Sobre a “ética colonial” e arte africana
Numa das versões de Medusa, um monstro feminino na mitologia grega, ela é descrita como uma jovem formosa que, por ter sido estuprada no templo de Atenas por Poseídon, foi castigada por Atenas que, enraivecido, transformou os fios do seu cabelo em serpentes e desfigurou a cara dela ao ponto de petrificar quem olhasse para ela. Lembra um pouco Gênese (19:1 até 19:38, sobretudo o versículo 19:26). Há nestes episódios um sentido peculiar de ética. O sofrimento da vítima não é pertinente. O que é pertinente é chamar a atenção geral para outros valores presentes na situação, no caso, o respeito pelo templo assim como a obediência a Deus. A Medusa foi estuprada, mas é ela que é punida pela profanação do templo. A esposa de Lot, que se virou para ver o fogo que consumia a cidade onde o seu esposo havia oferecido as suas duas filhas para serem estupradas no lugar da sodomização, virou um monte de sal.
Estes episódios dizem algo, também, sobre o contexto normativo dentro do qual o mundo em que vivemos se constituíu. Ele foi marcado por aquilo que chamo de “ética colonial”, isto é um sistema de valores segundo o qual todo o castigo seria merecido, mesmo quando o castigado é vítima inocente, desde que quem aplica o castigo acredite nas suas próprias boas intenções. Assim, como dum modo geral a intenção colonial era boa – missionar, civilizar e pacificar – os meios que foram empregues para tal não importam assim tanto e, na verdade, todos aqueles que tiveram de sofrer, mesmo sem culpa, foram mártires duma causa nobre. A minha avó materna teve que fazer trabalhos forçados – na construção de estradas – porque o seu marido se escapuliu para a África do Sul, onde ficou a viver durante muito tempo com medo de voltar ao País e sofrer as sevícias da missão civilisatória daqueles que não foram para pilhar e voltar, mas sim para ficar e ensinar aos nativos deveres cívicos modernos.
É claro que a questão colonial não se reduz simplesmente a uma oposição entre experiência negativa negra e experiência positiva branca. As mesmas elites políticas europeias que fizeram os regimes coloniais criaram perdedores nos seus próprios países – assim como resistentes e críticos. Por isso, nestas coisas o desafio intelectual nunca pode ser de procurar no colonialismo a essência duma maldade europeia inata. O desafio é entender como é que pessoas com poder fazem a gestão desse poder e em que circunstâncias é que essa gestão pode ir contra tudo aquilo que nos define como seres humanos. Nesse processo, essas pessoas criam sistemas éticos complexos que legitimam excessos. Não precisamos de ir longe para comprovar isso. Muitos regimes políticos africanos perderam a sua humanidade, ainda que bem intencionados, por incapacidade de gestão do poder. Sendo assim, a ética colonial é para mim uma manifestação do tipo de contexto normativo que se criou durante a colonização e que tornou possível algo que hoje, com o benefício do olhar retrospectivo, só nos devia envergonhar. Ela devia ser um instrumento pedagógico que nos ensinasse a olhar para os problemas que enfrentamos hoje com certa humildade.
Há três anos que ando envolvido em discussões sobre a questão da restituição do património cultural africano depositado em museus europeus. Sou membro da comissão do museu das culturas do mundo de Basileia (uma espécie de museu etnológico) que tem uma colecção formidável de objectos comprados, recebidos como presentes, doados (entre eles, de certeza, muitos pilhados) de todo o mundo. Tenho participado em discussões na Alemanha e como membro do júri duma fundação privada alemã, num programa de financiamento de acções de preservação e conservação do património cultural mundial com um orçamento anual de 4 milhões de Euros, delibero sobre projectos nesta área, o mais recente dos quais se debruçava justamente sobre a questão da proveniência de objectos em museus de Berlim. O museu de Basileia tem muita sensibilidade para esta questão e, por isso, tem tido o cuidado de procurar conhecer a proveniência dos objectos e, depois, em diálogo com os “donos” ver maneiras de garantir o seu usufruto.
Definir arte não é coisa fácil e, dependendo da inclinação filosófica, até há gente que chega ao ponto de dizer que nem é possível. Há algumas pessoas que tentam conduzir a discussão para um lado que nos quer obrigar a dizer se o que os europeus pilharam nas suas andanças pelo mundo seria arte ou não e, se fosse, se os africanos teriam consciência de estarem a produzir arte. Fazem depender da resposta afirmativa a essas questões o reconhecimento da legitimidade da exigência de “repatriamento”. Eu não consigo imaginar vida humana sem nenhum sentido estético, isto é sem a capacidade de separar o valor de uso de alguma coisa e o seu valor simbólico ou emocional. Independentemente da sensibilidade de cada um sobre o que é a arte, ela constitui-se nessa tensão. Tudo o resto é uma disputa sobre o cânone.
De resto, a perfídia humana que o colonialismo foi tornou irrelevante a questão da definição da arte. Ao transformar certos artefactos africanos em objectos de apreciação estéctica, o colonialismo “inventou”, para o bem e para o mal, uma arte africana que é agora sujeita a dois padrões de apreciação, nomeadamente o padrão europeu (externo) que classifica esses artefactos – e que pode a qualquer momento ser desafiado e contestado – e o padrão endógeno africano (local) mais amplo que incorpora o olhar externo na identificação do que em África deve contar como arte. Dito doutro modo, não importa se segundo um critério “europeu” qualquer artefactos africanos são ou não arte. O que importa é que o olhar europeu transformou esses artefactos. Teria sido diferente se, por exemplo, os objectos tivessem sido levados à Europa para desempenharem funções “profanas” como utensílios de cozinha, limpeza ou qualquer outra coisa. Mas esse não foi o caso.
A questão da restituição, como, aliás, a própria arte, tem dois lados, um descritivo e outro emocional. O descritivo é objectivo e exige que objectos que foram parar a Europa por via do abuso do poder colonial sejam retornados. Não cabe nessa discussão o que os africanos vão fazer com esses objectos, se os vão queimar, deixá-los ao relento ou voltar a vender aos europeus. É uma questão simples de devolver alguma coisa ao dono e deixar ao seu critério o que vai fazer com essa coisa. O lado emocional é mais complicado, pois neste entra uma reflexão séria sobre, e contra, a “ética colonial”. Trata-se do reconhecimento – aqui encontro sustento em Nietzsche – de que a presença desses artefactos na Europa documenta a natureza caótica do mundo em que vivemos. O caos que tenho em mente refere-se à condição pós-colonial, sobretudo à maneira como ela cultiva uma sensibilidade moral que nos impede de dar as coisas por adquirido.
É, na verdade, essa condição pós-colonial que desmascara a ética colonial sem necessariamente colocar no seu lugar algo mais sólido e seguro que nos permita organizar o convívio social e político. A arte surge, nesse contexto, como um recurso revitalizador, pois o interesse europeu pelos artefactos africanos e a empatia que os africanos desenvolveram com esses artefactos definem o que faz de nós humanos num certo sentido. A nossa humanidade está na nossa capacidade de dialogar sobre os significados profundos e superficiais que artefactos têm para cada um de nós. Nesse sentido, é no debate sobre o que faz dos artefactos “arte” que encontramos refúgio do mundo caótico criado pelo colonialismo e legitimado pela ética colonial. Não vale insistir em posições canónicas que fazem surgir o fantasma dum diálogo de pessoas que não querem ouvir o que os interlocutores dizem – por pouco dizia “diálogo de surdos”, mas a condição pós-colonial pegou-me a tempo... – pois o caos colonial significa também a possibilidade de rebobinagem.
É essa rebobinagem que poderia permitir que a discussão visse a questão do “repatriamento” como uma metáfora, pois se na nossa conversa sobre a arte formos capazes de nos redescobrirmos, então esses artefactos estariam em casa onde quer que estivessem. Mas até lá, a ética colonial tem que dar o braço a torcer, pois a radicalização de posições na discussão do assunto “profaniza” os artefactos no momento em que seria imperioso que eles mantivessem a sua qualidade estéctica para servirem de referência da nossa convivialidade. Nisso cabe o reconhecimento do colonialismo em si como algo de profundamente estéctico. Não se reduz apenas à opressão. É também um fantástico edifício artístico que nos obriga a apreciar a capacidade humana de criar enredos normativos aliciantes na base dos quais gente normalmente sensata faz coisas que, sóbria, não iria fazer ao mesmo tempo que aguça os nossos sentidos para o que faz de todos nós humanos, apesar de tudo.
N.b. Não sei como é com os outros, mas quando emito alguma opinião sobre alguma coisa, surgem várias coisas na cabeça que preciso de reflectir até ao fim ou, pelo menos, registar de alguma maneira. Com este texto fecho a reflexão sobre "ser negra, feminista radical e gaga". Vou monitorar a minha caixa de mensagens...
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