Isabel quis matar o marido com um clister de água-forte, Tomás salvou-se e ela morreu
26.09.2016 às 8h00
Tomás Luís Goilão, piloto de naus, sobreviveu à cruel injeção por via retal que lhe foi ministrada. A esposa “temperara” a “mezinha inofensiva” receitada pelo médico, mas falhou - Isabel, uma mulher bonita de 27 anos, tinha um amante e tentou matar o marido “por suja maneira”. Há 23 sonetos, duas elegias, duas glosas, uma carta, uma ode, um poema em décimas heptassilábicas, um romance heroico e uma silva escritos sobre este acontecimento. A série “Crime à Segunda” está de volta, com uma nova temporada sobre criminosas portuguesas. Este é o segundo caso
Acordou-o no inicio do sono, em alvoroço, com um lenço na mão sujo de excrementos iguais aos que repousavam na almofada e convenceu-o de ter tido um volvo. Chamado o médico, este receitou o remédio caseiro que Isabel sugerira, com a ideia de dar ao marido um clister mortal. Isto ajuizaram os magistrados que a condenaram à morte. Ela negou a intenção, ele salvou-se, mas os juízes não lhe perdoaram o facto de “viver publica e escandalosamente amancebada” enquanto o esposo andava na carreira da Índia.
Tomás Luís Goilão regressara a Lisboa há um mês, após ter passado meio ano no mar, pelo menos. Chegara no principio de abril de 1771 e, desta vez, capitaneara a Nossa Senhora da Ajuda — é sabido pelo registo da visita do desembargador à nau, no dia 7, para verificação do mapa de carga. Isabel Xavier Clesse, porém, já dera o coração a outro. Encantara-se, ao que dizem os escritos da época, assim como a sentença, por um porta-bandeira do Regimento de Infantaria do Conde do Prado, que há de mudar a designação, em 1806, para infantaria nº 4.
Isabel é uma mulher bonita de 27 anos. Mora desde sempre na Calçada da Estrela. Vive “em sociedade conjugal” com o marido e nascera na freguesia das Mercês, a 20 de julho de 1743. Na sentença apenas surge o nome do pai, Eugénio Pedro, mas no registo de nascimento a mãe é Teresa Clerez. No registo de casamento dos pais, em outubro de 1739, o apelido de Teresa é Clerici, como o de seu pai João Baptista Clerici; atendendo ao som e que, até ao século XVIII, se mudam nomes e grafias a bel-prazer, justifica-se o Clesse que consta no processo de Isabel.
O porta-bandeira Januário Rebelo será mais novo do que ela e também do marido, este já talvez perto dos 40 anos, e um assíduo da calçada, uma vez que o regimento comandado pelo coronel Lourenço de Lancastre e Noronha, conde do Prado por casamento com a herdeira de 15 anos, se encontrava perto, aquartelado em Campo de Ourique. Isabel confessará que a relação era amadrinhada por uma sua tia, na residência de quem se encontravam, e que o amante “saía com toda a liberdade, de dia, e de noite” de sua casa, “dormindo nela”. E que se continuaram a ver mesmo depois da chegada do marido.
Naquela noite de 3 de maio de 1771, Tomás Luís dirá quando depuser no inquérito que se deitou em paz e sossego, “sem se queixar ou conhecer moléstia alguma em seu corpo” e que “a sentiu ao pé de si, chamando por ele com desacordo, para que visse o seu estado, e o que lançava da sua mesma boca, mostrando-lha untada de excrementos, e parte do mesmo em um lenço, e travesseiro da mesma cama, persuadindo-o que tinha sido um volvo, e que logo mandasse chamar o cirurgião para o curar”.
José Cardim, após ouvir Isabel, decide-se por aplicar “uma mezinha de água de malvas, açúcar branco e óleo de amêndoas doces sem fogo, a qual ela mesma foi temperar”. O "tempero” foi de água-forte, ou seja, ácido nítrico que pode matar se bebido e ainda mais rapidamente se se tratar de uma lavagem, outro nome dado à época ao clister. Como escreveria Camilo Castelo Branco, quase cem anos depois (é uma história a que nunca conseguiria resistir, dados os ingredientes), Isabel “tentou matá-lo por suja maneira, senhores meus, matá-lo com uma mezinha ministrada por meio de uma seringa. É onde pode chegar a imaginação depravada!”.
Tomás Luís não seria o primeiro, nem o último, provavelmente, a morrer neste século XVIII com um clister de água-forte. Isabel e Januário, que a “voz pública” dizia ter sido seu cúmplice, desconheciam um caso célebre, que Jeanne Louise Henriette Campan contará nas suas “Memórias”, publicadas no século seguinte: a dama da rainha Maria Antonieta, nascida no ano anterior ao atentado a Luís XV por Damien, diz que esse episódio lhe marcou a infância e que soube que o mesmo que feriu o rei francês com uma faca, em 1757, confessou ter assassinado, quatro anos antes o conde La Bourdonnaye, de quem fora criado, dando-lhe um “lavement d’eau-forte”.
É por estas e por outras, dirá a letrada madame Campan, que todo o cuidado é pouco com os estranhos que se metem em casa na hora da seleção. Por outro lado, depois desta revelação (Voltaire atribuíra ao escorbuto a morte do governador-geral das Mascarenhas, depois de ter passado cinco anos na cadeia por falsa acusação), La Bourdonnaye e o clister mortal começaram a ser usados como exemplo pelos autores dos textos de medicina e da arte do envenenamento. Damien não foi sentenciado à morte por este crime, mas pelo atentado ao rei, com um suplício indescritível, que os juízes portugueses quase copiaram para castigar os Távoras e os eventuais cúmplices, em 1759, quando o marquês de Pombal os acusou de quererem matar D. José I dois anos antes.
Tomás Luís começou a gritar que o matavam, mal o cirurgião lhe “lançou uma pequena porção” do clister. Cardim, que no inquérito demorará a admitir ter ministrado veneno, observando o “estrago, alteração e revolução que lhe fizera”, decidiu "sangrá-lo imediatamente” e “dar-lhe remédios refrigerantes, retirando-se de manhã do dia quatro, e deixando dito que mandassem chamar médicos, para melhor ser curado o enfermo”.
Os médicos — por estes anos, o cirurgião é quem trata e o médico quem diagnostica e receita — concluíram, dirão mais tarde, tratarem-se de sintomas de envenenamento. É dos livros. No início do século, o médico João Curvo Semedo, conhecido por inovações nos tratamentos, já publicara em 1707 as suas “Observações Médicas Doutrinais de Cem Casos Gravíssimos”, nas quais descreve um caso de envenenamento por água-forte que, por ter sido atacado a tempo, conseguiu resolver com grande quantidade de óleo de amêndoas doces sem fogo, leite de vaca e duas oitavas das suas pílulas antifebris, as quais dava aos pobres e vendia aos ricos, só em sua sua casa, para combater as falsificações feitas em seu nome nas boticas.
O óleo de amêndoas doces cru foi o que logo mandaram dar os médicos ao marido de Isabel. Segundo Semedo, “este tem duas propriedades essencialmente necessárias, e proveitosas para semelhantes casos: a primeira é rebater com a sua oleosidade toda a acrimónia [acidez] e malícia corrosiva da água-forte, e a segunda é expelir por vómito a matéria acre, venéfica [venenosa] e deletéria [insalubre], que a dita água tem para que não rompa os intestinos”.
O “tempero” com água-forte foi em dose diminuta, senão a vítima teria morrido, mesmo que o seu organismo tivesse adquirido defesas face às infeções que costumavam dizimar os tripulantes das naus, já que as condições de higiene pouco se alteraram desde o início, na centúria de quinhentos, até esta altura. Foi pensando nesta possibilidade que Isabel baseara a sua defesa, mas os juízes não se convenceram: “Ainda que as tivesse padecido, e se lhe pudessem originar muito graves, das que se experimentaram na Nau, em que tinha chegado da Carreira da Índia, tudo se desvanece pelo prova de fingimento, de que a mesma Ré usou, untando-lhe a sua boca com o dito excremento e afirmando que tinha sido um volvo”.
“Não se matou o inimigo, mas ficou arruinado inteiramente, porque as tripas sentiram na alma a guerra feita nos Países Baixos”, escreveria, antes de sair a sentença, o pintor coevo Francisco Xavier Lobo, com o humor e malandrice que lhe é peculiar, numa carta ao amigo Lourenço Xavier, que, por costume, lhe pedia “notícias suas e de caminho as da corte”. Na verdade, a ruína não foi completa: o marinheiro recuperou bem e quando a mulher foi condenada à morte, a 28 de março de 1772, já se preparava para embarcar de novo, mas como primeiro piloto, e, no ano seguinte, movia uma ação contra o capitão da nau por salários em atraso.
Isabel não negará que mandou o criado comprar água-forte e justifica o pedido com a calosidade que a atormentavam. Durante a devassa, que é como quem diz a investigação, João António dissera isso mesmo, que fora “duas vezes a uma Botica, comprando por uma sessenta reis, e por outra cinquenta; movendo-o a dizer-lhe que era para curar uns calos”. Mas o criado acrescentará que, na manhã de 4 de maio, estava o patrão em agonia, viu as mãos de Isabel amareladas, o que indica o manuseamento do ácido, vulgo água-forte.
O criado, todavia, acrescentará mais: não só comprara o ácido, como “fora mandado da dita a uma botica com uma carta, em que pedia séneca para matar ratos”. O arsénico terá sido misturado nos tratamentos da manhã seguinte, nas unturas receitadas pelos médicos, das quais “resultaram varias nódoas e chagas”. E “sendo-lhe aplicados uns leites, neles lançara veneno, de que lhe foram achados dois papéis”.
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