sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O nome da sociologia moçambicana está nas notas de rodapé

O nome da sociologia moçambicana está nas notas de rodapé
É normal pensar que já que uma vez que a ciência produz conhecimento todo o ramo da ciência necessariamente se define pela coisa sobre a qual ele produz conhecimento. Nessa ordem de ideias, a sociologia seria a produção de conhecimento sobre a sociedade. É assim que os sociólogos com falta de tempo – ou imaginação – para explicarem o que fazem descrevem a sua disciplina para os leigos. Mas não é bem assim. Para além de que essa definição seria circular – a sociologia é o estudo das coisas da sociologia... – ela retira à disciplina o mérito de ter tornado visível, através de palavras, algo imanente e que por isso resiste à visibilização. Sociedade não é uma coisa que se pegue com as mãos ou que se sinta duma ou doutra forma. Sociedade é um exercício de imaginação ao qual nos entregamos todos os dias sem disso nos darmos conta, mas sem o qual a nossa existência seria ontologicamente difícil. É uma ficção real.
Quando instituições como o mercado, a política, o judiciário, religião, etc. funcionam de forma estável – como é o caso em países que podemos chamar de “desenvolvidos” – a realidade dessa ficção torna-se mais forte e, curiosamente, permite que as pessoas convivam melhor com essa coisa imanente que se furta à visibilização. Onde as coisas não são assim, a realidade da ficção é mais ténue e, curiosamente, leva as pessoas a investirem mais numa ideia de sociedade concreta que não é o caso. Em Moz, por exemplo, o pressuposto de que a sociedade é algo bem concreto é forte e tem nos privado do recurso à imaginação tão necessária à recuperação da certeza ontológica que precisamos de ter para agirmos com maior segurança dando as coisas por adquirido. Em contextos como os nossos – peço desculpas pela imodéstia – precisamos da sociologia. Precisamos dela não para definir a sociedade, mas sim para a produzir. Sim, a sociologia é que “produz” a sociedade, ela não a estuda.
Há um homem que “produziu” a sociedade moçambicana. Carlos Serra, o primeiro e, se não estiver mal informado, único catedrático de sociologia no País. Devemos a ele a sociedade moçambicana. Ele produziu a sociedade na sua “oficina de sociologia” no Centro de Estudos Africanos como parte duma agenda intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou de “crenças anómicas de massas”. Não é possível entender o País que somos sem prestar atenção à maneira criativa como nos apoiamos em crenças, não importa que crença, para constituirmos relações entre nós, incluindo e excluíndo. Parece um espectáculo improvisado em que o director artístico apenas diz algo como “ok, vocês foram enganados por um indivíduo mau, reajam” e logo aí cada um de nós se posiciona, assume o seu papel ao ponto de com ele se confundir e em tudo o que faz ou diz vai construíndo uma teia de relações que se concretiza na reaçcão dos outros. A verdade, a ética ou a moral não são os alicerces dessa teia, pelo menos não no sentido em que eles seriam anteriores à acção, mas sim coisas negociadas no momento pelos intervenientes.
Carlos Serra começou por articular isto em torno da figura de Samora Machel na base do fenómeno ao qual ele deu o nome de “Samorismo”. Prosseguiu com as igrejas pentecostais, os linchamentos, a cólera e os raptos de menores. O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é. É uma agenda intelectual sem igual em muitos outros países, o que faz com que o tipo de sociologia que Carlos Serra faz seja muito mais do que a simples reprodução e imitação do que os outros lá nas Europas fazem para ser, na verdade, um momento fundador. Há algo de “pós-colonial” nisso, um pós-colonialismo com discernimento e saudável, pois ele não proclama apenas servindo-se dos mesmos recursos retóricos usados pelo “colonial”, no processo homogenizando a Europa e “sua” epistemologia. Ele faz uma sociologia de raiz. Temos sorte, nós os moçambicanos, sobretudo nós os sociólogos, porque temos a oportunidade de nos referirmos a uma sociologia concreta, de nos inspirarmos nela para continuarmos a “produzir” Moçambique. O nome da sociologia moçambicana é Carlos Serra, mas quem a quer conhecer de verdade tem que ler para além das entrelinhas e ter o arrojo de descer às notas de rodapé para onde ele sempre convida os seus leitores a apreciarem como ele raciocina.
Como sociólogo devo muito a ele e como sociólogo moçambicano muito mais ainda. Regressei ao convívio intelectual da sociedade que a sua sociologia produziu pelas mãos de Carlos Serra que nos finais dos anos noventa me convidou a participar num dos ciclos de conferências que ele organizava e que tanto estímulo deu à reflexão académica em ciências sociais na altura. Conhecemo-nos por email debatendo os seus escritos. A sua humildade intelectual formulou o convinte que, mais tarde, me abriu as portas da academia moçambicana – também com o amparo amigo de Severino Ngoenha – e me deu a oportunidade de também contribuir para a formação dum pensamento sociológico moçambicano. O nosso contacto foi forte e intenso durante vários anos de carinho e respeito, mas foi também vítima das redes sociais, afastamo-nos um do outro e – devo confessar a minha vergonha – eu nunca tive a coragem de esclarecer os mal-entendimentos e dizer a ele que há um certo sentido em que a sua agenda intelectual tem sido uma forte fonte de inspiração para mim. Esta é uma maneira de fazer isso.
Quando penso nos desafios da sociologia em Moçambique não o consigo fazer sem articular com a urgência de continuar a pensar o fenómeno das “crenças anómicas de massas”, pois é nele onde eu julgo se esconder o logaritmo que nos permite entender melhor a nossa sociedade. Cabo Delgado, paz definitiva, dívidas ocultas, profetas, “mazameras”, “meios extra-legais”, “trabalho e golfe”, “100 dias”, etc. eu duvido que um sociólogo de verdade possa entender estas coisas todas sem começar primeiro por entender tudo o que há por entender no objecto conceitual que Carlos Serra, bom sociólogo que é, inventou. Moçambique é isso aí e, por isso, espero que os sociólogos moçambicanos, sobretudo os mais jovens, se entreguem à grande tarefa de se juntarem a ele e continuar a construir este edifício cujos alicerces ele colocou.
Nem todos os nossos heróis vão àquela cripta fria quando chega o dia. Alguns, se calhar os mais importantes porque alimentam a nossa mente, estão escondidos em notas de rodapé, algures no Centro de Estudos Africanos ou num apartamento qualquer por aí. Precisam de saber em vida que são herois.
Yorumlar
  • Carlos Serra Obrigado, Professor. Mabel Serra Ivan Serra
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  • Lyndo A. Mondlane Isto é injusto
    Acabo saudar lhe em privado e o prof nao me menciona aqui
    Tlh 😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅😅
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  • Ricardino Dumas Isto chama se ética intelectual, que engrandece quem já é grande dos grandes.👏
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  • Bella Raquel Parabéns por esta humildade e por reconhecer no Prof. Serra a sua qualidade de pai da sociologia moçambicana. De facto é um herói.
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  • Cremildo Bahule ...ele 'e meu mentor na pesquisa academica; sob sua lideranca - ao lado de Valerito, João, Bongane, Teles, Marlene - fizemos dois volumes sobre linchamentos em Mocambique e uma terceira obra sobre a percepcao que temos sobre os estrangeiros e eles de n'os; foi meu padrinho para a edicao do meu primeiro ensaio e tantas outras largas academicas; enfim, sempre fui e sempre serei grato a ele; bayete, Carlos Serra.
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  • Pedro Guiliche Elisio Macamo, bem colocado. De facto o Carlos Serra e Severino são referências incontornáveis nas ciências sociais sociais em Moçambique e na sociologia em particular.
    O argumento da crença anómica de massas é interessante e pode ter enquadramento no modelo de sociedade e de Estado que decidimos construir a partir do escangalhamento da máquina colonial para começar um empreendimento próprio. A nossa imaginação era até aí e isso pode ter carregado consigo implicações relacionadas, que agravadas pelos índices de analfabetismo que o País tivera, não podia gerar resultados muito diferentes. Nosso projecto era a construção do Moçambique, sem no entanto clarificação para todos os intervenientes do processo sobre até onde era factível nos termos indicados. Fora disso, alguma falta de consensos.
    Entretanto, hoje mais do nunca, o debate sobre como valorizar o legado de outros nacionais que igualmente contribuíram e contribuem na edificação de Moçambique que a cada passo vai se reiventando, afigura-se pertinente. Precisamos, entretanto clarificar os pressupostos da construção do debate e ressignificar parte do nosso arcabouço para a sua utilidade futura.
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  • Jessemusse Cacinda Sem palavras
  • Orlando Bila Hiiii estou enrolado, como estudante de sociologia aprendi e ainda aprendo que a sociologia estuda a sociedade e o seu objeto específico, busca tentar compreender os fenômenos sociais. Porem com a reflexão que prof. Macamo levanta mormente para mim, faz-me lembrar a diferença que existe entre: problemas sócias vs problemas sociológicos. Onde os problemas sociais tornam-se sociologicos quando são julgados dentro da sociólogia. Todavia, obrigado pelos danos que me trouxe esta noite de sexta feira.
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    • Pedro Guiliche Orlando Bila , não me parece que precise abandonar essa abordagem. Pode aprimora-la e refinar o seu nível de tratamento. Agora, lembre-se que Elísio é catedrático e o seu nível de elaboração tem relação directa com “seu tempo de estrada”. Se Bila ainda é estudante, ainda vai a tempo de refinar sua elaboração. Comece do começo e bom fim-de-semana.
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    • Orlando Bila Pedro Guiliche Obrigado prof. Pela dica. Boa noite.
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  • Bernhard Guttsche Nós como professor es escolares estão a distribuir conhecimentos de qualquer disciplina aos nossos alunos. Até hoje não tinha pensado sobre esta actividade de ensino. Contudo precisamos uma lingua comum e uma determinada matéria. Transformar essa matéria em conhecimentos die alunos é a nossa tarefa. Obrigado pela definicão sociológica da explicacão "conhecimento" Professor!
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  • Alcídes André de Amaral Perfeita homenagem professor Elisio Macamo. Adorei! Por isso acho melhor confessar algo: Eu, pessoalmente, ficava muito triste quando nos colocavam, estudantes iniciantes que eramos (e somos), numa condição de escolha "entre este ou aquele" em plena aula em salas de aulas. Desde muito que passei a achar que não estávamos aproveitando o que de rico a nossa sociedade, com todos os problemas que somos, nos oferecia. Isso fortificou quando ouvi, da boca do próprio professor Carlos Serra, uma lamentação daquela situação. Mas agora já sinto que a sociologia não está no "ou este ou aquele" mas "entre e para além deste ou daquele". Ver a sociologia em Moçambique (veja que até agora receio falar de uma "sociologia moçambicana") como uma possibilidade a partir das "Crenças anômicas de massa" e, a partir daí, trilhar caminhos que possam nos levar à uma "sociologia moçambicana". Nós, jovens, que pelo menos são daqueles que ainda sonham em ser sociólogos nalgum dia qualquer, sabemos ou, pelo menos, temos uma ideia onde pegar, encostar-se, para um dia caminhar... Obrigado, professor Elisio Macamo.
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  • Ricardo Santos Mas que grande licao de humildade. Ou sera um ensaio cientifico sobre a humildade? Kanimambo!
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  • Moulinho Lehuany Esta classe de pessoas no nosso Moçambique nunca sarão herois, por que serão entendidos anos depois.
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  • Raul Chambote Prof. Elisio Macamo,
    Sim, temos o nosso herói escondido la no Centro de Estudos Africanos da UEM. Dele podemos nos inspirar e aprender. Meus parabéns pela honestidade intelectual e integridade. Nos os outros acreditamos que ainda temos heróis vívos de quem nos podemos inspirar e orgulhar e olhar como referência. Esse é o post do mês.
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  • Júlio Mutisse Grande Elisio
    Parabéns meu irmão.
    Valeu aquela nossa conversa de sábado mano Rogério Sitoe.
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  • Antonio Gundana Jr. Essa reflexão fez-me recordar um texto do professor sobre a possibilidade da Sociologia em Moçambique, onde argumentou que deve se focar em pesquisas de quotidiano. Acredito que o "crenças anónimas de massa" foi neste sentido!
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  • Flavio Atanasio Chongola Ode ao Singular Cidadão. "Um" Sociólogo/"Poeta, mesmo Solar como" ele, "na terra é pouca coisa"...
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  • Rildo Rafael Excelente texto sobre os alicerces de uma "sociologia moçambicana" como desafio de partida e nunca de chegada. Carlos Serra (pai), o nosso labirioso sociólogo "respira" sociologia quotidianamente nos seus escritos e nas suas labiriosas "oficinas" que produziu vários "mecânicos" (entenda-se no sentido conotativo) que tentam desbravar e compreender este quotidiano e não propor soluções. Os seus textos inspiraram e são referência obrigatória para todos aqueles que se interessam pela esta área do saber (quer os formados, aspirantes, curiosos, leigos e muito mais). O ofício sociológico do Carlos Serra sempre pautou por chamar a si a interdisciplinaridade, fazendo o casamento com a dimensão histórica, antropológica e crítica dos fenómenos sociais tratados sob a perspectiva sociológica. Carlos Serra sempre esteve disponível para "combater" pela mentalidade sociológica e ainda sugerir "Novos" combates pela mesma mentalidade. A sua oficina envolveu vários pesquisadores nacionais em obras por si organizadas e direccionadas na perspectiva de desbravar e compreender este quotidiano que aos "olhos" dos demais parecia evidente, mas ele sempre se predispos a duvidar e investigar, expressão essa que o caracteriza e que devia ser um recital para qualquer investigador/pesquisador. São inúmeros os projectos de pesquisa que passarm pelo Carlos Serra. O seu intessese pela pesquisa o fez prosseguir pelos blogues, onde a sua oficina de sociologia não se cansa de problematizar este mesmo quotidiano, mesmo quando se anunciou a "morte" dos blogues ele resistou! Professor Elisio Macamo no dia que perder a conta dos seus artigos publicados no jornal notícias, sobretudo no "reinado" do Rogério Sitoe conte comigo, ate hoje conservo estes papéis no meu acervo (recortes de jornais), uns com 18 anos, outros com 17 anos, 16 anos, 15 anos de conservação, nem quero falar da revista mais e do seu dueto com o Manuel Macia nos "Chapas Somos Nos"...O Sociologia para Leigos ajuda a sair dos lugares comuns....Parabéns pelo texto....Abraços...
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  • Rui Paulo Lobão Afonso Meu caro Elisio Macamo. Esta rede social tem permitido convergências e divergências entre nós. Nesta publicação, pela qual tenho que dar os parabéns, leio duas coisas. Um elogio, muito mais do que merecido, a Carlos Serra, e uma análise, despida de conceitos erróneos, muito bem factualizada. Gosto de o ler, assim. Traga um pouco mais das nossas ciências sociais para as redes sociais. Porque o sabe fazer. Abraço
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  • Luis Baptista Linda homenagem ao nosso professor-mor... a minha monografia foi, na verdade, uma continuação das crenças anomicas de massa... Quando ele falou do Samorismo, logo senti-me preparado e com ferramentas necessárias para falar do Dhlakamismo...
  • Aristides Mucopa Mucopa Texto prazeroso!

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