Quando um partido detesta o País que governa
Não é bem verdade que a liberdade de expressão protege o pensamento e, por essa via, a dignidade humana. A liberdade de expressão protege aquele que tem o poder de nos mandar calar a boca da sua própria falibilidade humana. Quando você tem poder você fica muito vulnerável às suas próprias emoções, o seu juízo fica toldado e, muito facilmente, você fica impenetrável à razão. Foi assim com Samora. Embora esta ideia tenha sido adaptada juridicamente à constituição política liberal, ela não é prerrogativa dos europeus. Em muitos sistemas políticos africanos, sobretudo na nossa região, havia aquelas pessoas que tinham a função de cantar louvores ao rei. Não eram lambe-botas como os temos hoje espalhados por aí. Eram pessoas cuja tarefa era também falar das fraquezas do rei para que este não perdesse a modéstia e, consequentemente, o discernimento.
Alguns porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo” não têm consciência disto porque o seu forte não parece ser interpretar as coisas. O seu forte é apenas defender alguma coisa, não importa qual, desde o momento que ela, aos seus olhos, proteja a prerrogativa do poder. Não são o tipo de militantes que dão vigor a uma organização. Destroem-na por tudo quanto fazem para a protegerem de supostos inimigos. Uma característica marcante deste tipo de porta-vozes é o instinto quase animal de reagir a uma interpelação crítica questionando a pessoa que a fez. Com isso, presta-se um mau serviço à própria organização, pois o que mais devia interessar a um partido não é quem disse o quê, mas sim o que o que foi dito significa para a sua organização. O que não está bem? O que deve ser melhorado? Se estiver tudo bem, bom, tudo bem, não há razão para pânico. Reagir à crítica tapando os ouvidos é uma grave recusa de ajudar a própria organização a ser forte e resiliente.
Dito isto, devo também confessar que não sou fã do tipo de jornalismo feito pela CartaMoz. Várias vezes critiquei a pobre qualidade das suas reportagens sobre a violência em Cabo Delgado. Há, para mim, graves violações do profissionalismo numa boa parte dessas reportagens – em duas ocasiões dei parabéns por artigos bem conseguidos, um dos quais, vim a saber mais tarde, tinha sido da autoria da Lusa! Nunca, contudo, me ocorreu sugerir que esse jornal fosse proibido de fazer o seu trabalho da maneira pouco profissional como o tem feito, nem mesmo me passou pela cabeça acusar o jornal de falta de patriotismo. Na verdade, não me ocorreu fazer isso pelas mesmas razões que me levaram, um dia, a criticar com veemência a intenção de processar o nosso físico nuclear pelas ameaças que ele andou a proferir contra gente decente no seu mural. Uma sociedade que só recorrendo à justiça é capaz de civilizar o discurso público é uma sociedade doentia. Deve ser possível, através do discernimento e decoro, levar as pessoas a respeitarem a sua profissão assim como a respeitarem também a dignidade dos outros.
O mau profissionalismo de certos jornais não coloca sobre o governo a obrigação de agir contra esses órgãos. Coloca sobre o cidadão a obrigação de ter mais discernimento. Coloca sobre os outros órgãos de comunicação a obrigação de prestarem melhor serviço para suprirem as lacunas dos maus. O mau jornalismo coloca sobre o governo apenas dois tipos de responsabilidade: um consiste em criar condições para que se faça um consumo responsável de conteúdos mediáticos. Como se faz isso? Investindo numa educação de qualidade. O outro tipo de responsabilidade consiste na introspecção sobre a sua própria acção e o que precisa de fazer para que conteúdos problemáticos não envenenem a esfera pública. Só estas duas responsabilidades. Um governo decente e com sentido de responsabilidade preocupa-se apenas com estas coisas, não com a perseguição de maus jornalistas. É mesquinho todo o governo que está preocupado em saber se as pessoas falam bem de si ou não.
Mas é justamente aqui onde está o problema dos porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo”. Eles sabem que o governo tem uma política de informação miserável em relação a tudo, especialmente em relação a Cabo Delgado. Se alguém reunir todos os pronunciamentos feitos pelas autoridades sobre Cabo Delgado não vai ter a possível dimensão real do problema (segundo o Comandante Geral da Polícia, há dois anos, o problema devia ter sido resolvido em dois dias!). Vai pensar que se trata mesmo de grupos dispersos de malfeitores que aterrorizam as populações. Existem, entretanto, vários estudos, mal e bem feitos, que dão conta dum problema gravíssimo. Em países onde os governos respeitam a sociedade o problema teria merecido uma informação detalhada que também partilhasse a estratégia que o governo desenhou para com ele lidar. Se calhar há muito que, em Cabo Delgado, devia ter sido declarado um estado de emergência para lidar com a situação. O que piora a nossa situação é que temos um principal partido de oposição com o rabo preso e que, por isso, nem pode interpelar o governo para exigir acção.
O que incomoda os porta-vozes, contudo, não é o mau jornalismo, mas sim a exposição das omissões do governo e da sua aparente perplexidade geral. Se você não informa quando podia informar e passa a vida dizendo “estão a mentir esses aí”, dificilmente você vai convencer a esfera pública que ela está a ser mal informada. Foi assim com a guerra da Renamo. Durante anos a fio a Frelimo manteve a população na ignorância falando de “bandidos armados”. Emitia aqueles comunicados trágico-cómicos que diziam “bandidos armados atacaram a Aldeia Comunal 3 de Fevereiro, queimaram habitações, raptaram dezenas de pessoas, roubaram várias cabeças de gado e fugiram em DEBANDADA”. Hoje fala de “malfeitores”...
O que esta discussão levanta para mim é algo mais fundamental do que a simples questão de determinar os limites da liberdade de expressão. Tem a ver com o entendimento que se tem do desafio de governação. A ideia predominante em Moz é de que governar é cumprir um programa de boas intenções. Não é que seja completamente equivocado pensar assim, mas é bastante limitado. Governar é criar condições para que quem tem boas intenções encontre espaço para as satisfazer. O estado moderno oferece uma ferramenta estratégica muito útil: a cidadania. Governar é reforçar a cidadania. Reforçar a cidadania significa garantir as liberdades consagradas na constituição (essa é a tarefa que o Presidente recebeu na sua inauguração). Dito doutro modo, todas as boas intenções contidas no programa eleitoral não valem sequer a folha de papel onde estão escritas se para a sua satisfação o governo se sentir na obrigação de atentar contra a cidadania. Parece difícil governar desta maneira, mas não é. É a forma mais segura de criar instituições fortes e ganhar a confiança das pessoas.
É por esta razão que considero profundamente confrangedor que o nosso governo dê ouvidos – e confiança – a “porta-vozes” que têm uma relação difícil com a decência democrática. É claro que um governo não pode passar a vida a se distanciar de toda a gente que presume falar em seu nome. O problema é que a essas pessoas foram confiadas funções importantes, o que significa que o governo não se sente incomodado pela sua companhia apesar de constituirem um perigo à saúde da esfera pública. Só que não é apenas o silêncio do governo que incomoda. É o silêncio de muita gente decente que simpatiza com ou milita na Frelimo, mas por medo, conveniência ou oportunismo fica calada, não se distancia dessas pessoas, nem exige que o partido o faça. Isso não é militância, nem disciplina partidária. É indiferença em relação ao País. Algumas pessoas que se dizem da Frelimo deviam ter muita vergonha de si próprias porque um partido que se sente bem representado – ou se deixa representar – por indivíduos da estirpe de Julião João Cumbane e Gustavo Mavie é um partido que, no fundo, detesta o País que governa.
Tão simples quanto isso.
Não é bem verdade que a liberdade de expressão protege o pensamento e, por essa via, a dignidade humana. A liberdade de expressão protege aquele que tem o poder de nos mandar calar a boca da sua própria falibilidade humana. Quando você tem poder você fica muito vulnerável às suas próprias emoções, o seu juízo fica toldado e, muito facilmente, você fica impenetrável à razão. Foi assim com Samora. Embora esta ideia tenha sido adaptada juridicamente à constituição política liberal, ela não é prerrogativa dos europeus. Em muitos sistemas políticos africanos, sobretudo na nossa região, havia aquelas pessoas que tinham a função de cantar louvores ao rei. Não eram lambe-botas como os temos hoje espalhados por aí. Eram pessoas cuja tarefa era também falar das fraquezas do rei para que este não perdesse a modéstia e, consequentemente, o discernimento.
Alguns porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo” não têm consciência disto porque o seu forte não parece ser interpretar as coisas. O seu forte é apenas defender alguma coisa, não importa qual, desde o momento que ela, aos seus olhos, proteja a prerrogativa do poder. Não são o tipo de militantes que dão vigor a uma organização. Destroem-na por tudo quanto fazem para a protegerem de supostos inimigos. Uma característica marcante deste tipo de porta-vozes é o instinto quase animal de reagir a uma interpelação crítica questionando a pessoa que a fez. Com isso, presta-se um mau serviço à própria organização, pois o que mais devia interessar a um partido não é quem disse o quê, mas sim o que o que foi dito significa para a sua organização. O que não está bem? O que deve ser melhorado? Se estiver tudo bem, bom, tudo bem, não há razão para pânico. Reagir à crítica tapando os ouvidos é uma grave recusa de ajudar a própria organização a ser forte e resiliente.
Dito isto, devo também confessar que não sou fã do tipo de jornalismo feito pela CartaMoz. Várias vezes critiquei a pobre qualidade das suas reportagens sobre a violência em Cabo Delgado. Há, para mim, graves violações do profissionalismo numa boa parte dessas reportagens – em duas ocasiões dei parabéns por artigos bem conseguidos, um dos quais, vim a saber mais tarde, tinha sido da autoria da Lusa! Nunca, contudo, me ocorreu sugerir que esse jornal fosse proibido de fazer o seu trabalho da maneira pouco profissional como o tem feito, nem mesmo me passou pela cabeça acusar o jornal de falta de patriotismo. Na verdade, não me ocorreu fazer isso pelas mesmas razões que me levaram, um dia, a criticar com veemência a intenção de processar o nosso físico nuclear pelas ameaças que ele andou a proferir contra gente decente no seu mural. Uma sociedade que só recorrendo à justiça é capaz de civilizar o discurso público é uma sociedade doentia. Deve ser possível, através do discernimento e decoro, levar as pessoas a respeitarem a sua profissão assim como a respeitarem também a dignidade dos outros.
O mau profissionalismo de certos jornais não coloca sobre o governo a obrigação de agir contra esses órgãos. Coloca sobre o cidadão a obrigação de ter mais discernimento. Coloca sobre os outros órgãos de comunicação a obrigação de prestarem melhor serviço para suprirem as lacunas dos maus. O mau jornalismo coloca sobre o governo apenas dois tipos de responsabilidade: um consiste em criar condições para que se faça um consumo responsável de conteúdos mediáticos. Como se faz isso? Investindo numa educação de qualidade. O outro tipo de responsabilidade consiste na introspecção sobre a sua própria acção e o que precisa de fazer para que conteúdos problemáticos não envenenem a esfera pública. Só estas duas responsabilidades. Um governo decente e com sentido de responsabilidade preocupa-se apenas com estas coisas, não com a perseguição de maus jornalistas. É mesquinho todo o governo que está preocupado em saber se as pessoas falam bem de si ou não.
Mas é justamente aqui onde está o problema dos porta-vozes (in)oficiais da “Nova Frelimo”. Eles sabem que o governo tem uma política de informação miserável em relação a tudo, especialmente em relação a Cabo Delgado. Se alguém reunir todos os pronunciamentos feitos pelas autoridades sobre Cabo Delgado não vai ter a possível dimensão real do problema (segundo o Comandante Geral da Polícia, há dois anos, o problema devia ter sido resolvido em dois dias!). Vai pensar que se trata mesmo de grupos dispersos de malfeitores que aterrorizam as populações. Existem, entretanto, vários estudos, mal e bem feitos, que dão conta dum problema gravíssimo. Em países onde os governos respeitam a sociedade o problema teria merecido uma informação detalhada que também partilhasse a estratégia que o governo desenhou para com ele lidar. Se calhar há muito que, em Cabo Delgado, devia ter sido declarado um estado de emergência para lidar com a situação. O que piora a nossa situação é que temos um principal partido de oposição com o rabo preso e que, por isso, nem pode interpelar o governo para exigir acção.
O que incomoda os porta-vozes, contudo, não é o mau jornalismo, mas sim a exposição das omissões do governo e da sua aparente perplexidade geral. Se você não informa quando podia informar e passa a vida dizendo “estão a mentir esses aí”, dificilmente você vai convencer a esfera pública que ela está a ser mal informada. Foi assim com a guerra da Renamo. Durante anos a fio a Frelimo manteve a população na ignorância falando de “bandidos armados”. Emitia aqueles comunicados trágico-cómicos que diziam “bandidos armados atacaram a Aldeia Comunal 3 de Fevereiro, queimaram habitações, raptaram dezenas de pessoas, roubaram várias cabeças de gado e fugiram em DEBANDADA”. Hoje fala de “malfeitores”...
O que esta discussão levanta para mim é algo mais fundamental do que a simples questão de determinar os limites da liberdade de expressão. Tem a ver com o entendimento que se tem do desafio de governação. A ideia predominante em Moz é de que governar é cumprir um programa de boas intenções. Não é que seja completamente equivocado pensar assim, mas é bastante limitado. Governar é criar condições para que quem tem boas intenções encontre espaço para as satisfazer. O estado moderno oferece uma ferramenta estratégica muito útil: a cidadania. Governar é reforçar a cidadania. Reforçar a cidadania significa garantir as liberdades consagradas na constituição (essa é a tarefa que o Presidente recebeu na sua inauguração). Dito doutro modo, todas as boas intenções contidas no programa eleitoral não valem sequer a folha de papel onde estão escritas se para a sua satisfação o governo se sentir na obrigação de atentar contra a cidadania. Parece difícil governar desta maneira, mas não é. É a forma mais segura de criar instituições fortes e ganhar a confiança das pessoas.
É por esta razão que considero profundamente confrangedor que o nosso governo dê ouvidos – e confiança – a “porta-vozes” que têm uma relação difícil com a decência democrática. É claro que um governo não pode passar a vida a se distanciar de toda a gente que presume falar em seu nome. O problema é que a essas pessoas foram confiadas funções importantes, o que significa que o governo não se sente incomodado pela sua companhia apesar de constituirem um perigo à saúde da esfera pública. Só que não é apenas o silêncio do governo que incomoda. É o silêncio de muita gente decente que simpatiza com ou milita na Frelimo, mas por medo, conveniência ou oportunismo fica calada, não se distancia dessas pessoas, nem exige que o partido o faça. Isso não é militância, nem disciplina partidária. É indiferença em relação ao País. Algumas pessoas que se dizem da Frelimo deviam ter muita vergonha de si próprias porque um partido que se sente bem representado – ou se deixa representar – por indivíduos da estirpe de Julião João Cumbane e Gustavo Mavie é um partido que, no fundo, detesta o País que governa.
Tão simples quanto isso.
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