terça-feira, 25 de dezembro de 2018

CARTA AO PRESIDENTE SAMORA MACHEL - Outubro de 1980

CARTA AO PRESIDENTE SAMORA MACHEL - Outubro de 1980


Regressado da Europa, após doença grave, com a qual o Presidente se preocupou pessoal­mente, D. Manuel Vieira Pinto constatou que o Povo moçambicano experimentava, outra vez, na carne, o medo, a insegurança, a tristeza, o desprezo, a humilhação, a repressão, a tortura. Nesta carta, ao mesmo tempo que continua a oferecer, sem oportunismos, a colaboração leal da Igreja para a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, verdadeiramente socialista, denuncia a violação dos direitos humanos, a limitação das liberdades pessoais e civis, a som­bra estalinista, o burocratismo, a pena de morte, a imposição de modelos estrangeiros (leia-se: concretamente, o modelo soviético). Recorde-se que, entretanto, tinha sido instituído o SNASP, Polícia política, à semelhança da PIDE/DGS. (A. B.).
in D. Manuel Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula. Cristianismo: política e mística. Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, ASA.



 Era minha intenção pedir uma audiência quando passei pelo Maputo, de regresso da Europa, mas não foi possível. Vossa Excelência encontrava-se no Zimbabwe, efectuando a primeira visita oficial ao Povo que, tão heroica­mente, e de mãos dadas com Moçambique, havia conquistado a liberdade e a independência.

Nessa audiência, gostaria de agradecer a atenção que me tem dispen­sado e transmitir, ao mesmo tempo, algumas das impressões que senti ao contactar de novo com a Revolução moçambicana.
Permita-me, então, que o faça através do papel, pedindo, desde já, me releve os limites possíveis e o que de menos claro, ou menos correcto, eu possa dizer. Sei que verá, nesta carta, a minha confiança no diálogo que, desde o início, procuro manter com os responsáveis da Nação, em ordem ao bem do Povo, e o meu desejo, leal e sincero, de cooperar na edificação de um "país, onde floresçam a liberdade, a dignidade e o amor entre os homens».

1 - Em primeiro lugar, quero saudar o Povo moçambicano pela vitória do Zimbabwe, se bem que o tenha feito, em tempo oportuno, junto do Governo desta Província.
Estou certo de que a libertação e independência do Zimbabwe muito ajudarão Moçambique e não deixarão de constituir uma força decisiva na conquista e instauração da liberdade dos povos de África e do Mundo, con­tra a escravidão do racismo e do imperialismo. É bem verdade que o Povo moçambicano, aceitando o sacrifício de quatro anos de guerra, logo após a luta heróica que travara contra o colonialismo português, "escreveu uma etapa gloriosa, na história da libertação dos povos».

2 - Em segundo lugar, gostaria de manifestar a minha alegria pelo avanço da Revolução moçambicana e pelas vitórias alcançadas ao longo destes primeiros cinco anos de Independência Nacional.
De entre as conquistas que o Povo sente, é-me grato destacar o sentido da própria dignidade e inde­pendência, o sentido da igualdade e solidariedade, da produção e participa­ção colectiva nos bens; o sentido da unidade, da justiça e da liberdade; o sentido do internacionalismo e do direito de construir a própria história, lutando com outros povos no derrube do imperialismo e das opressões colo­niais, e na edificação duma nova ordem social, liberta da exploração do homem pelo homem. As últimas medidas do Partido e do Governo traduzem este crescimento e constituem, por si mesmas, avanços significativos.
Lembro, entre outras, a criação da Moeda Nacional, o metical; o recense­amento geral das populações, a 6ª Sessão da Assembleia Popular, o lança­mento da Ofensiva Política e Organizacional, a implementação da confiança através de medidas políticas mais realistas e mais libertadoras, a abertura de Moçambique a países e organizações humanitárias até agora menos presentes na reconstrução 'nacional, a sensível aproximação da Direcção com o Povo, a programação duma economia enfrentando as grandes carências e tornando mais efectiva a participação de cada um dos cidadãos.

3 - Mas se o Povo moçambicano cresceu na consciência e na prática da própria dignidade, cresceu também, e muito justamente, na consciência das situações que engendram a indignidade e a injustiça. Isto exige, por um lado, uma séria atenção àquele conjunto de medidas que garantem e promovem a autêntica dignidade do Povo, e por outro lado, a determinação de corrigir e eliminar orientações e práticas que, de algum modo, possam gerar ou instau­rar situações menos dignas.
Neste sentido, cabe lembrar a importância da cultura que define o Povo e o torna capaz de construir a própria história, acolhendo, embora, experiên­cias e culturas de outros povos. Sabemos já que é intenção do partido e do Governo defender a «personalidade moçambicana.. contra a importação de «modelos estrangeiros .. e contra qualquer tipo de aculturação que, porventura, viesse a produzir novas formas de colonialismo. Há, na verdade, na persona­lidade africana, um conjunto de valores destinados a enriquecer o património universal da cultura e da civilização. O desgaste, ou desperdício de tais valo­res, frente ao processo de aculturação e da escolha de modelos políticos, económicos e sociais, constituiria, sem dúvida, um empobrecimento e um prejuízo para todos os povos do mundo.

4 - Talvez convenha recordar, ainda que brevemente, alguns desses valo­res.
Sente-se que o Povo moçambicano vive, com dinamismos inerentes à sua personalidade histórica, o sentido da dignidade da pessoa humana e o amor à vida; o sentido da comunidade e da solidariedade, da hospitalidade e da convivência; o sentido da autoridade, do diálogo e do valor da palavra; o sentido da justiça e da liberdade, da alegria e da festa, do espiritual e do religioso. Estes e outros valores resistiram ao tempo, não obstante as sucessivas tentativas de despersonalização, levadas a cabo pelos sistemas coloniais e esclavagistas. A assimilação colonial, se por um lado diluiu um ou outro valor, não conseguiu destruir a personalidade do Povo, antes o tornou mais sensível, particularmente à liberdade e à justiça. A Revolução em curso não poderá desconhecer este conjunto de valores, sob pena de criar traumatis­mos na real edificação da sociedade socialista.

5 - O diálogo das culturas, quando feito em liberdade, não trará, certa­mente, qualquer tipo de desintegração espiritual e social ao Homem moçam­bicano. O mesmo não direi se, em vez do diálogo, surgir a imposição da ide­ologia, mormente quando esta pretende apresentar-se como única visão integral e completa do Homem e da história. Estaríamos então na presença duma tendência totalitária e perante o grave perigo de transformar o Homem em meio, aceitando, na prática, os sistemas como fim. Seria, de novo, o tempo do homem-objecto, do homem humilhado e oprimido.

6 - A experiência destes cinco anos diz-nos que este perigo não é ilusó­rio. Vemos que muitos, investidos de poder, tentam impor «ideologias» em vez de criar consciências políticas, provocando profundos traumatismos e fechando o Homem concreto ao projecto histórico em curso.
Poderíamos lembrar, como sintomas destes traumatismos, uma certa frus­tração e desinteresse, e um certo desprezo pela vida. Sentimos, com efeito, no contacto com o Povo, uma «sensibilidade» que na prática se traduz em tantas formas de tristeza, de repulsa, de evasão e desinteresse. Não será difícil intuir que as várias situações de embriaguez, prostituição, suicídio, neuroses, desvios e crimes têm aqui uma das suas razões mais profundas. Preocupa­-nos, de verdade, o avanço dos fracassos. Mas combatê-los eficazmente será também assumir, lucidamente, as causas que os geram e determinam.

7 - Creio que, neste ponto, o valor religioso, como vida e equilíbrio daqueles que o admitem e dele vivem, deverá merecer uma atenção espe­cial. Pô-lo em causa, sem ter em conta as leis duma antropologia séria, é perturbar o clima que envolve e anima a vida dos crentes nas suas manifes­tações mais íntimas. Dentro do processo de libertação do Homem, o com­bate ao obscurantismo e à alienação religiosa é, com certeza, um imperativo. Mas a prática incorrecta dessa luta gera, sem dúvida, reacções perigosas e parece que, não raras vezes, tem conduzido a efeitos opostos aos intentados.

8 - O medo à revolução e ao Poder que a dirige será outra causa dos traumatismos que tantos experimentam.
As raízes deste medo são diversas. Umas vêm de longe, como cicatrizes profundas na alma do Povo. Outras são de hoje e situam-se na prática errada de tantos quadros, ou nos «desvios» da Revolução. O próprio sistema, concebido para libertar e humanizar, poderá, num dado momento, corromper-se, segregando novas formas de opressão. A «sombra estalinista» continua a ame­açar os espaços da liberdade e do bem-estar socialista. Não será difícil encon­trar um clima de medo onde se luta por instaurar um clima de confiança do homem no homem e de libertação colectiva.

9 - A vigilância incorrecta é também uma raiz desse medo. Se a Revolução e reacção andam juntas, vigilância revolucionária e medo não deveriam andar. Assistimos, infelizmente, ao aparecimento da «reacção», a partir de dentro e de fora. Cresce, por isso, a vigilância e a presença activa dos Serviços de Segurança. Mas cresce também o receio, atingindo, pouco a pouco, os tecidos mais íntimos da vida social. É fácil encontrar quem sinta de novo os tempos malditos das políticas colonial-fascistas. Este medo instintivo desequilibra e desmobiliza, pondo em perigo a criatividade do Povo, a sua alegria e produtividade.

10 - As detenções arbitrárias e injustas, as sanções erradas são igual­mente uma fonte de medo e de insegurança jurídica, além de abrirem cami­nho a desvios perigosos. Criar ou manter situações de injustiça não será acei­tar, de antemão, situações de contra-revolução? A administração da Justiça, apesar dos avanços havidos, continua a ser um dos graves problemas postos ao Poder. Há quem expie nas cadeias, ou nos «centros», crimes que não cometeu. Há quem experimente, na carne, o desprezo, a humilhação e a tor­tura. Muitos esperam indefinidamente o dia em que possam ser ouvidos ou julgados nos termos da lei e conforme as garantias que a Constituição em vigor proclama. Outros sentem - e também sentimos - que os isolaram deli­beradamente de tudo e de todos, inclusive dos próprios familiares, criando-se deste modo situações permanentes de violência e destruição psicológica. Sabem, além disso, que dificilmente serão restituídos à liberdade.
Ao dizer isto, penso sobretudo nos detidos por razões políticas ou por sabotagem de vária ordem. O relatório da Amnistia Internacional de 1979 denuncia já a violação dos direitos humanos em Moçambique, referindo-se particularmente aos detidos por razões políticas e às condições em que se encontram. Impõe-se uma pronta e eficiente actuação no sentido de restaurar e de estabelecer o Direito que a Constituição garante a todo o cidadão.

11 - A «Lei dos Crimes contra a Segurança do Povo e do Estado Popular», nascida num momento difícil da revolução, e definida pela 3ª sessão da Assembleia Popular, não veio ajudar a ultrapassagem do medo e da insegu­rança jurídica. A pena de morte, introduzida «com o intuito de reprimir e desencorajar a prática de crimes odiosos e bárbaros», agravou o medo e o desprezo pela vida humana e pôs em causa um dos valores importantes da Frelimo. O Relatório do Comité Central ao 3º Congresso diz-nos que «a guerra ensinou» os combatentes da Frelimo « a ser humanos, amar o Homem, não receando a confrontação aberta no próprio seio para imporem a justiça da política de clemência»
Porque abandonar, num momento difícil, esse valor e enveredar pelo caminho das execuções? Porque impedir que o Homem, diminuído pelo crime, .. readquira a sua humanidade.. e se transforme em elemento útil à construção da sociedade e do país?
Abandonar a pena de morte e os mecanismos que a tornam frequente seria retomar a justiça da política de clemência e de recuperação, tão cara à Frelimo - como Vossa Excelência me disse, em Janeiro de 78 - fazendo assim recuar a violência, a insegurança e o medo, em favor do respeito pela vida e da força moral do Poder.
Sinto que se torna urgente rever a «Lei dos Crimes», no sentido de banir definitivamente dos seus articulados o medo e a morte.
Urge instaurar a legalidade, fundada na justiça e na equidade, e criar os mecanismos que a tornem eficaz, em cada caso.

12 - Porque aceitamos a existência de traumatismos que dificultam e deturpam a construção da sociedade socialista, haverá que repensar, ousada­mente, certas linhas e métodos de trabalho. Não interessa, com certeza, o tri­unfo dogmático dum sistema, ou duma ideologia, mas a criação duma autên­tica sociedade de homens livres, solidários e dignos.
Isto leva-me a falar das liberdades que, uma vez em exercício, tornarão mais real a sociedade socialista. É já muito o que se fez neste sentido. Nota-se contudo que os «direitos pessoais e civis» encontram, na prática, mais limita­ções que os «direitos sociais». Sente-se que o Povo conquistou e vive o direito à terra e ao trabalho, à educação e à cultura, à saúde e à assistência, ao poder económico e político. Mas sente-se também que outros direitos, igual­mente decisivos, sofrem permanentes e indevidas restrições.

13 - Refiro-me, concretamente, às liberdades individuais, consignadas na Constituição. Sabemos que estas liberdades não são alheias aos objectivos da Revolução. O Homem novo jamais poderá ser um Homem mutilado.
Por seu lado, a justiça social não poderá existir sem liberdade, do mesmo modo que a liberdade não terá consistência sem justiça social. É certo que ao Estado compete regular as liberdades do indivíduo, em ordem à justa liberdade de todos. Mas uma coisa é regular, outra coisa é negar ou impedir. A Constituição afirma que «o Estado proíbe o abuso dos direitos e liberdades individuais, em prejuízo dos interesses do Povo». Esta posição é legítima, desde que não se confunda, tacticamente, o uso legítimo com o «abuso», e não se transforme os «interesses do Povo», num indiscutível e novo absoluto. Seria voltar aos regimes de cariz totalitário, sacrificando o Homem concreto às «razões do Estado».

14 - A liberdade de pensamento, de consciência e de religião é uma daquelas que mais luta exigiu, para se tornar património da consciência uni­versal. Raros serão os estados que, hoje em dia, não consagram nas suas Constituições essas liberdades. E onde, jurídica e praticamente, são negadas, haverá que perguntar se não estamos em presença de regimes retrógrados, desumanos e fascistas.
A República Popular de Moçambique reconhece estes direitos. Parece, contudo, que o direito à liberdade de consciência e de religião não está sufici­entemente garantido no processo em curso. Tão-pouco o direito à liberdade de pensamento e de palavra. Há mesmo "quem prenda aqueles que têm cora­gem de falar», o que é contrário à tradição da Frelimo, como disse Vossa Excelência no discurso de 18 de Março deste ano. Temo, porém, que na edi­ficação duma sociedade de homens livres e dignos, se estejam a criar, deste modo, subtis e perigosas opressões. É que negar qualquer dimensão do Homem histórico é negar a humanização, a que deve tender todo o processo verdadeiramente revolucionário.
As liberdades espirituais são uma exigência da radical dignidade do homem e não uma pura concessão do Estado. E são além disso um facto da civilização. Onde quer que estejam em causa, estará também em causa o direito e a civilização.

15 - Nesta ordem de ideias, parece-me oportuno dizer uma palavra sobre a família e o seu lugar na construção de Moçambique, como "país digno e livre».
A Constituição diz, no Artigo 29, que "o Estado protege o casamento, a família, a maternidade e a infância». Mas proteger não será, antes de mais, promover e garantir valores, os direitos e os deveres, próprios do casamento, da família, da maternidade e da infância? Para além de qualquer ideologia, a família será sempre a primeira comunidade humana, dela dependendo, em grande escala, a sociedade e a Nação. Será também a primeira escola das for­ças que constroem, dignamente, a sociedade e o país. Deverá, por isso, merecer a melhor atenção e o maior respeito.

16 - Em Moçambique, o casamento, a famí1ia, a maternidade e a infância sofrem, desde há muito, graves ameaças. Poderíamos falar de humilhação ancestral da mulher, poligamia, da prostituição, dos casamentos prematuros, dos casais separados voluntária ou involuntariamente, da irresponsabilidade dos pais, das tradições negativas, da falta de consciência política e ética, da compreensão viciada da unidade conjugal e do baixo nível económico da maior parte das farru1ias.
O partido e o Governo têm estado atentos a estas ameaças procurando eliminá-las. Há outras, contudo, que exigem uma acção mais pronta e mais clara. Penso sobretudo na dignidade e unidade da família, no reconhecimento e promoção dos direitos e deveres que os pais devem assumir relati­vamente à estabilidade e fecundidade do próprio casamento e à educação dos filhos. Penso no lugar que a família e os valores próprios da família afri­cana devem ter dentro da construção da nova sociedade.

17 - Devo dizer que muitas famílias não sentem, ao vivo, a protecção que o Estado lhes garante. Por um lado, há carências graves dificultando o crescimento integral da família. Por outro lado, há novas situações que tor­nam impossível a educação dos filhos pelos pais e a própria unidade fami­liar.
A falta de ligação dos Centros Educacionais e de outras unidades com as famílias não permite o contacto necessário dos pais com os filhos. Além disso, há um medo instintivo de que o Estado se apodere dos filhos, despre­zando a famí1ia. Os comportamentos de vários quadros, mobilizando conti­nuadores ou jovens casais, sem o mínimo respeito pela família e direitos dos pais, justificam largamente esse medo existente.
A corrupção sexual, que vitima tantos jovens em serviço nas diversas unidades, põe em risco a dignidade do homem e da mulher, a seriedade do casamento e a saúde moral da sociedade em construção. Urge, neste ponto, uma larga ofensiva, promovendo as consciências, afirmando os valores, garantindo os direitos e os deveres que incumbem aos pais e à família como tal.

18 - Apraz-me felicitar o partido e o Governo pela «Ofensiva Política e Organizacional» em curso. Sabemos que tal ofensiva não tem, como objec­tivo primeiro, desalojar os «infiltrados» e os «incompetentes» e aumentar os detidos, mas promover as consciências e transformar as situações. Parece que nem todos assim o entendem, pois preocupam-se sobretudo em desco­brir sabotagens e desvios.
Assumir a ofensiva será certamente empenhar-se num autêntico cresci­mento político, científico, técnico e ético da própria consciência colectiva e realizar as tarefas que permitam a passagem de relações individualistas a relações solidárias, a passagem de condições desumanas a condições inteira­mente humanas, a passagem de propriedade egoísta à propriedade social. Será assim que Moçambique se tornará um «país desenvolvido e próspero, um país onde cada cidadão tenha trabalho, boa alimentação, saúde, educa­ção correcta, assistência e habitação condigna; um país onde floresçam a liberdade, a dignidade e o amor entre os homens».

19 - Quereria afirmar, mais uma vez, o nosso engajamento na «luta con­tra o subdesenvolvimento e pela edificação duma sociedade avançada». Não faço esta oferta, por razões de «oportunismo», como alguém já tentou insi­nuar, se bem que a Igreja em Moçambique nem sempre tenha sabido servir, como devia, o Homem e o Povo. A missão da Igreja, sendo por natureza espiritual, passa justamente pelo Homem concreto e pelas situações que o envolvem. O anúncio do Evangelho inclui, assim, o anúncio da justiça e da liberdade, da igualdade e da solidariedade, da participação e posse equitativa dos bens. Não se pode participar o Evangelho sem assumir a luta pela justiça contra a injustiça, a luta pela igualdade contra a desigualdade económica, social e política.

20 - Situados na Revolução e nesta fase da história do Povo de Moçambique, desejamos cooperar eficazmente na plena libertação de cada homem moçambicano e do Povo como tal. A batalha que desejamos assumir não se limita à eliminação das carências. Queremos trabalhar a favor do homem integral e solidário, a favor do Povo, como sujeito activo e consciente do seu próprio destino, como «força principal da Revolução» em marcha. Penso que é este o conteúdo da vitória que o Partido e o Governo preten­dem alcançar, nesta década, agora iniciada.

21 - Julgo também que será necessário esclarecer mais e melhor, com a prática e a palavra, o que é e o que não é uma sociedade socialista.
Nos contactos diários, observo que a maioria do Povo não entendeu, até agora, o que é o «Socialismo», ou pior ainda, entende-o erradamente. Parte da culpa desta ignorância ou distorção cabe a certos quadros postos em con­tacto com o Povo, através dos comícios, seminários, encontros e administra­ção ordinária.
Devido à sua impreparação, oportunismo e abuso do poder, «levaram o Povo ao descontentamento generalizado», pela ausência de responsabilidades colectivas livremente discutidas e assumidas.
A mobilização pela mobilização gerou naturalmente desilusões e pergun­tas sérias. A falta de interesse e do respeito pelas situações e problemas con­cretos do Povo, a inconsequência das palavras e a ineficácia das acções colectivas, puseram em dúvida o autêntico conteúdo do Socialismo, bem como a força dirigente do partido. Por sua vez, as práticas erradas do «com­bate à alienação religiosa» obrigaram o povo a concluir que o Socialismo e militância anti-religiosa são coisas idênticas. Edificar o socialismo seria, então, construir uma terra contra Deus e contra os crentes.
O desgosto, a desilusão, quando não o desespero que tantos experimen­tam, face ao socialismo científico, não têm, neste momento, a sua raiz mais sensível na abolição da propriedade privada dos meios de produção ou na implementação duma sociedade sem classes, mas nos maus tratos que um certo esquerdismo tem dado ao Homem, particularmente quando crente ou ideologicamente duvidoso.
A recuperação da imagem correcta do Socialismo terá em conta a crítica das práticas e orientações abusivas e não deixará de reconsiderar a liberdade de religião e de pensamento, e o seu justo lugar na Revolução.

22 - As situações de injustiça e de miséria, persistentes e arbitrárias, associaram também o Socialismo com repressão e com o sofrimento que o Povo suporta há tantos séculos. Será oportuno restaurar o direito do Povo à alegria, à palavra e ao bem-estar, contra o fatalismo da opressão, do silêncio e da tristeza. Impõe-se, igualmente, um esclarecimento mais digno sobre a função coerciva do Estado e o significado da luta de classes, dentro da cons­trução da nova sociedade.
Impõe-se também uma palavra mais clara sobre o sentido das nacionali­zações dos meios de produção e de troca. Com efeito, há quem confunda o Socialismo com as nacionalizações e estas com a rejeição e fuga dos colo­nos. Esta confusão, além de alimentar um certo racismo, obscurece por com­pleto a novidade e o dinamismo duma sociedade verdadeiramente socialista.

23 - O «burocratismo», denunciado energicamente por Vossa Excelência, aquando do lançamento da Ofensiva Política e Organizacional, é talvez uma das causas mais graves dessa imagem negativa do Socialismo científico.
Já Lenine se queixava desse vício desastroso. Dizia ele que o «burocra­tismo reaparece em todos os programas, impedindo assim a consolidação de uma sociedade realmente socialista», e confessava que «no País tudo se afun­dava no pântano burocrático das administrações». Lembrava, por isso, que «seria necessário lutar, todos os dias, contra o burocratismo», na certeza de que tal luta exigiria «inteligência, autoridade e força» (Obras Completas, tomo XXXVI, pág. 578). E, à maneira de aviso, escrevia, pouco antes de morrer: «a burocracia é o nosso pior inimigo interno» (Obras Completas, Ed. XXXIII, pág. 228).
Este inimigo está presente e mina gravemente as bases da sociedade que desejamos construir. Além de aparecer como a «nova burguesia, gerindo a propriedade social e toda a vida da sociedade», o burocratismo segrega, como frutos venenosos, o dogmatismo e o conservadorismo, acabando por criar situações potenciais de anti-revolução. É ele que, no seu agir quotidi­ano, separa o Povo da Direcção, praticando a arrogância e o desprezo e transformando o centralismo democrático em dirigismo despótico.
É ele que perpetua o abuso do poder, adiando e impedindo a correcta discussão dos problemas, evitando a crítica oportuna e necessária dos erros e desvios e forjando, a nível de diversos escalões, relatórios que, se têm pouco a ver com a verdade das situações, terão muito a ver com a defesa e garantia de «privilégios» e lugares adquiridos. Mao Tsé-Tung procurou evitar esta grave esclerose, graças à táctica da «revolução na revolução». A ofensiva política, actuando já em vários sectores do aparelho de Estado e da vida do país, dará certamente uma atenção especial ao «burocratismo», como pri­meiro «infiltrado» no aparelho de Estado.

24 - Escrevo estas linhas após a comemoração do décimo sexto aniversá­rio do início da luta armada pela libertação de Moçambique. Ninguém tem o direito de ignorar o heroísmo desses homens e mulheres determinados a lutar até à morte contra a dominação estrangeira e o colonialismo português, e pela libertação e independência total da terra e do Povo de Moçambique. Prestamos homenagem a todos os combatentes, vendo neles a consciência mais viva do Povo moçambicano e a sua vanguarda gloriosa. Lembramos, com respeito, os que tombaram, fertilizando com o sangue e o exemplo a terra e o Povo de Moçambique.

25 - Hoje, a Frelimo continua organizada em partido marxista-Ieninista. É ela a força dirigente da luta que travamos pelo avanço duma terra e dum Povo inteiramente libertado da exploração e humilhação. Mas dirigir não é certamente implantar um «poder». Este perigo poderá vir a surgir. A história ensina que todo o poder tende a corromper-se, tornando-se, de algum modo, absoluto e sacral.
Se o aparelho de Estado está doente, haverá que atender ao partido para que não seja também afectado. Diz-nos Lenine que não seria de admirar se "o burocratismo”, nascido nas instituições do Estado, exercesse igual influência corrupta nas organizações do partido», (conf. Obras Compl., Edição alemã, 1930, pág. 616, Tomo XXX).
A ofensiva política, em marcha, terá em conta este perigo, tanto mais que, para muitos, o partido e o seu órgão principal de vigilância - o SNASP - ­começam já a aparecer como a «nova elite de Poder».

26 - A organização de certas Aldeias Comunais pode também deturpar a verdadeira imagem do Socialismo científico. São já muitas as aldeias, a nível do país. A razão que as determina, bem como os objectivos a que devem tender, são perfeitamente aceitáveis. Reunindo as populações desorganizadas e dispersas, surgiriam as aldeias como espaço de unidade, de solidariedade, de amizade, alegria e bem-estar. As aldeias seriam então o embrião da socie­dade socialista, materializando já a ausência da exploração e da opressão, e a presença da solidariedade e da participação efectiva nos bens, incluindo o do Poder. Seriam, além disso, os pólos dum integral desenvolvimento e da expe­riência socialista.
Acontece, porém, que a grande parte das aldeias sofre de males congéni­tos e de carências graves, gerando-se, assim, um mal-estar que ninguém poderá desprezar, ou tentar encobrir. Como primeira raiz desses males apa­rece, por um lado, a falta dum trabalho político sério, capaz de criar no Povo a decisão de assumir o sentido e a importância da Aldeia Comunal. Por outro lado, voltou-se, em algumas zonas, às velhas medidas compulsivas, criando­-se, deste modo, situações graves de opressão e recusa.
Acresce ainda que alguns dirigentes eliminaram ou restringiram, na organização das aldeias, certas liberdades, inclusive a religiosa, que para a vida, alegria e tranquilidade do Povo continuam a ter importância decisiva. Para muitos, as aldeias significam, com efeito, uma perda das liberdades quotidia­nas e um espaço de sofrimento, dadas as contínuas e duras provações que as afectam.
Será necessário tornar mais presente e actuante a «Resolução sobre Aldeias Comunais» emanada do Comité Central, aquando da sua 8ª sessão, particularmente o princípio de que ·0 Homem e a terra são os principais ele­mentos que intervêm como ponto de partida para o estabelecimento das Aldeias Comunais. e a recomendação de que 'para a criação duma Aldeia Comunal é factor imprescindível a mobilização e discussão entre as massas camponesas de modo a que elas, compreendendo os objectivos e interes­sando-se directamente, se organizem e assumam essa tarefa, contando com as próprias forças».     .
Importa sanar, quanto antes, as situações incorrectas existentes, «dar pri­oridade ao Homem e ao trabalho político», estruturar as Aldeias Comunais de tal modo que, pouco a pouco, elas possam desenvolver-se correctamente e proporcionar, cada vez mais, aos seus membros, a satisfação das necessida­des de uma vida completa». Só assim, as aldeias poderão manifestar e tradu­zir «a edificação de uma sociedade justa e progressiva» e afirmar a força liber­tadora da Revolução.

27 - Eis, Senhor Presidente, algumas das minhas impressões, colhidas ao longo dos dias, no contacto directo com o Povo.
Quis transmiti-las, com inteira lealdade e confiança, fazendo de cada problema indicado não uma análise exaustiva, como seria necessário, mas um momento de partilha da comum preocupação que nos anima: a liber­dade integral de Homem e Povo, o avanço duma Pátria onde não haja exploradores nem explorados, o triunfo dum país onde floresçam a liber­dade, a dignidade, o amor e a Paz».
Aceite as minhas saudações respeitosas e os meus votos sinceros de novas vitórias em favor de Moçambique digno, próspero, solidário e fra­terno.

P.S. - As citações são tiradas do Discurso de Vossa Excelência de 18 de Março deste ano, das entrevistas concedidas a Cadernos do Terceiro Mundo, ano 3, nº 24, e à Revista «Afrique-Asie» de 7/7/80, e do Relatório do Comité Central ao 3º Congresso da Frelimo.

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