O Governo não acusa publicamente Riad, mas são muitos os que falam sob anonimato. “É como no Pulp Fiction”, diz um alto responsável da segurança turca.
O saudita Jamal Khashoggi, um dos mais proeminentes jornalistas e pensadores do mundo árabe, devia ter-se casado na quarta-feira da semana passada. Na véspera, entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul para ir levantar um documento necessário para a cerimónia. À porta ficou a noiva, Hatice Cengiz, que esperou 11 horas por Khashoggi e regressou no dia seguinte, sem nunca mais o encontrar.
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“Apesar de a minha esperança estar lentamente a desaparecer, continuo a acreditar que Jamal ainda está vivo”, escreveu Cengiz num texto publicado esta quarta-feira no jornal Washington Post, no qual o saudita tinha uma coluna. “Talvez esteja simplesmente a tentar esconder-me do pensamento de que perdi um grande homem cujo amor tinha conquistado”, escreve Cenziz, apelando ao Presidente americano, Donald Trump, e à primeira-dama, Melania, para “ajudarem a esclarecer o desaparecimento de Jamal”.
A acreditar no que membros dos serviços de segurança turcos disseram ao jornal The New York Times, à agência Reuters e a vários jornais turcos, Khashoggi foi assassinado nas duas horas e meia a seguir a entrar no consultado e o seu corpo terá sido desmembrado ali mesmo. “É como no [filme] Pulp Fiction”, afirma um “alto responsável da segurança turca” citado pelo diário de Nova Iorque.
De acordo com o relato que resulta das afirmações destes responsáveis turcos, polícias e membros dos serviços secretos, e das informações avançadas por media turcos, Khashoggi foi morto por uma equipa formada por 15 agentes sauditas que aterraram em Istambul divididos em dois aviões (de uma companhia que costuma trabalhar com a família real) ao longo do dia do desaparecimento. Todos abandonaram a Turquia horas depois.
A Turquia já identificou estes homens e relacionou a maioria com o Governo da Arábia Saudita e com os serviços de segurança do país (serviços secretos e forças especiais), incluindo um perito em autópsias, “presumivelmente presente para ajudar a desmembrar o corpo”, diz um responsável citado pelo Times.
Segundo várias pessoas com conhecimento da investigação, o Presidente turco, Recep Taiyyp Erdogan, foi informado no sábado destas conclusões, tendo em seguida “ordenado a responsáveis que falassem sob anonimato a uma séria de media, incluindo o New York Times, dizendo que Khashoggi foi morto dentro do consulado”.
Num sinal de que Ancara pode não querer acusar explicitamente Riad, um jornal muito próximo de Erdogan, o Sabah, escreveu na terça-feira que a polícia está a investigar a possibilidade de Khashoggi ter sido raptado e não morto. Isto, enquanto as televisões turcas se entretêm a divulgar imagens de câmaras de segurança que mostram os 15 sauditas no aeroporto e a chegar ao consulado, assim como quatro viaturas que deixaram o edifício (umas em direcção ao aeroporto, outra à residência do cônsul, a 250 metros).
Vídeo da morte
“Há um vídeo do momento em que ele foi morto”, disse entretanto a uma televisão pró-Erdogan Kemal Ozturk, colunista de um jornal que segue a linha oficial e antigo director de uma agência de notícias.
“Esta situação é má”, comentou Trump aos jornalistas em Washington, acrescentado que quer convidar a noiva de Khashoggi para ir à Casa Branca. O jornalista e autor foi tolerado durante décadas pelo regime, chegando a trabalhar com membros da família real. Mantendo sempre uma postura crítica, recusava considerar-se “um dissidente”.
Só em 2017 é que decidiu deixar o seu país, temendo retaliações pelas suas críticas a propósito da guerra saudita no Iémen e da mais recente onda de repressão, com a detenção de inúmeros críticos, incluindo mulheres que lideraram a luta contra o fim da proibição de conduzirem (entretanto levantada) e contra o sistema de “guardião masculino”, que não permite às mulheres do reino tomarem uma série de decisões sem a autorização de um homem da família.
Khashoggi tem passado grande parte do tempo nos Estados Unidos desde o exílio auto-imposto. Correspondente em diferentes países do Médio Oriente de vários jornais árabes, acabou por aceitar ser conselheiro de media do príncipe Turki bin Faisal, antigo chefe dos serviços secretos e ex-embaixador em Washington.
Ora elogiando, ora criticando as medidas do actual príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, que se apresenta como reformador e tomou o poder sem ainda ser rei, considerou a certa altura que a sua presença no reino se tornava cada vez mais incómoda.
“A Arábia Saudita nem sempre foi tão repressiva”, escreveu pouco depois de sair do país. “Agora é insuportável.”
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