para receber as ossadas é uma obra de arte: um caixão de jambirre e chanfuta (madeiras moçambicanas), com dois metros de comprimento, 75 centímetros de altura, 225 quilos de peso e adornos com baixos relevos do escultor Paulo Come. Quando no dia seguinte aterra em Maputo contendo os ossos do herói, o DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique é recebido pelos cânticos de alegria de centenas de pessoas, num cortejo que percorre as Avenidas de Angola e Eduardo Mondlane, rumo ao Salão Nobre do Conselho Executivo. É aí que ficarão os restos de Gungunhana até serem definitivamente instalados na Fortaleza de Maputo, na capela de Nossa Senhora da Conceição, a que depressa se subtrai a principal imagem da Virgem.
A revelação de que o pote de cerâmica entregue a Samora Machel continha apenas terra do cemitério da Conceição surge logo a seguir, nas parangonas dos jornais portugueses. Moçambique opta primeiro pelo silêncio, mas o assunto será recuperado com regularidade ao longo dos quinze anos seguintes, nomeadamente quando, em 1995, se assinala o centenário da prisão do régulo africano. Mas Maria da Conceição Vilhena, estudiosa do Império de Gaza e biógrafa de Gungunhana, explica no seu Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano, publicado em 1999, que a impossibilidade de localizar os ossos do chefe angune sempre fora do conhecimento de Maputo e que, portanto, o punhado de terra fora aceite como um símbolo.
O livro cita um ofício redigido pelo então Ministro da República para os Açores, Conceição e Silva, em que se dá conta de que as ossadas são irrecuperáveis, e relata mesmo um episódio em que Mota Amaral solicita a devolução da terra do cemitério caso Moçambique decida recusá-la, alegando que «às cinzas dos mortos tributam os Açorianos um profundo respeito». Mas em 1998, quando o semanário Expresso retoma o tema, o Governo moçambicano anuncia a criação de uma Comissão de Inquérito, presidida pelo ministro da Cultura Mateus Kapupha, para apurar a autenticidade das ossadas.
Hoje, cinco anos passados, a Comissão de Inquérito continua com o «dossier», sem ter ainda apresentado quaisquer resultados. «O trabalho prossegue», garante Américo Pinto. Investigadores açorianos especializados no fenómeno Gungunhana garantem nunca terem sido contactados para qualquer esclarecimento ou ajuda nas investigações, bem como nunca terem sabido da deslocação de qualquer delegação moçambicana a Angra do Heroísmo. A maioria dos jornalistas de Maputo assegura que, tanto quanto lhe diz respeito, o assunto morreu. Mas, enquanto os resultados da comissão não forem oficializados, dificilmente a alma de Mudungazi descansará em paz – dificilmente se instalará em definitivo nas margens do rio Limpopo, entre os espíritos que um dia ofereceram ao exército angune a magia e a força para resistir durante 75 anos à pressão de portugueses, ingleses e alemães.
Fundado por um ramo zulu fugido à guerra que alastrava a Sul, o reino de Gaza sobreviveu à cobiça europeia durante mais de sete décadas. Quando Gungunhana foi preso por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, em 1895, parte do seu exército ainda conquistava terreno aos tsongas, aos chopes, aos vandaus e aos bitongas, empurrados sucessivamente para Norte e fugindo a todo o custo ao confronto com os métodos carniceiros e esclavagistas dos angunes. No seu esplendor, o império de Gaza espraiava-se do rio Icomáti à margem esquerda do Zambeze, do oceano Índico ao curso superior do rio Save. Era o segundo maior reino africano do século XIX, um território que, no mapa actual, ocuparia mais de metade de Moçambique e um bom pedaço do Zimbabué, entrando ainda pela África do Sul. Há cem anos, tinha uma população entre os 500 mil e os dois milhões de habitantes.
A história da dinastia de Manukuse é a história da traição, da luta uterina pelo poder, do assassinato a sangue frio. Quando o todo-poderoso primeiro rei de Gaza morre, em 1858, a sua sucessão é disputada durante cinco anos pelos dois filhos mais velhos, Mawewe e Muzila. As divergências sucessórias nasciam da incompatibilidade entre a lei zulu e a lei angune propriamente dita, e dessa incompatibilidade há-de resultar mais tarde o mesmo tipo de disputa para a segunda sucessão. No primeiro caso, Mawewe é empossado, mas faz tudo por provocar a ira de portugueses e boers, que ajudarão Muzila a usurpar-lhe o trono após uma sangrenta guerra civil. No segundo, depois da morte de Muzila, Mudungazi mata o irmão primogénito, Mefamane, e obriga outros três a fugir para o Transvaal, de forma a garantir o poder. É aí que adopta o nome de «Ngungunhane».
O reinado do «leão de Gaza» foi marcado pela frieza sanguinária com que o «kraal» (a corte) tratava os povos vassalos e pela habilidade política com que o rei se relacionava com as potências europeias. De certa forma, Gungunhana foi protagonista numa luta tribal, mas apenas figurante numa disputa maior do que ele, muito maior do que o próprio continente negro. Enquanto Portugal e Inglaterra lutavam pelo domínio da África Austral, o seu ouro e os seus diamantes, discutindo o «Mapa Cor-de-Rosa» português e a intenção inglesa de ligar o Cairo ao Cabo, Gaza foi jogando numa política de sucessivas alianças com Lisboa ou com Londres, com Londres ou com Lisboa, na convicção de que as divergências europeias eram a sua maior força. Aquando do Ultimato inglês de 1890, imediatamente aceite por Portugal e transformado em tratado no ano seguinte, Gungunhana percebe que começa a perder margem de manobra. Mas ainda joga um último trunfo, e desse trunfo há-de arrepender-se até ao fim: em 1894 dá guarida a Mamatibejana (ou Zixaxa) e Amgundjuana, dois dos régulos tsongas que haviam assaltado as posições portuguesas em Lourenço Marques. E não mais deixa de ter o exército português à perna.
Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque eram então os «nobres representantes da civilização na luta contra a barbárie», como um dia escreveu o primeiro. «Tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito», conta então o governador António Enes, citando ordens do Governo de Lisboa. Por essa altura, os jornais portugueses atribuem ao imperador angune epítetos como «sanguinário», «carniceiro» ou, mais prosaicamente, «o terror de todos os governos portugueses». A prisão dá-se a 28 de Dezembro de 1895, na aldeia sagrada de Chaimite, para onde o Gungunhana fugira depois das derrotas em Coolela e Mandlakazi. Em carta à mãe, pouco antes de suicidar-se, Mouzinho viria a considerar a prisão do «leão de Gaza» como «a única coisa» importante que fizera «em 40 anos de vida quase inútil».
É aquele mesmo imperador todo-poderoso, capaz de assassinar esposas e filhos, que estranhamente chorará ao desembarcar em Portugal, longe de tudo o que construiu e destruiu – longe do seu «kraal», despojado para sempre do tesouro que acumulara e avisado de que em breve terá mesmo de deixar as suas sete rainhas, destinadas ao exílio em São Tomé. Gungunhana chorou no Tejo, chorou em Monsanto e chorará ainda muitas vezes nos Açores, depois de «pôr-se de joelhos» e «beijar as botas aos brancos e pedir perdão», como conta Maria da Conceição Vilhena no ensaio citado. E é isso que a História durante muito tempo não entenderá, esgrimindo-se a si própria na tentativa de construção do perfil adequado para um déspota aparentemente sanguinário que não teve coragem de entregar o peito à morte.
No dia da prisão em Chaimite, o amigo e maior conselheiro de Gungunhana, Mahune, não recuou perante as armas dos brancos: foi fuzilado por sua própria sugestão e, no momento em que o atavam a um poste para esperar os tiros, sugeriu com um sorriso que mais valia desamarrarem-no, de forma a que pudesse cair quando as balas o crivassem. «Mahune caiu de pé, perante a força do branco, ao contrário de Gunhunhana que, assustado, caiu de joelhos», escreve Vilhena.
Feliz ou infelizmente para Gungunhana, Angra do Heroísmo nunca chega a ser o «gulag» que se esperaria para «o terror de todos os Governos portugueses». O ex-imperador é preso no promontório vulcânico do Monte Brasil a 27 de Junho 1896, juntamente com Zixaxa, régulo seu vassalo, Molungo, seu tio, e Godide, seu príncipe herdeiro. E, embora muitos terceirenses nunca houvessem sequer visto um negro, como conta Pedro de Merelim no artigo «Os Vátuas na Ilha Terceira» (Revista Atlântida, 1960), a empatia pelos prisioneiros foi imediata.
Os quatro africanos acomodaram-se então a uma vida marcada pela melancolia, aceitando a alfabetização, submetendo-se ao baptismo e afundando-se no álcool. Nunca foram julgados, mas permaneceram cativos no forte, embora «em regime livre», ao abrigo das chamadas «Medidas de Segurança Pré-Delituais», mais tarde muito apreciadas pela polícia política de Salazar. Zixaxa, aparentemente o mais determinado dos quatro, ainda conseguiu constituir família e deixar descendência, ocupando os seus últimos dias a construir cestos de vime e a fabricar xaropes medicinais. A Godide, o mais novo de todos, matou-o cedo uma tuberculose. Molungo morreu de velho. Gungunhana, equiparado ao posto de segundo sargento do exército, sucumbiu basicamente à solidão e à saudade.
Quarenta anos depois do início da luta armada pela independência moçambicana (1964), o país olha para o passado à procura de mitos. Das profundezas da História emerge o nome de Gungunhana, o mais poderoso régulo do Ultramar português, preso por Mouzinho de Albuquerque em 1895. Neto do temível Manukuse, outro ícone da resistência à ocupação europeia no século XIX, «Ngungunhane» nasceu na mesma província que Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim Chissano, os três líderes históricos da Frelimo: Gaza. Um punhado da terra do cemitério onde foi sepultado jaz na Fortaleza de Maputo. Os seus ossos estão para sempre perdidos em solo português, na lava da ilha Terceira, arquipélago dos Açores.
Aos treze dias de Março do ano da Graça de mil oitocentos e noventa e seis, Lisboa explode em festa. O África vomita os seus fumos céu acima, dezenas de embarcações correm sem destino no Tejo, a multidão invade o Paço em delírio. Num minúsculo pavilhão a estibordo do navio estão os últimos troféus das guerras africanas da monarquia: cinco homens e dez mulheres angunes, amontoando-se sombrios sobre os beliches nauseabundos da clausura e do abandono. Gungunhana, deitado sem glória numa esteira, tem a cara coberta. Quando a destapam, ergue-se com susto, distribui o olhar desconfiado, muito negro, e volta a cobrir o rosto com as mãos. É alto como só um chefe tribal, exibe a testa ampla dos grandes líderes, mas a sua imagem não tem agora a altivez que tanto impressionara Mouzinho de Albuquerque dois meses e meio antes, no dia do assalto a Chaimite.
«Como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior número e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição», conta o Diário de Notícias do dia seguinte, elogiando os «valentes expedicionários» de Mouzinho. E, de repente, o «leão de Gaza» rebenta num pranto inesperado. «Digam-me o que querem de mim. De que vos sirvo eu? Eu morro se não voltar a ver as minhas terras!», grita. Em desespero, pede clemência, oferece a fortuna em troco da libertação, chora muito – chora e implora pela primeira das muitas vezes que chorará e implorará até morrer em Angra do Heroísmo, baptizado, alfabetizado e alcoólico, quase onze anos depois.
Ao longo de décadas os compêndios europeus hão-de recordar o episódio como um ícone da subjugação do negro inferior. Um epílogo feliz para a mais longa e sofrida campanha portuguesa desde que o Mestre de Avis comandara em triunfo a expedição a Ceuta, havia cinco séculos. Durante os três meses que permanece internado no forte de Monsanto, como durante os mais de dez anos que viverá desterrado nos Açores, ou as quase oito décadas que África terá ainda de esperar pela libertação, Gungunhana, filho de Muzila e neto de Manukuse, celebrizado como o mais poderoso e sanguinário régulo de todo o Ultramar português, há-de emprestar o seu nome como pretexto para as mesmas chacinas, os mesmos saques e as mesmas mentiras que tanto apreciava, apenas protagonizados agora pelos homens que mais odiava e temia.
Só depois a História olhará para ele a sério: só depois Mudungazi, o homem que intitularam «o leão de Gaza» como tributo à sua crueldade – o mesmo que a si próprio chamara Ngungunhane («Gungunhana», segundo a ortografia colonialista) para imortalizar os seus feitos «terríveis» e «invencíveis» – será submetido ao rigor da investigação histórica. E então, uma dúvida emerge: quem é o verdadeiro Gungunhana: um preto sanguinário que os portugueses subjugaram ou um imperador justo que os brancos destruíram?
Em 1953, o filme Chaimite, de Jorge Brum do Canto, defendia a primeira versão em prol da propaganda colonialista. Em 1995, Joaquim Chissano celebrou em Chaimite e Coolela os cem anos da resistência do império angune e inaugurou em Mandlakazi um busto do régulo, na tentativa de o transformar numa referência nacional. «Ele é um dos nossos heróis», sublinha hoje Américo Pinto, adido cultural da embaixada moçambicana em Lisboa. «O drama é que Moçambique precisa de heróis”, escreve em 1995 Nélson Saúte, romancista moçambicano, num artigo no jornal Público em que cita vários intelectuais com a mesma opinião. E a verdade é que o busto de Mandlakazi acabou vandalizado apenas três dias depois, alegadamente por elementos da etnia rival chope, muito representada na vila.
«Ngungunyana», como hoje lhe chamam os moçambicanos, continua por isso um mistério: ele chorou de medo em Lisboa, sim, mas também havia esmagado cruelmente todos os que se lhe tinham oposto no passado – e entre eles contavam-se os antepassados de uma grande parte dos actuais moçambicanos. Como compreender uma figura tão fascinantemente contraditória?
Para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), nunca houve dúvidas: Gungunhana foi e é um herói. Quando em 1969 Samora Machel tomou o lugar de Eduardo Mondlane como líder do movimento, foi ao nome do imperador de Gaza que os partidários da unidade nacional moçambicana foram buscar forças para relançar a campanha da independência. Mondlane, o homem que iniciara o processo, tinha sido morto com a conivência de alguns condiscípulos – e no seu lugar teria, portanto, de emergir um líder forte, capaz de estimular a entrega e dissuadir a traição, tarefa para a qual um simples ex-auxiliar de enfermagem, como Machel, não parecia talhado. O boato de que o novo dirigente era um parente distante de «Ngungunhane», por via de um avô guerreiro chamado Maghivelari, foi o mote ideal – depois, o voluntarismo de Samora e a marcha dos tempos fizeram o resto. A 25 de Junho de 1975, pouco mais de uma década após o início da luta armada pela libertação, sobre a qual passam em 2004 quarenta anos, a independência do novo país é formalmente proclamada. Para quase todos os efeitos, o «leão de Gaza» era um símbolo de triunfo.
Mas não para todos os moçambicanos. Três anos depois das insinuações da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, na oposição) sobre novos massacres executados pela Frelimo, que ameaçaram colocar em causa o acordo de paz assinado em Roma por Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, em 1992, os partidários de Dhlakama continuam a contestar o facto de tanto Eduardo Mondlane (nascido em Manjacaze, em 1920), fundador do partido no poder, como Samora Machel (Chilembe, 1933) e Joaquim Chissano (Malehice, 1939), seus sucessores e primeiros Presidentes da República, serem todos de etnia changana – que provém de Sochangane, nome anterior de Manukuse – e oriundos da província de Gaza.
Ao mesmo tempo, os ossos de Gungunhana, solicitados por Maputo em 1983, continuam perdidos na terra de lava dos Açores, algures numa vala comum do cemitério da Conceição, em Angra do Heroísmo, misturados com os restos mortais de inúmeros anónimos. Muitos não o aceitam como herói até que regresse a casa. E é como se faltasse ainda escrever uma linha da História – como se um verso permanecesse em branco, à espera do futuro, tal como diz o poema.
Samora Machel pediu a devolução dos ossos do rei de Gaza pouco antes de uma visita oficial a Portugal, em Outubro de 1983. Eram os anos de rescaldo da mentalidade colonialista, o momento de enterrar para sempre as diferenças entre brancos e pretos, e tanto o presidente de Moçambique como o seu homólogo português, Ramalho Eanes, esforçaram-se por sublinhar o muito que unia os dois países, mais do que aquilo que os distanciava. Um dos momentos mais simbólicos da visita foi precisamente a entrega ao presidente moçambicano de um pote de cerâmica contendo aquilo que seriam as cinzas das ossadas Gungunhana. Para incutir maior solenidade ao regresso a casa do chefe angune – também dito «vátua», mas por engano –, Machel pediu que Portugal conservasse por mais algum tempo os restos mortais do imperador, de forma a que o Estado moçambicano pudesse preparar uma cerimónia de transladação condigna. E a urna é então depositada na capela do Palácio das Necessidades, em Lisboa, onde permanecerá durante quase dois anos.
Gungunhana despede-se finalmente de Portugal a 14 de Junho de 1985, numa sessão solene a que assistiram os dois chefes de Estado e o então presidente do Governo Regional dos Açores, Mota Amaral, bem como oficiais da Marinha e do Exército portugueses. A urna preparada para receber as ossadas é uma obra de arte: um caixão de jambirre e chanfuta (madeiras moçambicanas), com dois metros de comprimento, 75 centímetros de altura, 225 quilos de peso e adornos com baixos relevos do escultor Paulo Come. Quando no dia seguinte aterra em Maputo contendo os ossos do herói, o DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique é recebido pelos cânticos de alegria de centenas de pessoas, num cortejo que percorre as Avenidas de Angola e Eduardo Mondlane, rumo ao Salão Nobre do Conselho Executivo. É aí que ficarão os restos de Gungunhana até serem definitivamente instalados na Fortaleza de Maputo, na capela de Nossa Senhora da Conceição, a que depressa se subtrai a principal imagem da Virgem.
A revelação de que o pote de cerâmica entregue a Samora Machel continha apenas terra do cemitério da Conceição surge logo a seguir, nas parangonas dos jornais portugueses. Moçambique opta primeiro pelo silêncio, mas o assunto será recuperado com regularidade ao longo dos quinze anos seguintes, nomeadamente quando, em 1995, se assinala o centenário da prisão do régulo africano. Mas Maria da Conceição Vilhena, estudiosa do Império de Gaza e biógrafa de Gungunhana, explica no seu Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano, publicado em 1999, que a impossibilidade de localizar os ossos do chefe angune sempre fora do conhecimento de Maputo e que, portanto, o punhado de terra fora aceite como um símbolo.
O livro cita um ofício redigido pelo então Ministro da República para os Açores, Conceição e Silva, em que se dá conta de que as ossadas são irrecuperáveis, e relata mesmo um episódio em que Mota Amaral solicita a devolução da terra do cemitério caso Moçambique decida recusá-la, alegando que «às cinzas dos mortos tributam os Açorianos um profundo respeito». Mas em 1998, quando o semanário Expresso retoma o tema, o Governo moçambicano anuncia a criação de uma Comissão de Inquérito, presidida pelo ministro da Cultura Mateus Kapupha, para apurar a autenticidade das ossadas.
Hoje, cinco anos passados, a Comissão de Inquérito continua com o «dossier», sem ter ainda apresentado quaisquer resultados. «O trabalho prossegue», garante Américo Pinto. Investigadores açorianos especializados no fenómeno Gungunhana garantem nunca terem sido contactados para qualquer esclarecimento ou ajuda nas investigações, bem como nunca terem sabido da deslocação de qualquer delegação moçambicana a Angra do Heroísmo. A maioria dos jornalistas de Maputo assegura que, tanto quanto lhe diz respeito, o assunto morreu. Mas, enquanto os resultados da comissão não forem oficializados, dificilmente a alma de Mudungazi descansará em paz – dificilmente se instalará em definitivo nas margens do rio Limpopo, entre os espíritos que um dia ofereceram ao exército angune a magia e a força para resistir durante 75 anos à pressão de portugueses, ingleses e alemães.
Fundado por um ramo zulu fugido à guerra que alastrava a Sul, o reino de Gaza sobreviveu à cobiça europeia durante mais de sete décadas. Quando Gungunhana foi preso por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, em 1895, parte do seu exército ainda conquistava terreno aos tsongas, aos chopes, aos vandaus e aos bitongas, empurrados sucessivamente para Norte e fugindo a todo o custo ao confronto com os métodos carniceiros e esclavagistas dos angunes. No seu esplendor, o império de Gaza espraiava-se do rio Icomáti à margem esquerda do Zambeze, do oceano Índico ao curso superior do rio Save. Era o segundo maior reino africano do século XIX, um território que, no mapa actual, ocuparia mais de metade de Moçambique e um bom pedaço do Zimbabué, entrando ainda pela África do Sul. Há cem anos, tinha uma população entre os 500 mil e os dois milhões de habitantes.
A história da dinastia de Manukuse é a história da traição, da luta uterina pelo poder, do assassinato a sangue frio. Quando o todo-poderoso primeiro rei de Gaza morre, em 1858, a sua sucessão é disputada durante cinco anos pelos dois filhos mais velhos, Mawewe e Muzila. As divergências sucessórias nasciam da incompatibilidade entre a lei zulu e a lei angune propriamente dita, e dessa incompatibilidade há-de resultar mais tarde o mesmo tipo de disputa para a segunda sucessão. No primeiro caso, Mawewe é empossado, mas faz tudo por provocar a ira de portugueses e boers, que ajudarão Muzila a usurpar-lhe o trono após uma sangrenta guerra civil. No segundo, depois da morte de Muzila, Mudungazi mata o irmão primogénito, Mefamane, e obriga outros três a fugir para o Transvaal, de forma a garantir o poder. É aí que adopta o nome de «Ngungunhane».
O reinado do «leão de Gaza» foi marcado pela frieza sanguinária com que o «kraal» (a corte) tratava os povos vassalos e pela habilidade política com que o rei se relacionava com as potências europeias. De certa forma, Gungunhana foi protagonista numa luta tribal, mas apenas figurante numa disputa maior do que ele, muito maior do que o próprio continente negro. Enquanto Portugal e Inglaterra lutavam pelo domínio da África Austral, o seu ouro e os seus diamantes, discutindo o «Mapa Cor-de-Rosa» português e a intenção inglesa de ligar o Cairo ao Cabo, Gaza foi jogando numa política de sucessivas alianças com Lisboa ou com Londres, com Londres ou com Lisboa, na convicção de que as divergências europeias eram a sua maior força. Aquando do Ultimato inglês de 1890, imediatamente aceite por Portugal e transformado em tratado no ano seguinte, Gungunhana percebe que começa a perder margem de manobra. Mas ainda joga um último trunfo, e desse trunfo há-de arrepender-se até ao fim: em 1894 dá guarida a Mamatibejana (ou Zixaxa) e Amgundjuana, dois dos régulos tsongas que haviam assaltado as posições portuguesas em Lourenço Marques. E não mais deixa de ter o exército português à perna.
Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque eram então os «nobres representantes da civilização na luta contra a barbárie», como um dia escreveu o primeiro. «Tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito», conta então o governador António Enes, citando ordens do Governo de Lisboa. Por essa altura, os jornais portugueses atribuem ao imperador angune epítetos como «sanguinário», «carniceiro» ou, mais prosaicamente, «o terror de todos os governos portugueses». A prisão dá-se a 28 de Dezembro de 1895, na aldeia sagrada de Chaimite, para onde o Gungunhana fugira depois das derrotas em Coolela e Mandlakazi. Em carta à mãe, pouco antes de suicidar-se, Mouzinho viria a considerar a prisão do «leão de Gaza» como «a única coisa» importante que fizera «em 40 anos de vida quase inútil».
É aquele mesmo imperador todo-poderoso, capaz de assassinar esposas e filhos, que estranhamente chorará ao desembarcar em Portugal, longe de tudo o que construiu e destruiu – longe do seu «kraal», despojado para sempre do tesouro que acumulara e avisado de que em breve terá mesmo de deixar as suas sete rainhas, destinadas ao exílio em São Tomé. Gungunhana chorou no Tejo, chorou em Monsanto e chorará ainda muitas vezes nos Açores, depois de «pôr-se de joelhos» e «beijar as botas aos brancos e pedir perdão», como conta Maria da Conceição Vilhena no ensaio citado. E é isso que a História durante muito tempo não entenderá, esgrimindo-se a si própria na tentativa de construção do perfil adequado para um déspota aparentemente sanguinário que não teve coragem de entregar o peito à morte.
No dia da prisão em Chaimite, o amigo e maior conselheiro de Gungunhana, Mahune, não recuou perante as armas dos brancos: foi fuzilado por sua própria sugestão e, no momento em que o atavam a um poste para esperar os tiros, sugeriu com um sorriso que mais valia desamarrarem-no, de forma a que pudesse cair quando as balas o crivassem. «Mahune caiu de pé, perante a força do branco, ao contrário de Gunhunhana que, assustado, caiu de joelhos», escreve Vilhena.
Feliz ou infelizmente para Gungunhana, Angra do Heroísmo nunca chega a ser o «gulag» que se esperaria para «o terror de todos os Governos portugueses». O ex-imperador é preso no promontório vulcânico do Monte Brasil a 27 de Junho 1896, juntamente com Zixaxa, régulo seu vassalo, Molungo, seu tio, e Godide, seu príncipe herdeiro. E, embora muitos terceirenses nunca houvessem sequer visto um negro, como conta Pedro de Merelim no artigo «Os Vátuas na Ilha Terceira» (Revista Atlântida, 1960), a empatia pelos prisioneiros foi imediata.
Os quatro africanos acomodaram-se então a uma vida marcada pela melancolia, aceitando a alfabetização, submetendo-se ao baptismo e afundando-se no álcool. Nunca foram julgados, mas permaneceram cativos no forte, embora «em regime livre», ao abrigo das chamadas «Medidas de Segurança Pré-Delituais», mais tarde muito apreciadas pela polícia política de Salazar. Zixaxa, aparentemente o mais determinado dos quatro, ainda conseguiu constituir família e deixar descendência, ocupando os seus últimos dias a construir cestos de vime e a fabricar xaropes medicinais. A Godide, o mais novo de todos, matou-o cedo uma tuberculose. Molungo morreu de velho. Gungunhana, equiparado ao posto de segundo sargento do exército, sucumbiu basicamente à solidão e à saudade.
CRONOLOGIA
Principais datas e
acontecimentos em torno da fascinante vida de Gungunhana:
1820 (cerca de) – o povo nguni (ou angune) penetra em Moçambique e subjuga os chope, tsonga, vandau e bitonga; Sochangane, mais tarde chamado Manukuse, torna-se rei de Gaza.
1850 (cerca de) – nasce Mudungazi, mais tarde chamado Gungunhana, filho daquele que seria o terceiro imperador de Gaza, Muzila.
1858 – morre Manukuse, fundador do Império de Gaza, avô de Gungunhana. Mawewe sobe ao poder.
1863 – Muzila, irmão de Mawewe, consegue vencer a guerra civil pela sucessão de Manukuse e ascende ao trono.
1884 – morre Muzila, pai de Gungunhana e terceiro imperador da dinastia; Gungunhana ascende ao poder.
1885, Fevereiro – realiza-se a conferência de Berlim, que define o processo de partilha de África pelas principais potências europeias.
1885, Outubro – Gungunhana envia uma embaixada a Lisboa, jurando vassalagem a Portugal.
1887 – Portugal e Alemanha acordam as bases por que deverá definir-se a partilha da África Austral; Portugal fica com o Mapa Cor-de-Rosa, que prevê a união por terra de Angola e Moçambique, império de Gaza incluído.
1889 – Gungunhana entrega à Inglaterra, a troco de um milhar de espingardas, munições e um subsídio anual, a exploração de minérios, com acesso ao mar através de Gaza.
1890, 11 de Janeiro – o governo britânico faz um ultimato a Portugal, recusando as pretensões inscritas no Mapa Cor-de-Rosa; o rei D. Carlos aceita as exigências no mesmo dia.
1891, Junho – Portugal e Inglaterra assinam o acordo sobre a partilha da África Austral;
1894, Agosto – os tsongas revoltam-se em Lourenço Marques, numa acção em que participa Mamatibejana, mais tarde chamado Zixaxa;
1895, 2 de Fevereiro – o exército português aniquila a resistência tsonga, cujos régulos se refugiam em Gaza.
1895, 11 de Novembro – o exército português vence os angunes e arrasa Mandlakasi, capital do Império de Gaza;
1895, 28 de Dezembro – Mouzinho de Albuquerque aprisiona Gungunhana em Chaimite, a aldeia sagrada dos angunes.
1896, 13 de Março – Gungunhana desembarca prisioneiro em Lisboa, na companhia de sete das suas mulheres, seu filho, seu tio, dois régulos vassalos de Gaza, respectivas esposas e um cozinheiro; a população celebra o feito.
1896, 23 de Junho – Gungunhana chega à ilha Terceira, nos Açores, onde vai ficar exilado até à morte; na sua companhia seguem apenas Godide, seu filho, Molungo, seu tio, e Zixaxa, régulo vassalo.
1902, 8 de Janeiro – Mouzinho de Albuquerque suicida-se.
1906, 23 de Dezembro – morre Gungunhana, vitimado por uma hemorragia cerebral.
1820 (cerca de) – o povo nguni (ou angune) penetra em Moçambique e subjuga os chope, tsonga, vandau e bitonga; Sochangane, mais tarde chamado Manukuse, torna-se rei de Gaza.
1850 (cerca de) – nasce Mudungazi, mais tarde chamado Gungunhana, filho daquele que seria o terceiro imperador de Gaza, Muzila.
1858 – morre Manukuse, fundador do Império de Gaza, avô de Gungunhana. Mawewe sobe ao poder.
1863 – Muzila, irmão de Mawewe, consegue vencer a guerra civil pela sucessão de Manukuse e ascende ao trono.
1884 – morre Muzila, pai de Gungunhana e terceiro imperador da dinastia; Gungunhana ascende ao poder.
1885, Fevereiro – realiza-se a conferência de Berlim, que define o processo de partilha de África pelas principais potências europeias.
1885, Outubro – Gungunhana envia uma embaixada a Lisboa, jurando vassalagem a Portugal.
1887 – Portugal e Alemanha acordam as bases por que deverá definir-se a partilha da África Austral; Portugal fica com o Mapa Cor-de-Rosa, que prevê a união por terra de Angola e Moçambique, império de Gaza incluído.
1889 – Gungunhana entrega à Inglaterra, a troco de um milhar de espingardas, munições e um subsídio anual, a exploração de minérios, com acesso ao mar através de Gaza.
1890, 11 de Janeiro – o governo britânico faz um ultimato a Portugal, recusando as pretensões inscritas no Mapa Cor-de-Rosa; o rei D. Carlos aceita as exigências no mesmo dia.
1891, Junho – Portugal e Inglaterra assinam o acordo sobre a partilha da África Austral;
1894, Agosto – os tsongas revoltam-se em Lourenço Marques, numa acção em que participa Mamatibejana, mais tarde chamado Zixaxa;
1895, 2 de Fevereiro – o exército português aniquila a resistência tsonga, cujos régulos se refugiam em Gaza.
1895, 11 de Novembro – o exército português vence os angunes e arrasa Mandlakasi, capital do Império de Gaza;
1895, 28 de Dezembro – Mouzinho de Albuquerque aprisiona Gungunhana em Chaimite, a aldeia sagrada dos angunes.
1896, 13 de Março – Gungunhana desembarca prisioneiro em Lisboa, na companhia de sete das suas mulheres, seu filho, seu tio, dois régulos vassalos de Gaza, respectivas esposas e um cozinheiro; a população celebra o feito.
1896, 23 de Junho – Gungunhana chega à ilha Terceira, nos Açores, onde vai ficar exilado até à morte; na sua companhia seguem apenas Godide, seu filho, Molungo, seu tio, e Zixaxa, régulo vassalo.
1902, 8 de Janeiro – Mouzinho de Albuquerque suicida-se.
1906, 23 de Dezembro – morre Gungunhana, vitimado por uma hemorragia cerebral.
OS
PRETOS DO MONTE BRASIL
Os
retratos de Gungunhana feitos durante o período do exílio em Angra do Heroísmo
são os de um homem só, amargurado com a derrota, remoendo em silêncio as
memórias das suas muitas rainhas e do enorme tesouro que acumulou à custa de
dádivas, impostos e saques. «Aos poucos, a vida vai nele arrefecendo, cansada
de humidade, frio e céu cinzento», relata Maria da Conceição Vilhena em
Gungunhana, Grandeza e Decadência de um Império Africano. «Os seus prolongados
silêncios seriam sem dúvida o espaço de um amargo rememorar. Um ócio arrastado,
sombrio, de desencantamento, que acelera o envelhecer. É o leão de Gaza
transformado num cordeiro.» Muitos açorianos recordam hoje histórias familiares
em que avós ou bisavós, ainda crianças, nutriam enorme ternura por Gungunhana,
correndo para ele nas ruas da cidade e aninhando-se de um salto no seu braço
vigoroso. O protagonista de algumas das histórias seria provavelmente Zixaxa,
mais adaptado à terra – outros relatos nasceriam simplesmente na imaginação
agridoce de quem temeu deparar-se um dia com «os pretos do Monte Brasil» e,
depois, absolveu a sua presença na ilha.
Gungunhana morre a 23 de Dezembro de 1906, vítima de hemorragia cerebral, segundo consta das notícias dos jornais. É enterrado na véspera de Natal, numa cerimónia realizada segundo os princípios cristãos e a que assistiram os seus três companheiros de degredo. Quatro dias depois celebrar-se-ia o décimo primeiro aniversário da sua prisão. Mas tanta coisa acontecera entretanto... Em Portugal, Mouzinho de Albuquerque havia-se suicidado, a cidade do Porto resistira a uma peste bubónica, Lisboa assistia a espectáculos frequentes de cinema. Ao redor do mundo, as mulheres inglesas reclamavam direito de voto, os irmãos Wright haviam conseguido pôr no ar o Flyer I, Einstein inventara a Teoria da Relatividade. A morte de um pobre alcoólico, mesmo despojado de um império apenas suplantado em África pelo califado de Sokoto, era uma pobre efeméride.
Gungunhana «morreu sem uma simples homenagem», lamenta então o jornal Portugal, Madeira e Açores – outros jornais limitar-se-iam a notícias breves. No cemitério da Conceição, no extremo-norte da massa urbana de Angra do Heroísmo, os seus ossos ficariam na sepultura apenas enquanto esse espaço não fosse indispensável a outro defunto. O seu destino final, caso ninguém os reclamasse, seria a vala comum. O regresso a Moçambique, na altura ainda uma província ultramarina, não passaria de uma anedota ridícula.
Gungunhana morre a 23 de Dezembro de 1906, vítima de hemorragia cerebral, segundo consta das notícias dos jornais. É enterrado na véspera de Natal, numa cerimónia realizada segundo os princípios cristãos e a que assistiram os seus três companheiros de degredo. Quatro dias depois celebrar-se-ia o décimo primeiro aniversário da sua prisão. Mas tanta coisa acontecera entretanto... Em Portugal, Mouzinho de Albuquerque havia-se suicidado, a cidade do Porto resistira a uma peste bubónica, Lisboa assistia a espectáculos frequentes de cinema. Ao redor do mundo, as mulheres inglesas reclamavam direito de voto, os irmãos Wright haviam conseguido pôr no ar o Flyer I, Einstein inventara a Teoria da Relatividade. A morte de um pobre alcoólico, mesmo despojado de um império apenas suplantado em África pelo califado de Sokoto, era uma pobre efeméride.
Gungunhana «morreu sem uma simples homenagem», lamenta então o jornal Portugal, Madeira e Açores – outros jornais limitar-se-iam a notícias breves. No cemitério da Conceição, no extremo-norte da massa urbana de Angra do Heroísmo, os seus ossos ficariam na sepultura apenas enquanto esse espaço não fosse indispensável a outro defunto. O seu destino final, caso ninguém os reclamasse, seria a vala comum. O regresso a Moçambique, na altura ainda uma província ultramarina, não passaria de uma anedota ridícula.
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ