segunda-feira, 5 de agosto de 2019

APELO À RECONCILIAÇAO

APELO À RECONCILIAÇAO
Por Lawe Laweki

Ao saber que a Liderança de Machel-Marcelino dos Santos havia influenciado a Polícia de Tabora na Tanzânia e temendo pela sua vida, o Padre Gwenjere deixou Tanzânia em 1972 para Nairobi no Quênia, considerado um porto seguro para tantos moçambicanos que, no exílio, eram forçados a fugir, não do inimigo comum, o regime colonial, mas dos outros combatentes pela liberdade.

Logo após a sua chegada a Nairobi, no Quênia, o Padre Gwenjere começou a trabalhar no sentido de unir os líderes dissidentes da FRELIMO. Enviou telegramas ao líder do COREMO, Paulo Gumane, e ao vice-presidente da FRELIMO, Uria Simango, que chegaram a Nairobi em 15 de Janeiro de 1973 para uma reunião com ele. Após a reunião, Simango e Gumane concordaram em trabalhar juntos sob a égide do COREMO.

Padre Gwenjere no Quênia, informando um funcionário da ONU, William Sach, sobre a situação caótica no movimento da FRELIMO. Fonte: © 2019    Lawe Laweki

De acordo com os arquivos da PIDE, o padre Gwenjere aceitou entusiasticamente o convite que recebeu dos líderes do COREMO para participar desse movimento. No entanto, ele não aceitou o cargo de vice-presidente designado para ele. De acordo com o padre, embora estivesse preocupado com a libertação de Moçambique, ele queria manter a sua condição de sacerdote, que era incompatível com o seu envolvimento directo em assuntos políticos.







«PURIFICAÇÃO» DAS FILEIRAS

Caixa de texto: Purificação das fileiras no campo de treinamento militar de Nachingwea. Samora Machel inspecionando “contra-revolucionários” desfilados. Fonte: © 2019    Centro de Documentação e Formação Fotográfica. Maputo

Tendo alcançado a vitória sobre o grupo Nkavandame-Gwenjere, bem como sobre Uria Simango, a direcção de Machel-Marcelino dos Santos passou a dividir os combatentes da FRELIMO em duas alas: os combatentes “revolucionários” e os “contra-revolucionários” ou “reacionários”.

Os combatentes da linha “revolucionária” compreendiam membros do grupo dos sulistas e moçambicanos de origem não nativa, bem como alguns membros da região Norte que se aliaram àquele grupo, enquanto os combatentes “contra-revolucionários” ou “reacionários” compreendiam membros do grupo de Nortenhos que viam Uria Simango e Lázaro Nkavandame como seus líderes. O grupo de Machel-Marcelino dos Santos, que já havia constituido uma base de poder militar, declarou guerra contra os combatentes da linha "reacionária", resultando na sua remoção das posições de chefia e neutralização, conforme Samora Machel confirmou anos mais tarde num dos seus discursos:

“Foram expulsos vários elementos das fileiras da Organização, outros foram expulsos do Comité Central. Foi constituído um Conselho da Presidência que, pela sua composição, garantia a neutralização do reaccionário Uria Simango e assegurava a aplicação das directrizes revolucionárias do II Congresso e da III Sessão do Comité Central.”



Samora Machel, que estava encarregado dos assuntos internos no triumvirato, reforçou a sua posição ao criar subseções do Departamento de Defesa lideradas por indivíduos fiéis a ele. De acordo com os arquivos da PIDE, Dinis Moiane, chefe do Campo de Treinamento Militar de Nachingwea, tornou-se um elemento muito valioso nas manifestações anti-Simango.

O período de 1969 a 1970 foi o mais sangrento da Revolução Moçambicana, que consistiu na aplicação da força das armas para instilar medo e impor ordem aos combatentes. A direcção de Machel-Marcelino dos Santos embarcou numa extensa expurgação de elementos divergentes que eram basicamente Nortenhos, como bem observou Miguel Murrupa que era vice-secretário de Relações Externas da FRELIMO e um colaborador próximo de Uria Simango. Ele rendeu-se ao regime colonial Português no auge da crise de 1968-1970 na FRELIMO:

“Quem conseguiu escapar, escapou. Mas muitos foram assassinados. Eram sempre do Norte ... este tipo de coisas, até a FRELIMO chegar a ser só como partido da gente do Sul”.



REGRESSO A  MOÇAMBIQUE

Depois da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime fascista e colonial de Marcelo Caetano em Portugal, o padre Gwenjere e outros líderes dissidentes moçambicanos regressaram a Moçambique. Em Agosto de 1974, o padre contribuiu para a fundação do Partido de Coligação Nacional (PCN), que reuniu vários grupos anti-FRELIMO sob a liderança de Uria Simango. O padre Gwenjere recusou-se a ocupar qualquer posto na coligação, excepto o do "conselheiro político" do PCN.

Contudo, enquanto vários grupos anti-FRELIMO realizavam campanhas políticas em Moçambique para tornar os seus movimentos conhecidos em preparação para eleições livres e justas, o recém-estabelecido governo em Portugal decidiu iniciar negociações directas com o movimento da FRELIMO em Lusaka, Zâmbia, com vista a transferir o poder para aquele movimento.

Para piorar a situação, grupos de brancos com tendências esquerdistas em Moçambique, instigados pelo movimento da FRELIMO, interrompiam comícios organizados por grupos anti-FRELIMO e apedrejavam e agrediam seus líderes e organizadores. Nesta onda de agitação política, o Padre Gwenjere, rotulado de racista pela FRELIMO, foi agredido violentamente na cidade da Beira por um grupo de radicais brancos.

“Segundo o testemunho do Padre Alberto de Madureira, que vivia com o Padre Gwenjere na residência da Diocese, o Padre Gwenjere fora agredido por desconhecidos na garagem da Paróquia. Ele quando ouviu os gritos desceu para onde se encontrava a garagem e encontrou o padre Gwenjere a gemer e inconsciente e um grupo de indivíduos em fuga”.



Entrevistado no seu leito hospitalar na Beira depois do assalto, o padre Gwenjere sublinhou que não era contra o povo português, mas contra o regime colonial português. Ele negou as alegações de que era um agente da PIDE e um racista:

“Quando dizem que o padre Gwenjere é anti-branco, é uma pura mentira. Praticamente toda a minha vida vivi com brancos. Antes de ser ordenado padre, fui acusado de que era a favor dos brancos, era da PIDE. Quando cheguei à FRELIMO, disseram que eu era anti-branco. Eu gostaria que alguém provasse isso.”

É de referir que, durante a sua estadia em Nairóbi, no Quénia, o padre Gwenjere, por muitos anos, viveu na mesma casa com um activista alemão chamado Willy Shultz, com quem era visto em público em várias ocasiões. Os dois homens se encontraram pela primeira vez na Tanzânia, onde  Shultz viveu e trabalhou como cooperante. Este facto por si só justifica a recusa do Padre Gwenjere de que ele era racista ou anti-branco. É de referir que um relatório confidencial da PIDE, datado de 29 de Janeiro de 1974, confirma a aproximação que o Padre Gwenjere tinha para com Willy Shultz:

“Willy Shulze, engenheiro civil da RFA foi a Lusaka contactar Coremo e foi a base Macheka. Insinuou que deviam destruir Cabora Bassa e disse que iria tentar levar para a Alemanha o padre Mateus (Gwenjere). DGS, Informação n°128-2a D.I., 29.1.74, confidencial [p.6]

As acusações de que o Padre Gwenjere era um agente da PIDE e um racista, começaram a surgir com a nova direcção da FRELIMO liderada por Samora Machel e Marcelino dos Santos. Dirigindo-se ao terceiro congresso da FRELIMO em Moçambique independente em 1977, President Machel disse o seguinte:
“Quando a nossa concepção revolucionária se começava a impor em todas as nossas escolas, os novos exploradores, utilizando um elemento infiltrado pela PIDE no Instituto Moçambicano, o Padre Mateus Pinho Gwenjere, instigaram os alunos contra a linha política da FRELIMO... Manipulados, os estudantes lançaram-se no racismo, atacando os professores brancos que no Instituto lutavam pela aplicação da nossa linha correcta na educação”.

A nova direcção da FRELIMO de Machel-Marcelino dos Santos rotulou o Padre Gwenjere de racista e de agente da PIDE, devido ao seu envolvimento directo na expulsão da Tanzânia de três brancos moçambicanos de origem portuguesa. É falso afirmar que o Padre Gwenjere era contra os brancos que ensinavam no Instituto Moçambicano. Havia mais de uma dúzia de brancos de diferentes países e nacionalidades no Instituto Moçambicano. O Padre Gwenjere estava apenas contra a presença de moçambicanos brancos de origem portuguesa, depois de ter sido informado de que um deles, de nome  Orlando Cristina, regressou a Moçambique após uma estadia de um ano na FRELIMO, tendo supostamente roubado um veículo da FRELIMO e documentos importantes. De acordo com João Cabrita, autor de “Mozambique: The Tortuous Road to Democracy”, de regresso à Moçambique, Orlando Cristina, juntamente com Jorge Jardim, criaram Grupos Especiais que posteriormente lutaram contra a FRELIMO.

O entendimento de que a FRELIMO havia sido infiltrada por indivíduos que prestavam informação à PIDE, é credível se se considerar que para o livro (Mateus Pinho Gwenjere: Um Padre Revolucionário), este autor obteve grande parte do material e fotografias dos arquivos da PIDE/DGS na Torre do Tombo em Lisboa. Note-se que até este autor, que não era uma entidade importante na FRELIMO e nem no Instituto Moçambicano, encontrou o seu nome nos arquivos da PIDE na Torre do Tombo em Lisboa. Um documento da PIDE, anexado ao final do livro, coloca este autor no topo da lista de estudantes que beneficiaram da assistência do Padre Charles Pollet.


SEQUESTRO EM NAIRÓBI

Em   7   de   Setembro   de   1974, o  Ministro  dos  Negócios  Estrangeiros português Mario Soares e o Presidente da FRELIMO Samora Machel assinaram o Acordo de Lusaka, segundo o qual a FRELIMO deveria nomear seis dos 10 membros do governo de transição que governariam o país até à independência. Este acordo eliminava qualquer possibilidade de realização de eleições multipartidárias em Moçambique. Diante dessa situação, o padre Gwenjere regressou a Nairobi, no Quênia.

Em Nairobi, o padre continuou a viver no mesmo bairro de Riruta Satelite em Kawangware, nos arredores da capital queniana, onde, todos os domingos, os refugiados moçambicanos assistiam à missa que ele celebrava na Igreja Católica local. Foi enquanto vivia em Riruta Satelite que ele foi sequestrado em 10 de Outubro de 1975, poucos meses após a independência de Moçambique.

Pouco antes do seu rapto de Nairobi, o Padre Gwenjere foi contactado por um homem que conheceu
em Dar es Salaam, na Tanzânia. O homem, comummente conhecido como “Matola” foi à casa do Padre Gwenjere em Riruta-Satelite em 9 de Outubro de 1975. Não o tendo encontrando, deixou uma nota escrita em suaíli. De acordo com a nota, ele havia comprado passagens de comboio para ele e o padre viajarem para Mombaça no dia seguinte. Na nota, Matola pedia ao padre que fosse a uma casa no Jamhuri Estate donde partiriam juntos para a estação de caminhos-de-ferro de Nairobi. É de notar que, em Mombaça, existe até à presente data uma grande comunidade de imigrantes moçambicanos da tribo Maconde, com os quais o padre Gwenjere sempre teve aproximação.

Caixa de texto: A casa em Jamhuri Estate de onde o Padre Gwenjere desapareceu em 10 de outubro de 1975. Fonte: © 2019    João Cabrita
A percepção extra-sensorial do sacerdote de que a viagem à Mombaça poderia dar errado fez com que ele confiasse num jovem da sua Missão de Murraça que também morava em Riruta-Satelite. Na manhã do dia 10 de Outubro de 1975, ele foi a casa deste jovem para lhe dizer que ele ia a Mombaça com Matola na noite daquele dia e regressaria a Nairóbi no dia seguinte.

O Padre Gwenjere pediu ao jovem que comunicasse o assunto ao secretário do KANU (Kenyan African National Union – União Nacional Africana do Quénia), Peter Guidumbi, caso não regressasse dentro de dois dias. Acredita-se que este jovem, que pediu anonimato, era a única pessoa entre a comunidade de refugiados moçambicanos em Nairobi que tomou conhecimento da viagem sem regresso do Padre Gwenjere.

Depois de um almoço preparado pela esposa do jovem, os dois saíram juntos para a casa de Jamhuri Estate onde, às 16h00 daquele dia, o jovem viu o Padre embarcar num veículo vermelho Ford Cortina cuja matrícula ele anotou como sendo KMK-546. O jovem contou a este autor que, além do Matola e do Padre Gwenjere, três outras pessoas, incluindo o motorista, haviam embarcado no veículo. Segundo ele, Matola sentou-se no banco da frente, enquanto o Padre Gwenjere e outras duas pessoas sentaram-se no banco traseiro.

Continuando, o jovem da Missão de Murraça disse que não esperou dois dias antes de procurar pelo Secretário do KANU para informá-lo sobre o sucedido, segundo havia sido instruído pelo Padre Gwenjere. Para a sua surpresa, enquanto caminhava pela cidade de Nairobi no dia seguinte (11 de Outubro de 1975), ele viu Matola saindo do Avenue Hotel. A sua presença contínua em Nairobi, o jovem raciocinou, indicava que ele não viajou para Mombaça com o padre segundo planeado, embora ele tenha visto ambos a embarcarem no mesmo veículo.

Este autor acredita que este homem, comummente conhecido como “Matola” seja o mesmo que é referido nos arquivos da PIDE como um dos colaboradores de Mzee Mchekecha, que era o presidente do Baraza-la-Wazee (Conselho de Anciãos), um grupo que, conforme foi revelado anteriormente, trabalhava com o Padre Gwenjere durante o seu conflito com a liderança de Mondlane em Dar es Salaam. Os arquivos da PIDE referem-se à este Matola na seguinte citação:

“Uria Simango, dá inicio em 17 de Dezembro de 1969 a uma série de reuniões num bairro dos arredores da Dar es Salaam, em que congrega elementos desafectados ao partido, entre os quais o supra mencionado Matola e Mchekecha, sendo este último o presidente do ‘Grupo dos Velhos’ dependentes espiritualmente do Padre Mateus”.

A investigação levada a cabo pelo gabinete do KANU revelou que Matola mais tarde desceu do veículo que, em vez de seguir para a Estação Ferroviária de Nairobi, seguiu directamente para o posto fronteiriço de Namanga com a Tanzânia, onde agentes de segurança moçambicanos e tanzanianos aguardavam o sacerdote para entregá-lo às autoridades moçambicanas.

Durante vários anos, nenhuma informação concreta foi obtida sobre o paradeiro do padre Gwenjere. Em 19 de Maio de 1995, um artigo publicado no jornal Savana por Benedito Tomás Muianga revelou que, após o seu rapto de Nairobi, o Padre Gwenjere passou algum tempo em Maputo, após o que foi levado para um 'centro de reeducação' no norte de Moçambique, onde foi morto em 1977, juntamente com outros presos políticos. No entanto, quando contactado por este autor vários anos depois, o autor do artigo acima escreveu que as últimas informações que ele obteve revelavam que o Padre Gwenjere não entrou vivo em Moçambique, após o seu rapto de Nairobi:

“Duas pessoas com quem falei disseram-me que o Padre Gwenjere não passou pelo Campo de Reeducação da M'telela na Província de Niassa. Ele foi executado na fronteira, presumivelmente uma referência à fronteira tanzaniana-moçambicana. Duas pessoas me deram a mesma informação. Um deles foi o antigo Bispo de Lichinga, Dom Luís Gonzaga, que me disse que o Bispo da Beira, Dom Jaime Gonçalves, tinha mais informações sobre o que aconteceu com o Padre Gwenjere.”



DETENÇÃO DE LÍDERES DISSIDENTES

Após a Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal, havia grandes expectativas de que a direcção da FRELIMO procuraria reconciliar e unir todos os moçambicanos sob a égide da FRELIMO. Esse não foi o caso, no entanto. O movimento FRELIMO rejeitou veementemente a reconciliação ou a realização de eleições multipartidárias em Moçambique, pressionando Portugal a transferir-lhe o poder, alegando que ele era "o único representante legítimo do povo moçambicano".

Durante muitos anos, enquanto o Presidente Julius Nyerere apoiava a FRELIMO na Tanzânia, o Presidente Kenneth Kaunda da Zâmbia apoiava COREMO, que, sob a liderança de Paulo Gumane, havia se consolidado naquele país. No entanto, após a Revolução dos Cravos em Portugal, o Presidente Nyerere persuadiu Kaunda a desmantelar o COREMO. Em Junho de 1974, as autoridades zambianas invadiram as instalações do COREMO, prenderam todos os líderes e membros proeminentes desse movimento, tendo os entregue à FRELIMO. Em 7 de Setembro de 1974, os Acordos de Lusaka foram assinados em Lusaka, na Zâmbia, entre o Governo Português e a FRELIMO, transferindo assim o poder a este movimento.

Após a formação do governo provisório em Moçambique, a principal preocupação da FRELIMO era cercar, prender, e deter todos os líderes dissidentes. Os líderes dissidentes detidos em Moçambique incluem o líder provincial de Cabo Delgado Lázaro Nkavandame; o Secretário-Geral do PCN Basílio Banda; o Secretário de Relações Externas do PCN Arcanjo Faustino Kambeu; a líder da GUMO Drª. Joana Simeão, e o médico João Joaquim Unhay.

Do Malawi, com a assistência do Director da “Special Branch” Malawiana, Martin Gwede, e do Secretário-Geral do Partido do Congresso do Malawi, Albert Muwalo Nqmayo, a FRELIMO recebeu o Presidente do PCN, Uria Simango, o Vice-Presidente do PCN Paulo Gumane, e dez outros altos dirigentes do PCN. Quanto a Uria Simango, Nqmayo enganou-o a ir à Blantyre de Nairobi, salientando que o seu país tinha concordado em mediar conversações de alto nível entre ele e as autoridades da FRELIMO. Cabrita escreve que todos os funcionários do PCN acima referidos foram depois entregues à FRELIMO em Milange (texto citado traduzido do inglês).

“Esperando-os estava João Honwana, chefe de segurança da Frelimo na Zambézia. Ele tinha os prisioneiros amarrados contra a carroçaria de um camião do exército, com as suas cabeças para baixo e levando-os para o campo militar da FRELIMO em Mônguè”.

Com o estabelecimento de um governo provisório, liderado por este movimento em Moçambique, a FRELIMO embarcou igualmente numa campanha de caça ao homem sem precedentes. Dirigiu cartas ao Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e a outras organizações internacionais, instando-as a pararem de conceder ajuda e bolsas de estudo aos refugiados moçambicanos. Do mesmo modo, solicitou aos governos dos países africanos onde os moçambicanos viviam como refugiados para expulsá-los dos seus países. O Quénia, um país que foi influente em trazer um acordo de paz entre a FRELIMO e a RENAMO em 1992, sob a mediação da Comunidade Católica de Santo Egídio, foi um dos poucos países africanos que ignoraram o pedido de repatriação dos refugiados moçambicanos.

Os refugiados moçambicanos que regressavam a Moçambique, depois de serem repatriados, incluíndo os que regressavam por livre vontade,  eram sistematicamente presos nos aeroportos e nas zonas fronteiriças e encaminhados para os chamados “centros de re-educação” no norte de Moçambique, onde alguns deles desapareceram, enquanto outros, particularmente aqueles que se envolveram em conflitos com a direcção da FRELIMO durante a luta armada, foram sumariamente executados. Os líderes dissidentes moçambicanos que resistiam regressar também não estavam seguros. Contravendo as convenções internacionais, a FRELIMO sequestrava-os de países onde viviam no exílio, levando-os à Moçambique e executando-os sumariamente.




JULGAMENTO EM NACHINGWEA

Em 12 de Abril de 1975, mais de 400 prisioneiros políticos desfilaram no solo tanzaniano no Campo de Treinamento Militar da FRELIMO de Nachingwea. Satisfeitos com o trabalho que realizaram para detê-los a fim de facilitar a FRELIMO chegar ao poder, os dois presidentes – Kenneth Kaunda da Zâmbia e Julius Nyerere da Tanzânia – abandonaram os assuntos dos seus países para assistirem esses prisioneiros, a maioria dos quais nacionalistas genuínos, a serem submetidos à um julgamento cruel e atípico. O facto de que o número desses prisoneiros era consideravelmente alto para serem todos "traidores" e "contra-revolucionários", não incomodou Nyerere e Kaunda, supostamente conhecidos como presidentes cristãos. Nem estavam perturbados pelo facto de estarem a violar as convenções internacionais ao deter moçambicanos no solo tanzaniano e submetê-los a um tratamento cruel, enquanto os mesmos não fizeram nenhum mal àquele país e ao seu povo.







Caixa de texto: Da esquerda para a direita: Julius Nyerere, não identificado, Kenneth Kaunda, Aurélio Manave e Samora Machel no Nachingwea Military Training Camp. Fonte: © 2019    Centro de Documentação e Formação Fotográfica. Maputo

Há relatos de que a Igreja Católica iniciou um processo para declarar Nyerere um “santo”. Infelizmente, a Igreja Católica tem, em várias ocasiões, feito vista grossa às injustiças que as pessoas sofrem no mundo.

Falando no dia do desfile dos prisioneiros, na presença dos presidentes Julius Nyerere e Kenneth Kaunda, Machel disse que, embora as suas actividades anti-revolucionárias tivessem prejudicado e atrasado a vitória final da luta de libertação do povo moçambicano, os "reaccionários" não seriam mortos. Segundo ele, eles acabariam sendo libertos e levados pelo país inteiro para verem como a FRELIMO estava a desenvolver Moçambique:

“A revolução moçambicana gerou os seus heróis e inevitavelmente os seus traidores reaccionários agentes do colonialismo português e do imperialismo em Moçambique. Levados pela ambição e pela sua vocação exploradora eles infiltraram-se na FRELIMO e dentro da Organização realizaram as suas actividades de sabotagem e subversão ao serviço do inimigo. Centenas desses agentes foram detectados pela vigilância popular e encontram-se nas mãos da FRELIMO. Em Nachingwea estão cerca de 400 desses reaccionários, muitos dos quais o povo conhece bem. É o caso de Uria Simango, Kavandame, Basílio Banda, Joana Simeão, Paulo Gumane, Verónica Namiva, José Dimaka, Joseph Madzozere, Ali Madebe, Mateus Punda
Alipona, Pedro Mapanguelane Mondlane, Asahel Jonassane Mazula, dr. Arcanjo F. Kambeu, João Craveirinha Júnior, dr. Unhai, Calisto Makuluva, José Eugeny Zitha, Longoloka, e muitos outros. As suas actividades anti-revolucionárias prejudicaram e atrasaram a vitória final da luta de libertação do povo moçambicano. Mas deles há uma grande lição a aprender: eles são a prova viva de que o colonialismo não tem cor, o imperialismo não tem pátria e a exploração não tem raça. Portanto continuarão como provas vivas e o povo com a sua justiça revolucionária tentará recuperá-los.”
Caixa de texto: Prisoneiros no Campo de Treino Militar Nachingwea da FRELIMO na Tanzânia. Estão incluídos no grupo da esquerda para a direita o líder da UDENAMO, Adelino Gwambe, que é o sétimo e líder da GUMO, a Dra. Joana Simeão, que é a décima com óculos. Fonte: © 2019    Dr. António Zengazenga

Com a garantia dada por Machel, na presença de dois chefes de Estado, de que estes presos políticos não seriam mortos, os moçambicanos, particularmente os seus familiares, esperavam que um dia seriam libertos. No entanto, foram mortos num local, data e sob circunstâncias que ainda não foram oficialmente esclarecidas pelo governo da FRELIMO.



Caixa de texto: Prisioneiros políticos submetidos a tratamento atípico em solo Tanzaniano em Nachingwea. Fonte: © 2019    Centro de Documentação e Formação Fotográfica. Maputo

APELO À RECONCILIAÇÃO

Ao chegar ao poder em 1986, o Presidente Joaquim Chissano encorajou os dissidentes moçambicanos a regressarem a Moçambique, garantindo-lhes que não seriam mortos ou detidos. Ele manteve a sua promessa. Contudo, Todos os sinais demonstram que a nova direcção da FRELIMO não está disposta a reabrir o dossiê dos presos políticos e quer que este episódio seja esquecido, como claramente disse o Presidente Joaquim Chissano numa entrevista com jornalistas moçambicanos em Janeiro de 1991:



“Em qualquer país a revolução tem as suas regras e normas e é normal que esses indivíduos (os referidos presos políticos) tenham sido tratados de acordo com essas normas”, tendo acrescentado: “neste momento, em que queremos criar a unidade e harmonia seria bom que não abríssemos esses dossiês.”

No entanto, surge uma pergunta: como é que o povo moçambicano deverá esquecer o dossiê dos presos políticos sem que o governo da FRELIMO procure sarar as feridas? Até à presente data, os familiares desses prisioneiros políticos não foram informados pelo Governo da FRELIMO porquê foram executados e quando. De igual modo, eles não foram informados aonde foram executados e enterrados para que possam conceder-lhes um enterro condigno.


Quase cinquenta anos depois da independência, é tempo de reflectir sobre este período marcado pelo ódio entre pessoas pertencentes à mesma família moçambicana. A história mostrou que o espírito de ódio e de vingança, acumulado ao longo dos anos pela direcção da FRELIMO, não conseguiu resolver os problemas de Moçambique. Pelo contrário, foi a principal causa do sangrento conflito que eclodiu no país um ano após a independência e que durou 16 anos.  A guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO deveu-se principalmente à intransigência e recusa da FRELIMO em ver a reconciliação como um elemento chave na construção de uma paz justa e duradoura no país.

Muitos países africanos, incluindo a África do Sul, Serra Leoa, Libéria, Gana e Ruanda, estiveram envolvidos em processos de reconciliação. A África do Sul, um país vizinho, com a sua Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC), é vista como um modelo para as sociedades que desejam viver em paz. Em Moçambique, nunca houve uma reconciliação genuína desde a independência em 1975.

Quando a FRELIMO e a RENAMO assinaram o Acordo de Paz de Roma em 1992, o Presidente Joaquim Chissano aproveitou a oportunidade para conceder amnistia aos chamados "contra-revolucionários" que não podiam regressar a Moçambique sem enfrentar prisão, detenção, ou morte. Sabe-se que a decisão do Presidente Chissano de conceder amnistia a esses "contra-revolucionários" não foi bem recebida por alguns líderes da FRELIMO.


É a opinião deste autor e de muitos outros moçambicanos que seria um gesto nobre por parte dos líderes da FRELIMO abraçarem um processo genuíno de reconciliação entre a família moçambicana. Este processo começaria com o reconhecimento pela direcção da FRELIMO de que violou os direitos humanos e as convenções internacionais, ao raptar os chamados "contra-revolucionários" em países estrangeiros onde viviam exilados e executando-os sumariamente sem um julgamento apropriado; o reconhecimento da dor infligida a seus familiares e entes queridos, por deixá-los sem saber, durante quase 50 anos, porquê, quando, e onde essas pessoas foram mortas e enterradas para que possam conceder-lhes um enterro condigno; e o reconhecimento de que, embora os chamados "contra-revolucionários" tivessem opiniões diferentes da direcção da FRELIMO, eles eram combatentes genuínos da liberdade que merecem respeito e amor do povo moçambicano. Uma verdadeira reconciliação entre os moçambicanos é um elemento-chave na construção de uma paz justa e duradoura em Moçambique.

Comments

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Julius Nyerere para santo ou santo? Que triste piada! Rata e barata por razoes que aparecem neste comentario.
O falecido presidente Julius Nyerere tem sido enaltecido e apresentado como um dos melhores lideres africanos. E na verdade, ele foi bom em alguns aspectos: era um homem simples, nao corrupto, catolico que ia a missa das 10 horas na Catedral de Sao José de Dar Es Salaam cada domingo quando ele se encontrava na capital.
Pode se dizer que ele genuinamente tinha os interesses do seu povo no coraçao, mas os seus métodos nao se direcionavam para servir os tais interesses.
Com muita reluctância por receio do que os portugueses podiam fazer contra a Tanzania, ele fez sacrificios para os combatentes pela independência (wagombania uhuru em swahili que pode se traduzir como combatente pela independência ou combatente pela liberdade), mas eu nao chamo os combatentes da Frelimo combatentes pela liberdade visto que a palavra liberdade para mim nao equivale a independência.
Pode-se ser independente enquanto sob uma tirania selvagem e primitiva como foi o caso de Portugal sob o regime de Antonio Salazar, Alemanha sob Hitler e os nazis, Italia sob Benedito Mussolini, Espanha sob Francisco Franco pela Gratia de Dios, Moçambique sob o regime da Frelimo de Samora Machel, Joaquim Chissano, Armando Guebuza e agora Felipe Nyusi, Angola sob o regimes de Agostinho Neto e de José Eduardo dos Santos, sob o regime do Banda no Malawi, sob o regime do Kenneth Kaunda na Zambia, do Mobutu e dos Kabilas no Congo-Zaire, dos regimes do Milton Obote, Idi Amin, John Okello e Yoweri Museveni em Uganda, dos regimes de Juvenal Habyarimana e de Paul Kagame em Rwanda, do tiranissimo Mengistu Haile Mariam na Etiopia, do Siad Barre na Somalia, de Gafar-el-Numayri e de Mohammed Bashir no Sudao, do Hosni Mubarak no Egipto.

O que havia ou ha de comum naqueles paises acima-mencionados? Todos estiveram, e estao, independentes, mas sob governos ditadores, tiranos e mesmo totalitarios.
Embora Julius Nyerere tivesse sido um dirigente simples no seu modo de vida, ele nao era democrata e um individuo puro. Era na verdade um ditador e tirano. Sob ele, a Tanzania so tinha um unico partido politico todo poderoso, nao havia nenhuma liberdade de expressao. O povo era estreitamente controlado. Nas aldeias o povo era organisado em nyumba kumi kumi, um sistema que forçava que cada dez palhotas em qualquer aldeia formassem uma celula de segurança onde cada residente devia conhecer todos os outros residentes e saber o que cada um deles fazia para o maximo controle da sociedade.
Movimentos dentro da Tanzania eram controlados. Alunos das escolas entoavam cançoes para glorificar Nyerere e edificar um culto de personalidade em redor da pessoa do Nyerere.
Sabe-se tambem que o regime de Nyerere andou a usar milicias para empurrar o povo das suas residências tradicionais para os seus vijiji vya ujama ou aldeias comunais na implementaçao do esquema desastroso da visao nyererista preconisada na tal Declaraçao de Arusha (Azimio ya Arusha em swahili).
Compare-se aquela situaçao com a situaçao no vizinho Quénia onde a liberdade reinava, embora nao tolerasse nenhuma pessoa no poder a contestar o seu poder.
O autor Lawe Laweki e eu vivemos no Kenya depois de nos escapulirmos da Tanzania do Nyerere. Foi devido ao facto de que o Kenya tinha noçao da liberdade que nos vivemos la sem jamais ouvirmos que o governo ia nos prender e devolver a Frelimo. Dai que a Frelimo e a Tanzania nas suas transmissioes radiofonicas insultavam o Kenya por guardar e proteger os refugiados moçambicanos que tinha fugido da tiranica Frelimo.

2
Francisco Moises said...
Vou por de lado a minha propria sentença sobre se devemos ter reconciliaçao em Moçambique no que concerne as execuçoes pela Frelimo ou nao. Nao digo o regime da Frelimo somente visto que eventos de matanças sumarias de individuos foram cometidas na Frelimo como movimento de luta pela independência e depois da independência. Vou concordar com Lawe Laweki que seria na verdade muito importante que o regime revelasse dados sobre porque aqueles individuos foram mortos, onde foram mortos, e, se foram enterrados, onde foram sepultados.
Sem que isto aconteça, os espiritos da naçao continuarao zangados e poderao se vingar, como na verdade ja se vingaram contra alguns perpetradores de tais crimes como Samora Machel em destaque e outros como Bonifacio Gruveta, Sebastiao Mabote e outros ainda que vieram a morrer miseravelmente.
Ninguem é imune a puniçao direita ou indireita. Como Jesus disse: "quem mata pela espada, pela espada morre. Esta é a lei da natureza ou mesmo cosmica. O que fazemos nos traz consequências, como a carossa segue o cavalo ou o boi que a puxa.
Talvez que uma reconciliaçao nos poupara de castigos fisicos e espirituais como guerras ou matanças continuas. É so com uma reconciliaçao que aqueles que cometeram crimes contra a humanidade podem se aperceber que ha sempre castigos que vem visivel ou invisivelmente para os punir por causa dos seus crimes. A reconciliaçao podera impedir que certas pesoas continuem sempre a cometer crimes.
Entendo tambem que os perpetradores dos crimes tem medo de serem identificados como pessoas que cometeram crimes visto que a comunidade internacional actual requere que quem mata e matou deve ser responsabilisado por suas acçoes. E ser identificado como perpetradores de crimes amedronta muitos matadores e ditadores por causa do seu medo de consequência criminal ou espiritual.
O exemplo disto foi quando Afonso Comissario depois de ter saido do campo de concentraçao de Sacudze na regiao de Gorongosa onde estava encalaboiçado por acusaçao de "imoralidade sexual" encontrou-se na companhia do Samora Machel.
Falando da execuçao do Gwenjere, Afonso Comissario disse a Machel que "matar o Gwenjere foi um grande erro. Aquele homem era o deus dos Senas." Continuando, confiou-me por via telefonica la no inicio dos anos de 1990, ele me disse ainda: "Samora Machel ficou palido antes de entrar em panico" que podia lhe causar uma crise cardiaca.
Quanto a Gwenjere, foi infeliz que ele decidiu confiar num tanzaniano que se chamava Matola visto que ele tinha tido bom entendimento com o homem quando ele Gwenjere ia ao escritorio do vice-presidente tanzaniano Rashid Kawawa para explicar os problemas na Frelimo. A Frelimo veio a conhecer com quem Gwenjere lidava em 1968 e 1969 e veio provavelmente a corrompê-lo para o capturar, usando a confiança que ele tinha tido com o padre.
Varias sao as versoes sobre o que teria acntecio ao padre depois de ser sequestrado de Nairobi. Disse-se tambem que o cegaram para que ele nao conseguisse fugir, mas disse-se tambem que o abateram quando ele tentava fugir enquanto ja na Tanzania nas maos dos homens secretos tanzanianos e do SNASP do Sérgio Viera. Outros dizem que foi morto em Moçambique, provavelmente em Mueda. Houve ainda quem disse que ele foi lançado de helicoptero para as aguas to Oceano indico.
Sabe-se, porem, que um entao rapaz de Murraça, hoje talvez um homem quase envelhecido que se esconde em Juda no Sudao do Sul visto que algumas pessoas de Caia juraram que o catanarao por ter vendido o padre. Gwenjere confiava no homem cujo nome mantenho no anonimato aqui. Ele foi comprado e veio a vender o Gwenjere a Frelimo.

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