Nos últimos dias têm ocorrido na África do Sul múltiplos casos de perseguições e agressões de cidadãos de outros países africanos, especialmente os nigerianos. Os agressores são sul-africanos autóctones, isto é, negros, o que significa que negros têm agredido outros negros.
Não é a primeira vez que sul-africanos autóctones perseguem, agridem e até mesmo matam outros africanos, tais como ganenses, moçambicanos, zambianos, congoleses e nigerianos. Os casos em referência têm sido cíclicos e nada indica que, transcorrido algum tempo, não voltarão a ocorrer.
As razões geralmente apresentadas para justificação do problema em causa são económicas, ou seja, os sul-africanos autóctones são apresentados como indivíduos que, assolados por diversos problemas sociais, tais como a pobreza e o desemprego, elegem os cidadãos oriundos de outros países africanos como os responsáveis pelas dificuldades que têm em arranjar empregos e, como tal, melhorar as suas condições sociais. Ou seja, consideram que os nigerianos, congoleses, zambianos, moçambicanos, ganenses e outros radicados na África do Sul tomaram os empregos que eram deles, remetendo a eles, os autóctones, a uma condição de desemprego, pobreza, desestruturação familiar etc. Na verdade, inclusive, os outros africanos, especialmente os nigerianos, também têm sido acusados de ficarem com as mulheres sul-africanas, as melhores, deixando os homens sul-africanos com poucas opções.
À primeira vista, estamos em presença de casos de xenofobia. Mas, analisando o problema com maior amplitude e profundidade, inferimos que estamos perante casos de afrofobia.
Enquanto a xenofobia é um quadro genérico, traduzido no medo ou ódio por quem ou por aquilo que é de origem estrangeira, a afrofobia é uma abordagem específica, em que os medos, os ódios e os ressentimentos são projectados contra africanos.
O estudo que fiz dos casos cíclicos de xenofobia e afrofobia na África do Sul no período 2010-2019 revelam que os sul-africanos nunca atacaram africanos brancos, isto é, de origem europeia, nem mestiços. Em todos os casos, os perseguidos e agredidos são todos negros. Na verdade, estamos em presença de um outro problema: a negrofobia. Negros (sul-africanos) têm fobia por outros negros (nigerianos, congoleses, zambianos, moçambicanos, ganenses etc.).
Assim, estamos perante três grandes problemas: xenofobia (fobia por pessoas de outros países), afrofobia (fobia por outros africanos) e negrofobia (fobia por outros negros).
As teses que apresentam os problemas da xenofobia, da afrofobia e da negrofobia dos sul-africanos como tendo origens e índole económicas são, porém, simplistas. Os sul-africanos que perseguem e agridem africanos e negros como eles, e destroem suas propriedades, fazem-no mais do que por razões económicas. Fazem-no também por razões de foro psicológico e antropológico. A projecção das frustrações, raivas e ressentimentos dos sul-africanos em outros africanos negros é a manifestação de um dos maiores problemas existenciais das pessoas negras: o Complexo de Negro.
Na verdade, não são apenas os sul-africanos que padecem deste problema. O Complexo de Negro afecta cidadãos de todos os outros países de África, incluindo Angolanos.
O que é, porém, o Complexo de Negro? Usei o termo num artigo extenso que foi publicado em diversos meios, como o site Por Dentro da África, em 2014, intitulado «O Complexo de Negro».
No referido artigo, defini o Complexo de Negro como sendo «a perturbação psicossocial que consiste em pessoas do tipo negroide considerarem a si mesmas seres inferiores e incivilizados pelo facto de serem negras.»
Ademais, a gramática cromática ocidental racista, a escravatura, o complexo de superioridade e da auto-referência branco-ocidental, o colonialismo, a incompetência e o fracasso geral dos Estados africanos quanto a realizar o cidadão constituem os pilares que sustentam o Complexo de Negro.
No caso específico dos sul-africanos autóctones, estes transportam o fardo histórico de a sua terra ter sido tomada por invasores europeus, cujos descendentes passaram a governar a África do Sul, primeiro como colónia e, posteriormente, como Estado independente a partir de 1910. Por séculos de exploração colonial, os sul-africanos autóctones foram tratados como seres inferiores. A independência não mudou o quadro, pois, o país continuou a ser gerido por uma casta branca que sempre se considerou superior. A situação piorou em 1948, altura em que, tendo ganho às eleições, o Partido Nacional da África do Sul (de orientação ideológica de direita), instituiu o que ficou conhecido como o Regime do Apartheid.
O regime em referência chegou formalmente ao fim em 1994, mas os sul-africanos autóctones – tratados por séculos como animais na sua própria terra – continuam a ser a esmagadora maioria populacional de um país em que os brancos detêm o controlo da economia. As razões de os sul-africanos (entenda-se: a vasta maioria negra) continuarem a viver sob condições sociais de pobreza e miséria residem essencialmente na subversão (pelo Ocidente) da luta dos autóctones, desenvolvida ao longo de muito tempo, visando devolver o país aos autóctones, isto é, fazer o poder económico e político residir nos autóctones (a maioria negra), sem necessariamente marginalizar os cerca de quatro milhões de brancos (minoria) ou mandá-los de volta à Holanda e à Inglaterra, de onde são originários.
Ora, apenas o poder político foi entregue (devolvido) aos autóctones, o que não resolveu o maior problema: o económico. E, 25 anos depois do fim formal do Apartheid, a realidade mostra e demonstra que, como disse acima, a luta dos autóctones foi subvertida pelo grupo hegemónico mundial, sediado no Ocidente. Basicamente, a luta foi tomada de assalto através da redução das diversas figuras revolucionárias à categoria de resto, da imposição e projecção de Nelson Mandela como figura única representante dos interesses dos autóctones e através da celebração da fantasiosa Nação Arco-Íris, uma estratégia de psicologia política que visou entreter e anestesiar os sul-africanos. O verdadeiro poder, o económico, foi mantido nas mãos da minoria branca. Por outro lado, Black Economic Empowerment (projecto Empoderamento Económico Negro) revelou-se mais um logro do que um sucesso.
Para milhões de sul-africanos, a passagem do tempo tem ajudado a perceber que a solução encontrada para o problema sul-africano foi um logro. Anos depois, o fiel da balança continua a pender favoravelmente para o lado dos brancos, muitos dos quais continuam a encarar os negros como seres inferiores ou mesmo subumanos. Não é à toa que a ala radical do ANC (African National Congress, fundado em 1912), partido no poder desde 1994, tem vindo a ganhar novamente terreno, exigindo reformas profundas.
Por outro lado, a figura de Nelson Mandela (que serviu bem aos interesses do grupo hegemónico branco) foi engenhosamente usada nos últimos 25 anos para gerir as intranquilidades, os ressentimentos e as frustrações da maioria, resultantes de um processo revolucionário que acabou domesticado ou adestrado pelo Ocidente.
A projecção das frustrações, raivas e ressentimentos dos sul-africanos em outros africanos negros constitui um desvio à verdadeira fonte dos problemas sociais que afligem a maioria negra daquele país.
Atacar outros negros – também vítimas de uma série de males que afectam seus países – e fazer deles o saco de pancada tem sido a opção, ao passo que tem ficado evidente que fazê-lo com negros sai muito mais barato (já que o Mundo se comove e reage energicamente quando brancos são alvo de ataque, mas é indiferente à tragédia dos negros, especialmente os de África). Isto é reflexo claro do Complexo de Negro.
Indubitavelmente, a projecção das frustrações, raivas e ressentimentos dos sul-africanos em outros africanos negros constitui uma válvula de escape alternativa a um aludido processo neo-revolucionário que alteraria violenta e significativamente as relações de poder entre negros e brancos na África do Sul, como têm defendido figuras como Julius Malema (exposto de forma proposital na mídia mundial como um brutamonte e político incivilizado, que quer zimbabuelizar a África do Sul).
O Complexo de Negro não tem apenas levado africanos a virarem-se uns contra os outros, destruindo-se mutuamente. Tem facilitado também a subversão dos processos de luta que visam mudar a lógica de governação em países africanos e viabilizar a generalização do bem-estar social.
Não são apenas os sul-africanos que devem livrar-se do autodestrutivo Complexo de Negro. Os demais africanos também devem fazê-lo.
No caso dos Angolanos, odiar e maltratar os congoleses, senegaleses, malianos, guineenses, gambianos etc. por alegadamente terem tomado de assalto a rede comercial do País, ao passo que se desviam dos verdadeiros responsáveis pela tragédia socioeconómica do País e tratam com deferência os europeus, asiáticos e americanos, é contraproducente.
Quando se trata de aplicar o Experimento dos Dois Ratos, os resultados são reveladores. Em 2013, durante uma aula de Antropologia Social, que eu estava a ministrar na universidade, libertei no chão da sala de aula um rato branco adulto. Os estudantes tranquilamente pegaram no rato e o acariciaram demoradamente, ao passo que queriam saber de mim como obter um. Passados alguns minutos, quando a turma já estava com as atenções centradas novamente na aula, libertei um rato preto, igualmente adulto. Instalaram-se o caos e o pânico na sala de aula. Enquanto os rapazes procuravam por pedras ou paus para matarem o rato preto, as raparigas, recolhidas em cima das carteiras, gritavam ao máximo das suas vozes, esperando que um deus as salvasse.
Os sul-africanos sabem que os ratos brancos é que são os responsáveis pelas tremendas desigualdades sociais do seu país e detêm a esmagadora maior parte da riqueza nacional, mas, paradoxalmente, fazem dos (outros) ratos pretos (que apenas buscam pelas migalhas) o alvo da sua fúria, perseguindo-os e agredindo-os de forma impiedosa.
De facto, por sua vez, no caso dos Angolanos, é doentio que tratem congoleses, senegaleses, malianos, guineenses, gambianos etc. como estrangeiros e tratem os portugueses, por exemplo, como «povo irmão».
Se os cidadãos que têm estado a padecer de fome nas regiões centro-sul e sudeste do País fossem brancos ou mestiços haveria em Angola uma tremenda mobilização nacional para acudi-los.
O auto-ódio do Negro é tremendo.
Enquanto o Negro tiver vergonha de si mesmo não irá a lado nenhum. Antes, pelo contrário, continuará a ser instrumento de agendas estranhas à sua emancipação e do seu continente.
Nuno Álvaro Dala
5 de Setembro de 2019
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