quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas?

Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - Protecção a um Inábil Caçador de Ratazanas (3)
Em Madzucane, localidade de Manjacaze onde nasci, a caça aos passarinhos e às ratazanas era uma actividade que ocupava a generalidade dos rapazes da minha geração. A minha inépcia para estas actividades era proverbial. Apesar de ter acompanhado as hordas de meninos que, fisga em punho, se embrenhavam pelos bosques à procura daquelas fontes alternativas de proteína animal, não me lembro de ter fisgado um único pássaro. No entanto, o meu sucesso nas armadilhas às ratazanas (swibangwas) intrigou durante algum tempo meninos mais hábeis na confecção daqueles artefactos que, aparentemente, tinham menos êxito do que eu. O facto é que eles assistiam as minhas toscas tentativas de confeccionar os swibangwas e davam-se conta de que nenhuma ratazana digna desse nome se poderia deixar apanhar. Só que, nas madrugadas orvalhadas daquelas paragens, quando nos embrenhávamos pela savana a examinar as nossas armadilhas, espantavam-se ao testemunhar o número de ratazanas que eu havia caçado. Afinal, o que acontecia era que eu estava sendo protegido por alguns dos rapazes mais velhos que apreciavam o facto de eu pertencer ao grupo. Para evitar que eu desistisse em consequência dos previsíveis desaires, sorrateiramente, dedicavam-se a corrigir os meus imperfeitos swibangwas.
A emergência de grande parte das empresas que se encontram neste momento encerradas pode ser comparada àquela protecção ao inábil caçador de ratazanas que eu era. O surgimento dessas empresas esteve, em grande medida, ligado a um paradigma de desenvolvimento que se estruturava na base da protecção à indústria nascente. Esta foi uma prática que prevaleceu desde o período colonial, com maior destaque para os princípios da década 60. O modelo de desenvolvimento seguido, baseado na alocação induzida dos factores de produção, foi pedir emprestado muitos dos seus elementos ao paradigma de desenvolvimento baseado na substituição das importações. O paradigma da substituição das importações foi um modelo de desenvolvimento que prevaleceu por várias décadas e que se destinava a alavancar as economias dos países subdesenvolvidos da América Latina, Ásia e África. Substituição de importações entender-se-ia como todo um processo de desenvolvimento que, respondendo às restrições do comércio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições históricas distintas, a experiência de industrialização dos países desenvolvidos.
O objectivo das políticas proteccionistas adoptadas em Moçambique durante o período colonial era o de gerar uma economia suficientemente flexível, diversificada, capaz de superar choques, poder responder a estes e, por conta própria, gerar continuamente crescimento e bem-estar, principalmente para extractos da população favorecidos pelo regime colonial. A lógica básica da estratégia de industrialização seguida era que a transformação da economia moçambicana demandava protecção em relação à concorrência com produtos importados. Neste caso, o Estado colonial assumiu o papel dos rapazes mais velhos que, aleivosamente, corrigiam os meus swibangwas, impondo quotas de importação, impondo tarifas ou accionando outros mecanismos que limitavam a entrada de produtos estrangeiros no território nacional.
Na verdade, a base de sustentação da indústria manufactureira que se estabelecera no país era a garantia de um mercado interno livre da concorrência estrangeira. A ideia era que, na ausência da protecção, os custos iniciais do estabelecimento da indústria não estimulariam os investidores privados (colonos) a aventurar-se numa nova área.
Como se vê, esta estratégia de crescimento seria diferente daquela induzida pela substituição "espontânea" de importações. Esta é a que ocorreria naturalmente em resultado de uma mudança nos preços relativos do produto nacional frente ao importado, tornando o produto nacional mais barato. Esta mudança dos preços relativos pode estar associada tanto a maiores ganhos de produtividade na indústria nacional ou a uma depreciação da moeda nacional frente à moeda estrangeira, o que confere maior competitividade ao produto fabricado internamente.
O proteccionismo e a realocação induzida de factores (que ocorreu tanto no período colonial como no período socialista que se seguiu à proclamação da independência nacional) permitiram o surgimento de uma vasta gama de ramos industriais. Tudo parece indicar que estas indústrias só poderiam ser viáveis naquele ambiente de protecção, mesmo com as gritantes deficiências que começaram a evidenciar a partir dos meados da década 70. Semelhantemente, no caso do caçador incompetente de ratazanas que eu era, o meu sucesso só poderia manter-se se os mais velhos continuassem a corrigir os meus swibangwas
É importante a este respeito reparar que os industriais moçambicanos nunca haviam sido confrontados com concorrência num mercado aberto. O que muita gente ignora é que a economia colonial era fortemente proteccionista, assim como o era a economia centralmente planificada do período imediatamente a seguir à proclamação da independência. Numa situação de protecção, a colocação da produção das empresas raramente é um problema. Uma análise às dinâmicas de vendas de uma empresa como a UFA durante o período colonial demonstraria facilmente como estas empresas operavam numa situação de quase monopólio. Assim, grande parte destas indústrias veio a revelar-se desajustada com a abertura económica, que implica concorrência a uma escala global. Mesmo se considerarmos que, por vários motivos, e principalmente durante o período da economia planificada, muitas das empresas que encerraram já não estavam a abastecer eficazmente o mercado.
O ponto que aqui se pretende defender é de que o encerramento de unidades económicas ou o seu funcionamento deficiente pode estar ligado a razões estruturais, nomeadamente aquelas que têm a ver com o seu desajustamento tecnológico, para competirem num ambiente económico aberto, isento de proteccionismo. Esta realidade de abertura é contrária à realidade que prevaleceu tanto no período colonial como no período que imediatamente se seguiu à proclamação da nossa independência. Isto é, o melhor gestor do mundo, se fosse possível identifica-lo, não seria capaz de viabilizar uma Mabor ou uma Texlom sem abordar adequadamente as questões estruturais que, na sua generalidade, são de nível macro. E podem relevar de um contexto internacional específico, como tentarei explicitar em próximo artigo.
Comments
  • Ido Alfred Mano peço para citar 1 nome de empresa mocambicana por sector que ficou fechada por favor.
  • Raul Junior Preferi, intencionalmente, ler o texto até aos svibangwha! Só agora é que percebo por que não era tão expert naquilo. Só fui uma vez, nivuya nixibakutela, não mais me interessei também porque comia carne de quadrúpedes. Uns katingavam svigema para atrair facilmente masengani!
  • Constantino Pedro Marrengula Dr Gabriel Muthisse, não sei se o que vou escrever aqui encontra resposta nos artigos que ainda vai publicar. É sempre difícil arrolar o que foi a causa mor do colapso. Concordo com o que escreve. Mas parece-me que o desmantelamento dos sistemas de protecção pecou por ser ideológico. Não tivemos uma estratégia dirigida para aumentar a eficiência e proteger os empregos existentes. A ideia dominante era get the prices right. Neste período aconteceram muitas coisas que requeriam uma resposta diferente, um pouco ao geito do que os Chineses fizeram perante constrangimentos semelhantes, reformar o sistema de incentivos de forma faseada. O abandono da população colona significou que perdemos capital humano, inteligência de mercado e o acesso a redes relevantes no acesso a matérias-primas, fundos, tecnologias e vendas. Quando o socialismo veio, eramos quase todos start ups, infelizmente com incentivos inapropriados, ao nível de propriedade, dos preços, de apropriação do resultado final das trocas, etc. O PRE tentou resolver isto, mas não deixou as start ups ajustarem-se. Introduziu um tratamento de choque. Não deixou o caçador percorrer a curva de aprendizagem. Violentou-o, mas tinha a alternativa política de ir por um caminho mais gradual para salvar os empregos. Aceitariamos perdas de eficiência, sacrifícios dos consumidores, pela agenda do emprego. Não há indústria que resista um ambiente severo de incerteza de mercado. No nosso caso, tivemos duas coisas que mataram a indústria, a liberalização e a informalização. Claro que estas são ideias de um treinador de bancada e que olha as coisas em retrospectiva.
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  • Alvaro Simao Cossa Concordo plenamente com o que escreves aqui, mas é preciso ter em conta que a maioria dos países do mundo passou pelo estágio de restrição às importações e estimulou o processo de substituição de importações durante todo o periodo da industrialização, e também muitos países continuam a praticar essa política no momento, por exemplo a Rússia, Japão, França... Os Relatórios Anuais de Comércio e Desenvolvimento da UNCTAD observam o impacto da industrialização que substitui as importações no crescimento econômico de muitos países do mundo, no momento em que a capacidade de importar produtos é limitada (a moeda nacional é desvalorizada, baixa renda), são introduzidas restrições à importação; os bancos centrais apóiam o sistema bancário doméstico, satisfazendo as necessidades financeiras dos setores público e privado, o que permite expandir rapidamente a produção doméstica de produtos industriais, que gradualmente elimina as importações, a produção industrial cresceu em ritmo mais acelerado nos países que já possuíam potencial industrial e cujos governos tomaram medidas para apoiar a demanda doméstica.
    Isto é confirmado quando a situação econômica dos países exportadores de commodities (países em desenvolvimento) piora gradualmente se não recorrerem a políticas de substituição de importações na industrialização.
    Devido às restrições existentes à orientação para exportação (todos os países não podem exportar simultaneamente; o comércio mundial está crescendo lentamente; o trabalho não é totalmente rentabilizado), vários países (Rússia, Japão, França) usam políticas de substituição de importações para proteger seus mercados domésticos. Um país que enfrenta uma escassez de moeda e um forte aumento no preço de produtos importados também exige uma política de substituição de importações.
  • Gabriel Muthisse Perfeitamente de acordo consigo, Constantino Pedro Marrengula. A ideia é justamente essa. Ir buscar os factores do desmantelamento da indústria moçambicana em toda a sua complexidade. E fugir da narrativa que tem dominado este fenómeno, que o explica simplisticamente com incompetência ou com gestão dolosa com o objectivo de desvalorizar as empresas para compra-las a um preço de banana. Esta é a narrativa que tem dominado e poucas vezes foi desafiada
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  • Gabriel Muthisse Ou se o foi (muitas vezes) não tomei conhecimento
  • Gabriel Muthisse Alvaro Simao Cossa, os paradigmas de industrialização foram variando com o tempo. Os tempos áureos do paradigma de substituição das importações creio ter sido na década 60. Isso não quer dizer que alguns países não o tenham seguido, depois, em certa medida.
  • Gabriel Muthisse Para além de que, Varo, muitas vezes esses paradigmas são impostos. Alguns países têm um poder de barganha e outros nem tanto
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  • Jorge Matine A minha questão, ainda não muito clara, não estou muito convencido o que poderiamos incluir como fazendo parte de condições estruturais ( tecnologia, protecionismo, etc) se vamos colocar de fora se havia opções políticas para um outro tipo de reajustamento. As condições estruturais como tecnologia, protecionismo, são ate hoje "problema" para economias de livre mercado, a depressão dos anos 30, a globalizacao com o deslocamento de unidades de produção do ocidente para oriente, etc. No caso de mocambique vou mais pelo desinvestimento, mesmo que o estado tivesse maior controle e injetando capitais teriamos (??) um problema bicudo, as falências tecnicas actuais de empresas públicas mostra que a palhota persegue-nos e não é acidentalmente...😀
    • Gabriel Muthisse Não sei se te entendi, Mano Jorge Matine. Mas a "dificuldade" de gerir com eficiência e com eficácia empresas públicas não é problema só de Moçambique. É universal. A literatura de gestão tem tratado com alguma frequência essa "dificuldade". Havia opções políticas para outro tipo de reajustamento? Creio que sim, havia. Só que essas opções não faziam parte do pacote que nos foi "oferecido". E, como podes imaginar, nós dificilmente poderíamos experimentar outras opções fora daquele pacote. Não tínhamos (e não temos) poder de barganha para tal
    • Júlio Mutisse Gabriel Muthisse aqui já me assusta: estamos numa camisa de força em relação a ajuda e quem nos ajuda? Não desenvolvemos ainda uma capacidade de oferecer (à mesa) a nossa visão sobre as alternativas mais viáveis para nós?
    • Gabriel Muthisse Júlio Mutisse, as opções do reajustamento estrutural foram "oferecidas" como um pacote. Faziam parte de uma ideologia triunfante, como espero mostrar no próximo texto
    • Júlio Mutisse Gabriel Muthisse "não tínhamos (e não temos) poder de barganha para tal"
      É do "e não temos" que vem o susto.
    • Gabriel Muthisse Júlio Mutisse, podias discutir o Thatherismo em 1990? Espera para ver o próximo texto
    • Jorge Matine Gabriel Muthisse concordamos que havia alternativas mas não opções politicas capazes de serem tomadas, o risco politico era alto noutras opções ou nem por isso (?). No pouco que fui lendo este processo que culmina com reajustamento estrutural foi longo, esteve presente na diplomacia de quebrar o isolamento e de abertura politica e economica então a nossa "preparação" poderia ter sido melhor? não sei e hoje com os dados que temos é dificil dizer. Vivendo na europa central interessou-me estudar como os processos foram conduzidos dessa normalização ou abandono da economia centralizada para uma economia de mercado, não me parece que a transição em Moçambique foi mais brusca comparada com outros paises, isto é, não tivemos uma velvet revoluction ou os eventos na polonia, etc. Intrigou-me que todo esse processo de reajustamento acontecia tambem em vários paises, o que foi diferente em Moçambique e porque em relação as opções que tomamos. concordamos que não um só país que escapou ao general decline of living standards provocado pelo desemprego que resultou das privatizações ou mesmo falências das empresas.

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