sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A ciência da observação eleitoral

A ciência da observação eleitoral
Ciência, para muitos, é a produção sistemática de conhecimento. Para mim, ciência é melhor entendida como a produção de dados, isto é a transformação de fenómenos em pedaços de informação na base da qual podemos emitir opinião abalizada sobre alguma coisa. Uma opinião que se apoia em dados é um modelo da realidade através do qual a gente se coloca em posição de melhor entender algum fenómeno. Nas ciências sociais as nossas “opiniões” não são seguras. Elas são apenas uma aproximação à realidade e, por isso, sempre passíveis de revisão à medida que formos capazes de melhorar a qualidade dos nossos dados e da análise. Por isso, a qualidade do trabalho científico não se mede pelos resultados que obtemos, ainda que importantes, mas sim pela qualidade do procedimento que nos leva a esses resultados. Todo o cientista que se preza está mais preocupado com a melhoria do procedimento do que com os resultados.
A produção de dados implica a observação sistemática. Observar sistematicamente não é aguçar bem os sentidos, mas sim prestar atenção a tudo aquilo que pode interferir na qualidade dos dados. Nas ciências sociais o que interfere é quase sempre a qualidade dos conceitos, a pertinência da relação que estabelecemos entre os conceitos, as decisões que tomamos sobre o que considerar assim como, naturalmente, os factores subjectivos que sempre nos acompanham. A observação sistemática é um exercício controlado que visa sempre transformar dados em razões para crer (sim, crer) que uma certa opinião constitua explicação razoável para um determinado fenómeno. Por exemplo, o relatório da Missão de Observação Eleitoral da União Europeia conclui, na página 42, referindo-se aos resultados eleitorais alcançados pela Frelimo em certas zonas, o seguinte:
“Tal inesperada, direcionada e significante mudança nas preferências de voto, estritamente limitadas aos distritos da oposição, e contrariando os resultados das eleições autárquicas de 2018, são altamente improváveis tanto devido ao ambiente político polarizado como às preferências de voto profundamente enraizadas. A maioria da FRELIMO em todos os 154 distritos foi assim alcançada através de um cuidadoso foco nos distritos e províncias da oposição”.
A opinião que a MOE está a emitir é simples: Aqui houve gato (ou manipulação das eleições). O fenómeno que se procura entender é se dá para confiar ou não nos resultados eleitorais. Se tiver havido gato não podemos confiar. Os dados de que os observadores se servem para chegar à opinião consistem nas inúmeras irregularidades verificadas. A transformação desses dados em razão para crer na tese da manipulação consiste num princípio geral segundo o qual se irregularidades forem acompanhadas por uma alteração radical de preferências de voto profundamente enraizadas, elas devem ser vistas como parte dum esquema de manipulação eleitoral. O raciocínio é, do ponto de vista metodológico, impecável e não tem nada a ver com más intenções de quem o formula. Só que é problemático e, antes de ser celebrado como a revelação da verdade, precisa de ser seriamente reflectido.
O primeiro aspecto a reflectir é a própria inferência. Podemos dizer à vontade que sempre que irregularidades forem acompanhadas pela alteração do padrão de voto devemos concluir que houve manipulação? Infelizmente, é neste ponto onde muita pesquisa em ciências sociais encalha. O meu palpite é que acima de dois terços de trabalhos científicos em estudos africanos falha neste ponto e perde a sua qualidade por causa disso. Há três razões que explicam e documentam isso. A primeira tem a ver com o facto de que um argumento colocado desta maneira é circular, pois a conclusão repete apenas as suas premissas. O que é preciso fazer aqui é DEMONSTRAR a ligação entre as irregularidades e a manipulação. Essa seria a segunda razão. Essa demonstração não se faz de forma forínsica, claro, mas sim através da produção de mais dados!
Devo dizer que há um elemento disso neste caso que é a produção de dados sobre comportamento eleitoral no passado, uma espécie de prova dos nove. A questão, porém, é que esses dados devem ser submetidos a um exame analítico que elimina todas as outras explicações potenciais para a alteração radical da preferência de voto. Elas incluem coisas como a própria actuação dos outros partidos, as mudanças que ocorreram na zona desde as últimas eleições, a qualidade dos candidatos apresentados, etc. A terceira consiste na especificação das condições em que irregularidades acompanhadas de alteração de voto podem ser vistas como sinal de manipulação. Aqui a porca torce o rabo porque são raros os trabalhos em ciências sociais que têm pachorra para fazer isso.
Então, o segundo aspecto a reflectir aqui é bem sério. Como devemos lidar com propostas de explicação do mundo? De há algum tempo para cá esta questão tem vindo a ser discutida com afinco nos meios académicos, sobretudo nos EUA, ao abrigo da questão da replicação de resultados de pesquisa. Interessa trazer essa discussão para aqui porque o que ela revela é pertinente para a avaliação do relatório da MOE da UE. Essencialmente, o que essa discussão mostra é que a qualidade da pesquisa (sobretudo em psicologia social, economia, sociologia, ciência política, epidemiologia, etc., sobretudo as disciplinas que fazem recurso a metodologias quantitativas) é altamente afectada pelas decisões que os pesquisadores fazem sobre o que considerar. Não se trata de burla, nem coisa parecida. Trata-se apenas de não ter suficientemente em conta que há um número elevado de factores que interveem no mundo real e que são difíceis de computar nas nossas operações analíticas.
Agora vou falar especificamente sobre o relatório da MOE. Uma coisa é fazer uma descrição exaustiva do que os observadores observaram, outra é adjectivar. A adjectivação é sempre sinónima duma opinião que procura explicar algum fenómeno, portanto, o trabalho que um pesquisador faz. As inúmeras irregularidades apresentadas no relatório são o resultado de recolha sistemática e não-sistemática de dados. Em várias passagens o relatório diz que “foi reportado”, estilo “fontes” de CartaMoz, o que à partida constitui uma fonte de insegurança em relação à qualidade dos dados. Mas mais grave do que isso é que a preferência, implícita, pela tese da manipulação não dá nenhum peso a outros factores importantes tais como a desorganização habitual das nossas instituições, a falta de brio profissional, o excesso individual de zelo, coincidências, etc. Não quero dizer que estes outros factores expliquem melhor os resultados eleitorais, mas quem não se dá à maçada de os eliminar analiticamente da equação não se pode permitir nenhuma adjectivação ou afirmações peremptórias como “preferências de voto profundamente enraizadas”. Com que base um observador eleitoral pode falar de preferências de voto PROFUNDAMENTE ENRAIZADAS?
Ontem, reproduzi um outro trecho problemático do relatório: “Moçambique continua numa das posições mais baixas quanto ao Índex de Igualdade de Género, com uma cultura fortemente patriarcal onde os papéis do homem e da mulher e a discriminação baseada no género continuam altamente enraizados, levando a que as mulheres enfrentem muitas dificuldades na vida diária, incluindo a prevalência de violência doméstica e casamento prematuros. A lei contra os casamentos prematuros foi aprovada a 22 de Outubro de 2019 para combater esta práctica comum em muitas províncias do país. A mulheres têm menos acesso a educação resultando em baixa independência financeira e, consequentemente, numa menor participação na vida política comparativamente aos homens”.
Qual é o país no mundo que não pode ser descrito como tendo uma “cultura fortemente patriarcal”? Porque no caso de Moz essa cultura seria relevante para explicar seja o que for? O que significa dizer que os papéis do homem e da mulher e a discriminaçao baseada no género continuam altamente enraizadas? Com base em quê? E porque esse enraizamento é relevante para explicar seja o que for? Porque a cultura patriarcal moçambicana explica necessariamente a prevalência de violência doméstica, as dificuldades na vida diária das mulheres e casamentos prematuros? Com base em quê exactamente? Porque a aprovação recente da lei contra casamentos prematuros constitui confirmação da cultura patriarcal? Reparem que não estou a dizer que o relatório esteja a mentir. Estou a dizer que faz ilações passíveis de serem desafiadas por pressuporem várias coisas que não são tão evidentes como se supõe. Numa passagem também problemática o relatório diz “... dos 10 governadores provinciais, somente 3 mulheres foram eleitas (Gaza, Niassa e Manica)”. É uma frase infeliz porque sugere que possa ter havido mais candidatas que não foram eleitas por causa da cultura patriarcal profundamente enraizada, quando o que aconteceu foi que todos os candidatos a governador avançados pela Frelimo foram eleitos!
A pobreza do relatório fica particularmente patente no capítulo das recomendações, pois cada uma delas mostra justamente o que não entendemos para podermos entender as eleições. O sumário executivo apresenta nove recomendações, mas vou pegar na quarta para ilustrar o que quero dizer. Diz o seguinte: “Criar um ambiente seguro e livre de intimidação para a participação de observadores eleitorais e representantes dos partidos em assuntos políticos e eleitorais.” Quem, como e com que garantias num ambiente político como o moçambicano? A sugestão parece ser de que o governo é que deve fazer isto, mas o que precisamos de saber para partirmos do princípio de que essa recomendação possa ter possibilidade de êxito é porque algo aparentemente tão simples quanto isso não foi feito. E a porca volta a torcer o rabo.
Resumindo: temos todo o interesse em saber que ciência está por detrás da observação eleitoral. Não há nenhuma “mentira” no relatório. Há afirmações não substanciadas, sim, mas o quadro que se pinta sobre as irregularidades é credível. O maior problema para mim está na adjectivação baseada em mera opinião – porque a observação não foi sistemática, nem controlada (ainda que tenha seguido princípios estabelecidos) – e na falta de decoro diplomático que pode conduzir a conflitos reais no País. Não quero com isso dizer que a MOE não deva falar das irregularidades. Pode, mas sem emitir nenhuma opinião sobre se o processo foi limpo ou não, se dá para confiar ou não. Pode deixar que os “dados” falem.
Agora, nenhuma pessoa sensata em Moçambique se devia conformar com o processo eleitoral. Volto a repetir o apelo que tinha feito aquando das últimas eleições, e depois das mais recentes, nomeadamente que o governo se sente com todas as forças vivas da sociedade para reflectir sobre uma reforma profunda do sistema político de modo a recuperar a confiança. Da última vez fui ignorado a favor da negociação da paz definitiva temporária. Desta vez sou ignorado a favor dos 100 dias. Mas a coisa é séria. Temos que criar maneiras de sermos nós os nossos próprios observadores e não deixar que assuntos sérios da nossa terra sejam tratados de forma problemática por pessoas que pensam que entendem. A escolha é nossa.
Sei que muitos no País vão passar a maior parte do tempo a discutir as conclusões do relatório ou a insultarem a MOE. Aos colegas académicos peço maior interesse pela discussão metodológica. Dei o pontapé de saída.
Podem baixar o relatório aqui:
open.ac.uk
Yorumlar
  • Gigi Guerreiro Elisio Macamo Entendi Professor. Referente ao capítulo Patriarcado/Processo Eleitoral, sim, evidentemente há que se responder a essas questões. É um ponto extremamente importante para que se possa entender e por fim passar à acção de mudança (se esse fôr o ponto em causa). Para simplificar a coisa, não é só concluir e afirmar, há que se explicar como se chegou a essa conclusão.
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    • Elisio Macamo é isso. não é a simples existência duma "cultura patriarcal" que explicaria porque isto ou aquilo acontece com os homens e com as mulheres. há sempre factores intervenientes e esses devem ser considerados. inversamente, não é pela ausência da cultura patriarcal que se explica a menor vulnerabilidade das mulheres na europa. isso seria uma simplificação grosseira das coisas.
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  • Brazao Catopola Professor, eu concordo com a luta pelos procedimentos metodológicos, porém a minha questão começa no para quem e a partir de onde estes autores escrevem. Acredito que a grande questão deles não é debate com a academia, embora seja passível, este relatório, de debate na academia. Por esta razão, talvez, exista no relatório a posição de "conselheiro desejado" ao país e a daí emitirem quer o juízo de valores, quer posição desejada no relatório na medida que estes se compreendem como o padrão. Agora, há todo um mérito seu, e nisso concordo, em chamar a academia para pronunciar-se sobre o relatório. Vamos, então, a produção dos dados.
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    • Elisio Macamo o problema é que estes "relatórios" têm consequências na nossa sociedade. não nos podemos alhear deles. nem estaríamos a fazer justiça ao esforço que eles próprios evidenciaram. a nossa responsabilidade torna-se maior ainda porque justamente alguns destes relatórios se dizem não académicos, mas passam "verdades".
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  • Brazao Catopola Não terminei de ler o relatório. Mas daqui a hora e meia volto e conversamos
  • Ricardino Dumas "Preferência de voto profundamente enraizado" significa o quê? Voto de eleitorado rural? Voto de militantes urbanos? Não ficou claro. Pode ser o problema de rigir conceitual que o Prof Macamo colocou. ABRAÇO
  • António Francisco 1000 no cravo e uma na ferradura.
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