Esbirros de circunstância (1)
O mais pobre
Com o ano a terminar, talvez faça sentido colocar alguns pontos nos “i’s”. Não aconselho ninguém a consultar o significado de “esbirro” em espanhol, ainda que revele mais sobre a pessoa que me descreveu assim do que sobre mim. Suponho que essa pessoa se referisse às várias reflexões que tenho feito, e espero continuar a fazer, no Facebook sobre o País. Confesso que uma grande motivação por detrás dessas reflexões é de fazer frente ao miserabilismo que caracteriza muitas abordagens analíticas do País. Eu tenho orgulho de ser moçambicano e sinto muita vergonha de todo o moçambicano que acha que o seu País é o pior do mundo, não presta para nada e, curiosamente, só ele/ela é que constitui excepção. Não tenho paciência para isso e, por isso, insisto em partilhar outras maneiras de ver o País que resistem à tentação do miserabilismo para o bem de todos nós.
Ao longo de alguns textos vou me debruçar sobre aquilo que considero serem os principais desafios analíticos que o País nos coloca e contrapor a narrativa miserabilista que alguns instrumentalizam para a sua própria reprodução. Neste primeiro, que vai ser muito longo, reproduzo, na verdade, um texto escrito em 2014 a comentar o relatório do desenvolvimento humano. Não existem factos novos que exijam a revisão do argumento original. Dito doutro modo, considero analiticamente problemática toda a abordagem do País assente nesse Relatório se partir do princípio de que ele descreve Moz como ele é. Eis o texto:
“Não quero ser mal entendido. Este Relatório é muito importante. Dá-nos uma certa ideia do progresso (ou não) que estamos a fazer. Isso é pertinente. É bom, ainda que doloroso, saber como nos situamos em relação a outros países. O RDH, contudo, não é, pelo menos para mim, um bom guia para o Governo, nem mesmo para a discussão pública. O debate sobre o desenvolvimento em Moçambique seria melhor feito sem referência a este instrumento. (...) O Índice do Desenvolvimento Humano (IDH) é uma posição política disfarçada de instrumento quantitativo objectivo. Isso não faz dele necessariamente mau instrumento. Mas acho importante ter isso em conta para a saúde do debate público. O IDH é um argumento a favor de políticas públicas que apostam em indicadores sociais como saúde e educação. É um argumento social democrata, digamos, contra o neo-liberal. Não sou a favor do argumento neo-liberal, mas tenho imensas dificuldades com um indicador “objectivo” que defende uma posição política. Ainda volto a falar disto.
Antes disso, preciso de dizer algumas coisas sobre o próprio indicador. Ele é construído a partir de três índices, nomeadamente o rendimento per capita (ajustado segundo o critério de paridade de poder de compra), a esperança de vida à nascença e o nível de educação (que dá maior peso aos níveis de alfabetismo e menos às outras formas de educação). Cada um destes índices tem o mesmo peso na computação do IDH, o que teoricamente, pelo menos, pode produzir resultados engraçados como é a comparação entre Guiné Bissau e Moçambique. Nos indicadores relativos à educação somos ligeiramente superiores à Guiné (Guiné Bissau: 2,3 e 9,0 em relação à escolaridade média e previsão de anos de escolaridade, respectivamente; Moçambique: 3,2 e 9,5, respectivamente). Mas a Guiné está uma posição acima de nós (177 contra 178). Porquê? Porque na esperança de vida os guineenses vivem mais 4 anos do que nós (54,3 contra 50,3) e no rendimento per capita têm 81 cêntimos a mais do que nós (1.090 contra 1.011). O Malawi ocupa um lugar 4 posições acima de nós (174) não porque o seu rendimento per capita seja melhor (apenas 715), mas porque nos outros indicadores está ligeiramente melhor.
Porque digo que as comparações assim feitas produzem resultados engraçados? Por duas razões. A primeira tem a ver com o facto de os índices se referirem a cada um desses países, portanto, servirem pouco para a comparação. Se a Guiné divide um Produto Nacional Bruto pequeno por uma população pequena pode facilmente obter um rendimento per capita superior a de um país que, em termos absolutos, tem mais, mas também uma população maior. Naturalmente que se pode dizer, neste caso, que esse outro país, Moçambique no caso, tem a obrigação de render mais para compensar esse desequilíbrio. Ademais, a baixa expectativa de vida moçambicana pode também estar relacionada com todo o conjunto de causas de morte (acidentes, por exemplo) que não são tão fortes noutros países porque não têm nem estrada, nem viaturas suficientes... Mas aqui intervém outro factor. Estes índices não têm necessariamente história, isto é, fora das classificações anuais, não descrevem o processo através do qual se distribui a riqueza. Os índices captam apenas o momento. Pode ser que a actual constelação moçambicana tenha maior potencial duma distribuição mais sólida e sustentável do que a da Guiné ou do Malawi. Vemos um pouco disto com Cabo Verde que desceu da posição 125 para 126 e corre o risco de continuar a queda pelo simples facto de que os indicadores são sincrónicos e não diacrónicos na sua própria dinâmica interna. Por acaso penso que outros dados moçambicanos revelam maior solidez, embora a sua realização dependa naturalmente do tipo de políticas que serão adoptadas no futuro.
A segunda razão é própria da metodologia das ciências sociais e tem o nome de “operacionalismo”. O “operacionalismo” é a ideia de que a realidade é o que um conceito observa (ou mede). O exemplo típico disto é o coeficiente de inteligência. Esse coeficiente não mede, no fundo, a inteligência, mas sim o exercício operacional de que se serve para medir a inteligência. Todos os países que são melhores do que Moçambique são-no não porque estejam melhor, sejam melhores, façam tudo bem, etc., mas sim porque estão melhores em relação a este instrumento específico. Este ponto é importante e devia ser reflectido com maior cuidado na discussão pública. E já explico porquê.
Primeiro, o IDH não considera coisas como meios de transporte, segurança, qualidade de vida, acesso à electricidade, água, emprego, número e qualidade de universidades, etc. Quando alguém exclama: “até a Guiné que não tem governo estável há anos está melhor do que nós!” isso pode revelar ingenuidade. Longe de mim querer desvalorizar a Guiné, um país com o qual tenho uma ligação emocional forte por causa de todos os amigos e colegas que lá tenho, mas esse tipo de comparação faz mal à Guiné e faz mal a Moçambique porque não faz justiça à real situação de cada um desses países. Bissau não é nem Maputo, nem Beira, nem mesmo Xai-Xai. A distribuição equitativa de pobreza é premiada pelo IDH. Ou por outra, o que o índice diz é apenas isso: em relação a estes três critérios arbitrariamente escolhidos pelo PNUD para descrever (e normativamente definir) o desenvolvimento a situação é assim. Segundo, o instrumento é um mau instrumento de avaliação de desempenho porque pode estar a usar critérios estranhos aos que os países usam. No caso de Moçambique (e independentemente do que a gente pensa da agenda política de Guebuza) a questão torna-se mesmo bicuda. Ele já deu a entender que aposta mais no crescimento económico (portanto, no rendimento) que através do famoso “empreendedorismo” que ele tem pregado vai libertar a iniciativa privada e garantir, dessa maneira, o fomento individual e colectivo. Repito: a gente pode não estar de acordo com esta política; essa política pode estar eivada de contradições. Seja como for, o IDH não constitui o melhor modelo para medir o desempenho em Moçambique porque ele premeia justamente o tipo de coisas que no contexto desta política só mais tarde virão.
Primeiro, o IDH não considera coisas como meios de transporte, segurança, qualidade de vida, acesso à electricidade, água, emprego, número e qualidade de universidades, etc. Quando alguém exclama: “até a Guiné que não tem governo estável há anos está melhor do que nós!” isso pode revelar ingenuidade. Longe de mim querer desvalorizar a Guiné, um país com o qual tenho uma ligação emocional forte por causa de todos os amigos e colegas que lá tenho, mas esse tipo de comparação faz mal à Guiné e faz mal a Moçambique porque não faz justiça à real situação de cada um desses países. Bissau não é nem Maputo, nem Beira, nem mesmo Xai-Xai. A distribuição equitativa de pobreza é premiada pelo IDH. Ou por outra, o que o índice diz é apenas isso: em relação a estes três critérios arbitrariamente escolhidos pelo PNUD para descrever (e normativamente definir) o desenvolvimento a situação é assim. Segundo, o instrumento é um mau instrumento de avaliação de desempenho porque pode estar a usar critérios estranhos aos que os países usam. No caso de Moçambique (e independentemente do que a gente pensa da agenda política de Guebuza) a questão torna-se mesmo bicuda. Ele já deu a entender que aposta mais no crescimento económico (portanto, no rendimento) que através do famoso “empreendedorismo” que ele tem pregado vai libertar a iniciativa privada e garantir, dessa maneira, o fomento individual e colectivo. Repito: a gente pode não estar de acordo com esta política; essa política pode estar eivada de contradições. Seja como for, o IDH não constitui o melhor modelo para medir o desempenho em Moçambique porque ele premeia justamente o tipo de coisas que no contexto desta política só mais tarde virão.
O que esta discussão mostra – e volto aqui à questão do disfarce político – é o cuidado que devemos ter com instrumentos aparentemente objectivos, mas que no fundo escondem premissas descritivas e normativas que conferem sentido ao que eles medem. Para o debate político no país isto é terreno de eleição, pois os críticos do governo sempre podem dizer com “dados concretos” que estamos mal (até o Malawi, meu Deus!) e os doadores podem insistir nesses malditos objectivos do milénio. Só que o Governo faria muito bem em se concentrar no que acontece no país, sobretudo na distribuição local e regional, social e económica da riqueza e da pobreza. É lá onde a música toca, não em índices feitos à medida duma visão do mundo que serve como luva o objectivo de reproduzir uma burocracia internacional.”
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