Cientista chinês defendeu esta quarta-feira a experiência que terá resultado no nascimento dos dois primeiros bebés geneticamente editados, com uma manipulação que pretende conferir resistência à infecção por VIH. Assumidamente orgulhoso, anunciou que, além das gémeas Lulu e Nana, há uma outra gravidez que poderá trazer um terceiro bebé.
Quem esperava esta quarta-feira saber todos os pormenores da experiência que terá sido levada a cabo pelo cientista chinês He Jiankui, que reclama ter ajudado a conceber os primeiros dois bebés, duas gémeas, geneticamente editados e que nasceram este mês, só pode estar frustrado. O pouco que He Jiankui adiantou na conferência internacional sobre edição genética, que decorre em Hong Kong, só serviu para deixar a comunidade científica (e não só) ainda mais confusa. Na plateia, enquanto o orgulhoso cientista defendia o seu trabalho com um discurso aparentemente ingénuo, havia quem acabasse por assumir que se sentiu fisicamente maldisposto com a apresentação.
No palco, aguardado com enorme expectativa, He Jiankui só pediu desculpa por uma coisa: pela fuga de informação dos resultados da sua experiência antes da revisão por pares, especialistas da área capazes de escrutinar e validar os dados apresentados. Mas, na verdade, os pormenores do trabalho do cientista ainda não foram divulgados. Nem vão ser, segundo adiantou, revelando que só o fará quando a revista científica (não disse qual) a que submeteu o artigo para publicação o fizer.
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Assim, o que He Jiankui disse esta quarta-feira é basicamente o mesmo que sabíamos no início desta semana quando explodiu a polémica, juntando-se “apenas” o anúncio de um possível terceiro bebé editado a caminho, o resultado de uma gravidez que estará ainda na fase inicial. Na sua versão, nasceram este mês dois bebés, duas gémeas a que chama Lulu e Nana, que foram submetidas a uma edição genética que pretende torná-las resistentes à infecção pelo vírus do VIH. Para executar a tarefa, o cientista terá usado uma técnica chamada CRISPR-Cas9 que permite um jogo de “corta e cola” de genes. A ser verdade, será a primeira vez que embriões editados nascem no mundo. Até agora, as raras experiências neste campo envolvem apenas embriões que não são viáveis ou que são destruídos.
A experiência começou por envolver oito casais (mas prosseguiu com sete após a desistência de um deles) e incluía homens com VIH e mulheres que não estavam infectadas pelo vírus que queriam recorrer a fertilização in vitro. Um total de 31 embriões foi abrangido no procedimento, sendo que 70% foram efectivamente editados. Já este ano, um dos casais “engravidou”. He Jiankui recusa fornecer detalhes que permitam identificar as pessoas envolvidas mas assegura que as bebés “são saudáveis”. Aliás, esta quarta-feira durante a conferência, disse ainda que o procedimento não terá provocado nenhum efeito fora do alvo [no genoma] pretendido.
Um antiácido para David Baltimore
O risco de modificações no genoma off-target é um dos maiores receios da comunidade científica. Isso e possíveis efeitos colaterais que uma modificação no genoma pode provocar. Neste caso, He Jiankui refere que “silenciou” um gene que produz uma proteína que serve de “porta de entrada” para o vírus do VIH no ser humano. Trata-se de uma mutação que algumas pessoas têm (mais no Norte da Europa e que curiosamente não existirá na população da China) e que as torna resistentes à infecção por VIH. Tentar “silenciar” este gene num adulto com VIH já poderia ser discutível para algumas pessoas, sobretudo se tivermos em conta que os tratamentos hoje prolongam consideravelmente a vida destes doentes. Mas fazê-lo num embrião como o cientista chinês alega ter feito e tornar possível que esta “alteração” passe para futuras gerações, é ainda mais questionável. Os especialistas que já arriscaram comentar a hipótese da experiência de He Jiankui avisam ainda que as gémeas podem vir a desenvolver outro tipo de problemas. Por um lado, a manipulação pode não ter “alterado” todas as cópias do gene, e os bebés terão algumas cópias alteradas e outras não, o que não lhes garante a desejada resistência. Por outro, e embora existam pessoas aparentemente saudáveis com uma mutação (natural) neste gene, alterações neste gene têm sido associadas a uma vulnerabilidade para outras doenças como a febre do Nilo ou a encefalite japonesa.
Mas mais do que as consequências (a ser verdade, os bebés estão aí e deverão ser cuidadosamente acompanhados durante toda a vida), questionam-se as motivações deste trabalho. Os cientistas ainda não tinham conseguido convencer(-se) sobre o resultado da difícil equação que coloca riscos e benefícios lado a lado para tratar de doenças herdadas e incuráveis, e He Jiankui apareceu no palco mundial com o carro muito à frente dos bois. Porque o plano do cientista chinês não teve como objectivo curar uma doença ou corrigir algum tipo de erro genético no embrião, mas apenas conferir uma vantagem em relação a outros bebés, tornando-os supostamente resistentes a uma infecção por VIH.
E se até aqui a história já era capaz de arrepiar o mais liberal dos geneticistas, ainda há mais. Esta quarta-feira, na conferência internacional, o cientista chinês terá sido confrontado com várias questões e críticas, às quais foi respondendo de forma evasiva e com um discurso de uma ingenuidade pouco credível. Citada pela CNN, Jennifer Doudna, uma das responsáveis pela invenção desta ferramenta de edição genética, admitiu ter ficado “fisicamente maldisposta” durante a apresentação. David Baltimore, prémio Nobel da Medicina em 1975, também estava na plateia e também terá confessado aos jornalistas que teve de tomar um antiácido para suportar a sessão.
He Jiankui ainda tentou reparar danos e disse, por exemplo, que era contra o uso da edição genética para melhorar características do ser humano (como a inteligência ou a cor dos olhos). Mas depois descarrilou. “Sinto-me orgulhoso. Sinto-me orgulhoso porque o pai [das gémeas] já tinha perdido a esperança. Não se trata de ‘desenhar bebés’, só uma criança saudável”, justificou. Quando David Liu, da Universidade de Harvard (EUA), um dos principais responsáveis pela ferramenta de edição do genoma, o criticou durante a conferência por realizar uma experiência que não abordava uma “necessidade médica não atendida” (o HIV é evitável e tratável), He Jiankui argumentou que o pai seropositivo das gémeas desejava que a técnica lhe permitisse ter filhos que ficariam eternamente imunes ao VIH e que este vírus assume preocupantes contornos na China.
Durante uma grande parte da palestra, o cientista chinês que tem poucos artigos publicados na área da edição genética falou sobre experiências anteriores realizadas com ratinhos e macacos e embriões humanos inviáveis. Terá sido nesse contexto que percebeu que como a edição do genoma era mais eficiente quando feita perto do momento da fertilização. Ele, portanto, entregou a ferramenta de edição de genoma CRISPR-Cas9 via micro-injecção, juntamente com o espermatozóide usado para fertilizar um óvulo. Foram necessárias muitas injecções para garantir que a maioria das células contivesse a edição do ADN. “Depois de ouvir o Dr. He, só posso concluir que tudo isto foi malconduzido, prematuro, desnecessário e em grande parte inútil”, disse a bioeticista Alta Charo, da Universidade de Wisconsin, membro da comissão da organização da conferência internacional.
Ainda que orgulhoso, He Jiankui avisou que vai fazer uma pausa no trabalho tendo em conta o que aconteceu esta semana. Mas há coisas que não dá para colocar em pausa. Como a gravidez que estará ainda numa fase inicial e que poderá resultar no nascimento do terceiro bebé geneticamente editado, segundo anunciou. Disse ainda que todos os casais assinaram um consentimento informado, adiantando que lhes explicou todo o projecto “linha por linha”. E aqui abriu-se mais uma frente para críticas, uma vez que este tipo de autorização deve ser mediado por uma pessoa independente e nunca por alguém (tão) envolvido no projecto. Por fim, confirmou que a Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzen, a que pertence (e que publicou uma declaração considerando que aquele trabalho constitui uma “grave violação da ética e dos padrões académicos"), não tinha conhecimento da experiência. He Jiankui terá pedido uma licença por três anos em Fevereiro.
Vídeos e outros meios de “promoção”
Esta é a versão de He Jiankui que, diga-se de passagem, já estava a ser preparada há várias semanas. Sabe-se agora que o cientista terá contratado uma empresa de comunicação e relações públicas para gerir todo o processo da divulgação do que antecipou (e bem) como uma bomba. Os vários vídeos (o primeiro da série tem mais de 200 mil visualizações) com um tom quase “promocional” que publicou no último domingo no YouTube sobre o trabalho no seu laboratório estavam prontos há algum tempo. Nos filmes curtos (em inglês) evita a expressão “edição genética” que substitui por “cirurgia genética”, apresenta a CRISPR-cas9 como um “tecnologia para curar” considerando que a sua experiência “cura uma família inteira” e diz estar consciente das inevitáveis críticas à experiência, mas também afirma estar disposto a lidar com elas “pelas famílias”.
Fala de Lulu e Nana e chama aos pais dos bebés Grace e Mark (nomes fictícios). Lembra que também houve pânico com Louise Brown, a primeira bebé que nasceu após fertilização in vitro. Por fim, diz às pessoas que se quiserem lhe podem escrever um email (fornecendo os endereços). A ele ou a Lulu e Nana. A reportagem combinada com a Associated Press, que incluía uma entrevista ao cientista e visita ao seu laboratório, seria lançada no dia da conferência mas acabou por sair na segunda-feira. Um dia depois de António Regalado, editor na área de biomedicina da revista MIT Technology Review, publicar o artigo (este sim, o primeiro sobre o tema) com o título “Cientistas chineses estão a criar bebés CRISPR”. António Regalado acabou por actualizar o artigo mais tarde mas na versão final ainda refere que contactou o cientista chinês que não lhe respondeu a nenhuma questão. Na notícia, fazia referência (com link) a um pedido de ensaio clínico que terá dado entrada no registo nacional chinês a 8 de Novembro, apresentado por He Jiankui.
Aconteça o que acontecer, o alegado nascimento de duas crianças geneticamente editadas na China vai ficar irremediavelmente na história da ciência. Quer seja por se concluir que foi uma fraude sem precedentes, por se revelar eventualmente um fracasso desta recente tecnologia se tiver mesmo sido concretizado ou, se a versão do cientista chinês He Jiankui se confirmar e a experiência tiver sido um sucesso, o seu nome ficará sempre associado a uma precipitada e arriscada ultrapassagem das orientações internacionais. Há várias investigações já em curso. Apesar de ter meticulosamente preparado o anúncio da sua experiência ao mundo, He Jiankui pode sair do palco das atenções mundiais não como um brilhante cientista mas como um péssimo exemplo que prestou um mau serviço à ciência, à medicina e à sociedade em geral.
Ainda assim, mesmo os maiores opositores deste projecto devem estar, secretamente, a desejar o seu sucesso. Isto porque o fracasso do cientista chinês pode significar o fracasso de todo um campo de investigação e traduzir-se num retrocesso implacável, com cortes de financiamento para novas experiências, a desacreditação da opinião pública, entre outros prejuízos. Em 2017 o próprio He Jiankui avisou, durante uma conferência, que se o primeiro bebé CRISPR a nascer não fosse saudável seria um desastre. “Devemos fazer isto devagar e cautelosamente porque um único falhanço pode matar toda a área de investigação”, disse. Apesar disso, avançou. E agora não é possível sequer dizer que as únicas pessoas a ganhar com isto tudo foram Lulu e Nana. Porque ainda não o sabemos.
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