O cotidiano em tempo de crise
Este artigo faz parte duma iniciativa provocada pelo isolamento causado pela pandemia do Covid-19. Vários juristas, sociólogos, economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais associaram-se a esta iniciativa e escrevem sobre o signidicado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.
Uma boa parte daquilo que somos constitui-se nas pequenas coisas do dia a dia. As decisões que tomamos em relação à melhor maneira de chegarmos ao serviço, o que vamos comer, com quem manter boas relações, o que fazer em relação ao vizinho que toca a música muito alto, como evitar que as coisas que os outros fazem no seu dia a dia não nos criem problemas, etc. O cotidiano seria fácil de organizar se ele obedecesse à ideia que alguns sociólogos têm de que a vida social é sempre uma resposta a constrangimentos estruturais. Infelizmente, as coisas não são assim. O cotidiano é, na maior parte das vezes, um espaço de negociação, subversão e apropriação desses constrangimentos com resultados frequentemente imprevisíveis.
Isso faz do cotidiano, sobretudo em contextos precários como são uma boa parte dos nossos contextos de sociabilidade, espaços de enorme criatividade, no bom e no mau sentido. A criatividade no bom sentido é quando as respostas que as pessoas encontram para os seus desafios do cotidiano não põem em causa a sua própria reprodução social. Muitas vezes a linha que separa a boa criatividade da má é bastante fina. O comércio informal, por exemplo, garante à pessoa que o pratica a satisfação de parte das suas necessidades básicas, mas também priva a economia formal de recursos e contribui para minar o respeito pelas regras. No fundo, a criatividade é a descrição da natureza precária do nosso projecto nacional.
Não há dúvidas, contudo que aquilo que a gente toma por informalidade é, na verdade, a manifestação prática da criatividade do nosso cotidiano. O formal, por ser exíguo e imprevisível, não oferece às pessoas um quadro seguro de referência para a organização das suas vidas. Daí o recurso à criatividade que, na verdade, é apenas a manifestação da impossibilidade de organização da vida sem a transgressão do formal.
Neste sentido, o nosso cotidiano constitui-se em oposição ao formal. Nos seus espaços periféricos, isto é nos bairros, mercados e espaços precários de socialização, o nosso cotidiano é uma frente erigida contra um inimigo externo difuso, mas que ganha sempre corpo em toda a manifestação formal vista preferencialmente como intrusão. Curiosamente, a informalidade funciona como tubo de escape que ajuda as pessoas a “esquecerem” o formal. Quando vendedores informais, por exemplo, desabafam que não têm outro remédio senão se exporem à doença – ou quando recusam aceitar a existência da ameaça – a racionalidade do que dizem está na representação da sua vida como um desafio ganho, apesar de tudo.
É neste contexto que deve ser vista a restricção da vida social que um Estado de Emergência implica. Do ponto de vista prático, essa restricção significa o estrangulamento da criatividade tão essencial à vida e do ponto de vista político a visibilização do Estado como o “verdadeiro” inimigo. Este é o problema que a decisão de declaração dum Estado de Emergência devia ponderar. Ela seria uma espécie de “declaração de guerra” contra os menos afortunados. Sem outro tubo de escape, o mais provável é que as pessoas concentrem a sua atenção nesse “inimigo” através de acções concretas “subversivas” (furando o isolamento imposto), mas também através da subversão das narrativas oficiais (com teorias de conspiração que têm o estado e a medicina como seus vilões – algo que tem acontecido de forma recorrente no contexto de campanhas como a prevenção da cólera). Desprovido de recursos económicos para ajudar as pessoas a garantir a sua existência, a reacção mais provável das autoridades é a repressão que, no limite, vai fechar as duas partes num ciclo vicioso.
Disto decorre que a declaração dum Estado de Emergência, por um lado, – caso, de facto, existam razões sanitárias convincentes (o que, por enquanto, não me parece o caso, apesar de todo o alarido) – deve ser acompanhada de medidas económicas e repressivas bem pensadas e, por outro lado, duma reflexão sobre o tipo de Estado que é possível num contexto em que o cotidiano se estrutura como em Moçambique. Qualquer que seja a decisão, a sua implementação vai depender também da identificação de “fazedores locais de opinião” (grupos religiosos, chefes de “gangs”, estruturas administrativas locais, etc.) com quem se deve manter um diálogo constante.
PR declara estado de emergencia!
Essa medida vai ser dificil de ser acatada pela populaçao. A fome sente-se, corona virus ate hoje é um mito para as populacoes.
Faltou muito trabalho de base.
Nos moldes como foi anunciado o estado de emergencia, o presidente teve em consideraçao as fragilidades da nossa sociedade....
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Nos moldes como foi anunciado o estado de emergencia, o presidente teve em consideraçao as fragilidades da nossa sociedade....
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