segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O comprometimento de Washington não se fez demorar, embora as mágoas da expulsão de seus espiões pelo regime de Maputo e as tensões que dela se geraram continuassem a pairar. contudo, era melhor ter o regime de Maputo ao seu lado do que apostar na Renamo. Enviou assessores, correspondendo com o regime conservador da Magret Thacher.


SEGUNDA-FEIRA, 14 DE NOVEMBRO DE 2016

DHLAKAMA E A AFRICANIZAÇÃO DA RENAMO

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Tal como a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) foi criada por pessoas de várias nacionalidades (Ghana, Tanzânia, África do Sul, Kenya, Portugal, etc.) a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) também teve, no seu começo, pessoas de várias nacionalidades (portugueses, rodesianos, sul-africanos, malawianos, etc.). Porém, a historiografia da fundação destes movimentos sempre ignorou este facto, dando maior relevância aos elementos endógenos. A Renamo teve objectivos iniciais de difícil compreensão, conforme a composição dos seus fundadores e porque, sem retaguarda segura para um Congresso, teve que desenhar os seus objectivos no decurso da própria luta. Para críticos da Frelimo, os moçambicanos, sobreviventes das rusgas feitas a seguir à tentativa do golpe de estado de 17 de Dezembro de 1975, queriam dar continuidade ao processo de luta pela independência por considerarem que a transição do regime colonial tinha sido mal feita. Segundo a tese pró-Frelimo, na mesma altura, com a independência de Moçambique, os rodesianos queriam apoio de moçambicanos para os ajudar a desestruturar as bases dos movimentos nacionalistas que lutavam contra o regime UDI de Ian Smith, com destaque para ZANU Frente Patriótica e ZAPU, por um lado. Os luso-moçambicanos e outros portugueses interessados em ficar mas forçados a fugir, em parte pelos acontecimentos do 7 de Setembro de 1974, queriam manter os seus privilégios. Só uma conjugação de factores exógenos e endógenos explica a origem da Renamo. Neste escrito pretendo apresentar, de forma sumária, o que chamo de africanização da Renamo.

São de Março de 1976 os primeiros ataques coordenados contra o regime de Maputo, embora o mítico fundador da Renamo, André Matsangaissa, só se tenha evadido da prisão-campo de Sacudzo em Outubro seguinte. Para a criação do núcleo armado da Renamo valeu-lhe a ajuda de Manuel Mutambara e Marcos Amade, Orlando Cristina, Pedro Marangoni, Rui Silva entre outros. As verdadeiras frentes da Renamo foram feitas de forma gradual, de 1979 a 1984. De facto, em 1979 André Matadi Matsangaissa (Manica) e Paulo Tobias (Ndau) abriram a Frente de Sofala enquanto, no mesmo ano, João Macia Fombe (Manica), Lucas Mulhanga (Ndau), Mário Franque (Manica), Languane Vareia Manje (Sena) e Magurende John (Manica) abriam a frente de Manica. Estavam assim espalhadas as primeiras bases entre Chinete, Mucuti, Mabate, Sitatonga, Muxungue e Chidoco. Em 1981, Magurende John e Abel Tsequete prosseguiram com a luta para além do Zambeze tendo aberto a Frente da Zambézia enquanto Vareia Manje conquistava as almas da Terra de Boa Gente (abrindo a Frente de Inhambane) e Mário Franque abria a Frente do coração da Frelimo (Gaza). Em 1982, Pedro Muchanga (Ndau) abriu a frente de Maputo e Caliste Meque (Ndau) abriu a Frente de Tete. Em 1983, Ossufo Momade (Makwa) abriu a Frente de Nampula tendo-a dividido em duas zonas de influência, enquanto Rocha Paulino (Sena) abria a Frente do Niassa e, no ano seguinte, 1984, a Frente de Cabo Delgado.

Os sinais de ruptura entre os interesses externos e internos da Renamo começaram a verificar-se ainda no começo, quando André Matsangaissa decidiu deslocar-se para o interior de Moçambique e recusou ser pau mandado do regime de Salisbury. A partir de pequenas bases que foi criando, Matsangaisse e seus seguidores apostaram nas emboscadas ao longo das estradas em volta da Gorongosa (a Frelimo também apostara nas emboscadas ao longo do rio Rovuma) enquanto o seu confiado, que será seu substituto, Afonso Dhlakama, coordenava as emboscadas na região que vai de Inchope ao Save. Os sucessos das emboscadas permitiram aumentar o o número de doutrinados. Alguns dos raptados eram libertos para irem dar a boa nova aos aldeões e mostrar o lado humano do novo movimento. Em Outubro de 1979, durante as operaçóes governamentais contra a Serra, André Matsangaissa desapareceu, em definitivo, e o corpo nunca foi localizado, embora tenham ocorrido zuzuns de ter sido evacuado pelos boeres ou pelos rodesianos. Em seu lugar foi colocado Afonso Dhlakama que disputou o lugar com o comandante Lucas. Dhlakama era esperto e percebeu o andar das coisas. O primeiro esforço dele foi tentar africanizar a Renamo ao mesmo tempo que sabia do valor acrescentado de manter contactos com antigos colonos a fim de conseguir apoios.

O Acordo de Incomati foi mais determinante para Dhlakama e a Renamo terem consciência da necessidade imperiosa da sua africanização. Embora o regime tenha afirmado por varias vezes com provas que o movimento continuava a receber apoios do Apartheid, o afastamento era notório. O ataque a linha de energia que conduzia a África do Sul que se seguiu a Cimeira do Songo eram algumas das provas que apontam para esse sentido. De facto, não fazia sentido que a Renamo destruísse infra estruturas de um regime que a apoiava. Numa carta secreta de 12/6/85, Piter Botha ao diz ao Presidente Reagan que deixou de apoiar a Renamo e que pedia mais apoio de Washington a Frelimo para que esta abandonasse o regime socialista. E pedia ajuda, porque «Mr. President, South Africa’s resources are limited and our priorities must naturally lie within our own borders. Nevertheless, given the size of our Gross National Product, I am sure, that you will agree that we are doing more than our fair share towards trying to wean Mozambique from Moscow». E a Renamo, apercebendo-se deste movimento diplomático passou a confiar mais nas capacidades internas. Negociava armas com alguns generais e deixava que o exército moçambicano lhe formasse homens.

O comprometimento de Washington não se fez demorar, embora as mágoas da expulsão de seus espiões pelo regime de Maputo e as tensões que dela se geraram continuassem a pairar. contudo, era melhor ter o regime de Maputo ao seu lado do que apostar na Renamo. Enviou assessores, correspondendo com o regime conservador da Magret Thacher. Formaram soldados moçambicanos no Zimbabwe e os ataques a Renamo prosseguiram, desta vez já sem grande apoio nem do Zimbabwe muito menos da Africa do Sul. A corrupção no exército nacional em que generais comercializavam armas com a Renamo foi uma das coisas que o colocou em desvantagem. Um autor apontava o facto de se ter privilegiado comandantes Ndau para uma área cujos ressurgentes eram, na sua maioria, também Ndau. Maputo estava na dificuldade porque colocando homens que desconheciam a língua local dava-se a ideia de serem forças de ocupação pelo que o povo não compreendia bem a importância da presença daquelas forças que eram frequentemente traídas. O distanciamento da Renamo dos seus apoiantes estrangeiros foi acompanhado por uma introdução gradual de elementos africanos. As lideranças no interior do país, distanciavam-se dos porta-vozes fora do país o que ao mesmo tempo era sinal de fraqueza e de grandeza. Fraqueza porque criou-se um corte de apoio externo que fosse capaz de contra informar os relatórios que eram publicados no exterior sobre as atrocidades que a ela se dirigiam mesmo quando as provas não eram evidentes. O impacto do Relatório Gersony tem que ser compreendido à luz destas metamorfoses. Grandeza porque permitiu que a Renamo se afirmasse como força interna cortando os argumentos do governo que insistia em negociar com o regime de Pretoria ou seja, no lugar de negociar com o cão podemos e devemos negociar com o dono.

Dhlakama começou com o processo cauteloso de afastamento de todos os indivíduos que tinham um compromisso com o passado colonial para não dar a entender que seria o instrumento do colonialismo para desestabilizar. Cortou as ligações de lobby anti comunistas nos EUA e os amigos na RAS porque o regime insistia em que não negociaria com portugueses. Aboliu o cargo de Secretário Geral, em meados de 1986, quando Evo Fernandes foi colocado no Departamento de Estudos. Fernandes, tal como alguns pesos frelimistas, era um português descendente de goeses, amigo pessoal de Jorge Jardim, dono do Noticias da Beira. O substituto de Fernandes, acabou sendo expelido do Conselho Executivo nacional em Fevereiro de 1987. Na mesma altura também foi expulso Jorge Correia, amigo pessoal de Evo Fernandes que representava a Renamo na Europa Ocidental, anunciador da operação Cachimbo Ardente. De acordo com a nota de 27 de Fevereiro de 1987, Fernandes e Correia eram acusados de falsa informação, roubo de dinheiro, tentativa de dividir o movimento e nepotismo. Embora sem mencionar no concreto, sabe-se que Correia fizera declarações assumindo a autoria de explosão de uma bomba contra um autocarro em Maputo da qual ficaram feridas 49 pessoas o que embaraçou o movimento que atribuía o atentado a tropas dissidentes dentro das forças armadas esperando tirar vantagens.

Em contra-mão, a Renamo começou a receber pesos pesados, é afirmação de pessoas como o caso de Sebastião Chapepa, antigo enfermeiro da Frelimo e que se juntou à Renamo em 1977, Vicente Ululu, antigo membro da UNAMO, João da Silva Ataide, que era embaixador de Moçambique em Portugal, embora estivesse a guardar seu secretismo como apoiador da Renamo em Lisboa; José Francisco Mascarenhas, numero dois de Ataide e antigo agente do SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular. Depois da deserção do chefe do SNASP, Jorge Costa, em 1982. Mascarenhas fora um dos 100 presos da Frelimo durante muito tempo; Francisco Nota Moises, antigo estudante do Instituto Moçambicano e ex-funcionário da British Broadcasting Corporation (BBC) em Nairobi (Kenya) que ocupou cargo de Informação em Dezembro de 1986, Artur Januário da Fonseca, antigo representante da Renamo na Europa Oriental até 1986, antigo agente secreto do regime colonial nos anos 1960. Porém, desde a queda de Fernandes, todas as informações eram feitas por Paulo de Oliveira, outro português que trabalhara para o diário Português «O Dia». Em Washington representava a Renamo Luís Serapião que em meados de 1985 lançou a criação do Mozambique National Independence Committe (CONIMO) em companhia de Zeca Caliate (antigo comandante que abriu a frente da Frelimo em Tete e que em 1973 desertou para o regime colonial, e de Máximo Dias, antigo fundador do Unidade por Moçambique com Joana Simeão. Serapião fora antigo estudante bolseiro da Frelimo que nos anos 1960 recusou regressar para Tanzania e na altura dava aulas na prestigiosa Universidade Americana «Howard Universtry». Na mesma ocasião e no mesmo espaço estava também outro estudante dos anos 60, Artur Vilanculos, que engrossara as fileiras da COREMO. Entrou na Renamo em 1982.

Em suas campanhas anti-Frelimo, acusavam esta de estar a levar a cabo uma política neocolonial de exclusão política, económica, social e cultural. Mas sobretudo de estar a implementar as práticas fascistas que tinha jurado combater sob a capa de regime progressista, apostado na construção de uma sociedade avançada e na criação do homem novo moldado no partido único, dirigido por um só líder omnipotente, omnipresente e incontestável, conformado com um só pensamento. A guia e marcha substituíra a caderneta indígena e os campos de São Tomé para onde eram deportados alguns moçambicanos no tempo colonial, vieram para Cabo Delgado, Niassa, Gaza, etc., no âmbito de processos de reeducação e de produção. No auge da guerra, acusaram o regime de estar a forçar as pessoas a deslocarem-se para cidades ou para países vizinhos, como forma de privar a guerrilha de alimentação, tal como fazia o exército colonial português. Porém, isso ajudou a que a Renamo criasse um sistema de abastecimento da Zambézia para Manica, através das famosas colunas. No Zimbabwe estaria Thomas Schaff, um agricultor norte-americano que estaria a colaborar com a Renamo e que ajudou na libertacão de muitos raptados por este movimento. A outra força da africanização e moçambicanização da Renamo foi o presidente do PADELIMO (Partido Democrático de Moçambique) Fanuel Mahluza, autor do acrónimo Frelimo, na altura vivendo no Kenya mas com muitos interesses políticos na África do Sul. Este partido terá sido fundamental nas conexões e ligações das negociações da Renamo no Kenya, (muito embora o papel da Igreja esteja sendo dado mais valor) que permitirão o AGP, o que levava a Africa Confidencial considerar que o PADELIMO era a Frente da Renamo no Kenya onde vivia Leo Milas, segundo Secretário da Defesa da Frelimo, agora como funcionário das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, cujo apoio na fundação da Renamo ainda não foi estudado. Foi Dhlakama quem transferiu a base da Renamo para Transvaal, após a independência do Zimbabwe. Porém, uma das dificuldades na moçambicanização interna da Renamo foi a excessiva existência de comandantes da etnia Ndau. Se por um lado esta presença da tribo do presidente garantia lealdade, por outro dificultava a expansão das acções da guerrilha para outras partes. Foi neste sentido que começaram sendo confiadas pessoas de outras tribos que levaram a guerra para longe de Manica e Sofala. Ao Norte do Zambeze valeu o apoio do dirigente da África Livre, Gimo Phiri, que do Malawi lançou uma ofensiva ao norte de Tete e na Zambézia o que obrigou o regime, no caso da Zambézia, a pedir socorro de tanzanianos graças aos quais conseguiu livrar-se das investidas. Quando as tropas governamentais concentraram o fogo no Centro, a Renamo foi atacar Maputo e Gaza, operando através das bases da África do Sul.

Por 
Eusébio A. P. Gwembe, Historiador 

SEXTA-FEIRA, 3 DE JUNHO DE 2016

Joana Simeão e o ideal do encontro de raças sem confrontação

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Nampula, 4 de Novembro de 1937 nasce Joana Francisca Fonseca Simeão, filha de José Luís Simeão e de Leopoldina Rebelo Fonseca Simeão. O pai, motorista dos Bispos D. Teófilo José Pereira de Andrade e D. Manuel de Medeiros Guerreiro, fez de tudo para ver a filha formada. O percurso político da Joana Simeão teve a ver com o seu dia-a-dia. Frequentando o ensino primário numa escola perto da administração, em Nampula, via pessoas negras a serem violentadas e amarradas. Em 1944, na primeira classe, presenciou uma coisa que marcou a sua vida, ao assistir crianças pretas apanhando palmadas. Relacionou aquilo com a cor da pele. Três décadas mais tarde, em retrospectiva, recordará por estes momentos ao acrescentar: «E, aconteceu também que uma vez minha mãe mandou-me à administração pedir a um cipaio nosso amigo para libertar um preto que tinha sido preso sem motivo». Quando completou a 4ª classe que era limite para a maioria dos pretos, o pai tentou enviar ela e sua irmã de sangue, Ana Simeão, para o colégio das freiras que recusaram, alegando que nunca tinham tido alunas pretas. Este foi o segundo episódio racial ocorrido na sua vida. Contará este episódio ao Eduardo Mondlane, com quem partilhava grande parte dos ideais. «Como éramos negras, as freiras não aceitaram até que o meu pai replicasse ao Bispo de Nampula de quem era motorista». A vida no colégio e a discriminação a que as duas irmãs eram sujeitas serviam para formar o espírito de revolta política da Joana. Se por um lado sofria a discriminação pela cor da pele, por outro lado notava que as poucas oportunidades que existiam eram dadas aos homens. 

Aos 15 anos, isto é, em 1952, pela ordem do pai, as duas filhas (Joana Simeão e Ana Simeão) foram enviadas para o Colégio de Santa Cruz, em Coimbra-Portugal. Quando fizeram o sexto ano, o pai ficou impossibilitado de pagar as mensalidades em resultado de um acidente. Disso resultou que as duas foram duplamente impedidas de assistirem às aulas e de lagar o colégio, por serem reféns de dívida. Sem capacidade para estar em contacto com os pais, sem família em Portugal, com um ano lectivo perdido, Joana aventurou-se para Lisboa onde marcou a sua primeira audiência com o então  Ministro das Colónias, Manuel Maria Sarmento Rodrigues. Dele conseguiu apoio para ela e a irmã concluírem o 7º ano sem pagar. Era a terceira experiência dolorosa e desabafou: «se nós não fossemos negras, isso não acontecia». Enquanto frequentava o sétimo ano, foi nomeada vogal da «Casa dos Estudantes do Império, o ninho da formação política» por meio do qual conhecerá e conviverá, mais tarde, com outros nacionalistas entre os quais Mariano Matsinhe, Sérgio Vieira, Pascoal Mucumbi, Joaquim Chissano.  Em 1958 escreveu o seu primeiro artigo publicado pela Associação dos Naturais de Moçambique no «A voz de Moçambique». No grupo de trabalhos tinha observado que os mistos tendiam a isolar-se dos negros, pelo que defendeu a necessidade de uma convivência social harmoniosa entre as diferentes raças. Mais tarde, viria a dizer a um governante que «Foi preciso a Frelimo e o Coremo, a UPA e todos os outros movimentos fazerem o que fizeram para vocês verem o problema». O sonho do pai era que cursasse Medicina mas ela seguiu Direito, curso que considerava poder responder bem às «reivindicações de ordem política que tiveram nela uma forma anárquica, uma mistura mórbida de encontrar ou realizar um encontro entre raças sem confrontação». Com efeito, defendia que devia haver uma frente de moçambicanos lúcidos, que englobasse todas as raças presentes em Moçambique.

Em 1959 entrou para o Curso de Direito, em Coimbra, tendo concluído o primeiro ano. Para o ano lectivo 1960/1961 notou que as condições de vida não lhe eram fáceis e revolveu seguir para Lisboa, a fim de procurar algum emprego. Com ajuda de Adriano Moreira, empregou-se no Ministério do Ultramar, como arquivista e pode frequentar o segundo ano de Direito em Lisboa. Em 1961, fez uma curta visita a Moçambique e, quando regressou a Lisboa, empregou-se no Ministério da Economia sem, contudo, deixar de participar dos eventos políticos. A sua facilidade em encontrar emprego, no regime que tinha começado a ser combatido em Angola, criava nos colegas a suspeita de ser uma agente da PIDE. Um episódio havido entre eles, num grupo de debate, precipitou a conclusão do que até então era mera suspeita. Naquele encontro, a Joana alertara ao grupo que todos deviam trabalhar tendo na mente uma verdade: «todo o Estado possui e trabalha com uma Polícia secreta».

Na sequência da fuga de 41 estudantes ultramarinos, após incidentes de Angola, a Joana precipita-se como asilada política na embaixada da Venezuela. Entretanto, o embaixador acabou por dizer-lhe que das investigações feitas, não havia nada contra ela e que, se quisesse sair, ninguém a prenderia. Saiu da embaixada da Venezuela para a da Indonésia numa altura em que Mondlane estava a criar uma rede de «engajamento de estudantes ultramarinos» para a qual fora convidada a tomar parte. Mondlane recomendara um encontro com um colega que ao fim e ao cabo acabou por trai-la a PIDE. No  começo,  garantiram-lhe que tudo já estava tratado e que ela fosse à Covilhã, a um hotel; alguém a iria levar para a Espanha. Era uma cilada de um agente duplo que não a queria entre os nacionalistas. Quem apareceu, na verdade, foi a PIDE. Presa, levada para Lisboa, passou por interrogações, humilhações e maus tratos. O relatório do interrogatório deixou claro que, apesar da intimidação «a Joana continuou a defender o seu ideal dizendo que havia uma injustiça social baseada na raça e que ela não era comunista porque todos os comunistas são racistas. Afirmou ter uma orientação e uma tendência democrata-liberal. Condenou a inflexibilidade do regime em não permitir as liberdades cívicas, sobretudo aos homens de raça negra, sem necessidade. Ela diz que luta por um regime onde cada um pudesse expor as suas ideias sem ter que pagar por aquilo que diz». Liberta pela PIDE, em 1963, empregou-se na Sonap & Cilda, como secretária de direcção. Desta vez, legalmente, submeteu um pedido de passaporte, para ir a Espanha, porque sempre quis fugir. 

Em 1964, com ajuda do namorado, fugiu para Argel onde conheceu a Frelimo, por meio de Marcelino dos Santos. Ai, pela sua surpresa, encontrou-se com um dos colegas com quem tinha divergências aquando da acusação de «espia» e os fantasmas do passado voltaram na sua mente. Mesmo consciente de que pesava sobre ela a suspeita de ser agente psico-social da PIDE, aceitou trabalhar como dactilógrafa, no escritório da Frelimo. Ela própria dirá, mais tarde, «aceitei, apesar de saber que uma suspeita pesava sobre mim: eu era agente da PIDE, coisa fantástica… Aquando de nossos encontros eu tinha dito aos colegas que todo o Estado tem uma Polícia Secreta. Esta simples declaração criou uma situação intolerável. Quero frisar que a minha filiação na Frelimo foi um mero acidente de recurso. Não tinha, na altura, para onde ir». E ironizando contra os acusadores, desabafou: «E hoje, vendo as coisas à distância começo a rir ao verificar que os anjinhos e os puros dos grupos revolucionários mantêm relações com algumas polícias secretas, e ainda mais, recebem dinheiro e por vezes devem-lhes mesmo a vida. Estou hoje convencida que [alguém] escapou a tempo graças a um desses informadores. Em 1965, aos 28 anos, casou-se com Serge Tshilenge (jovem congolês da tribo baluba, estudante da Faculdade de Direito de Assas (Paris), em Argel. Tshirenge encontrava-se a trabalhar na embaixada do seu País com ajuda de Ben Bella, seu amigo pessoal mas  derrube de Bella obrigará o recém-casal a seguir para Paris. Mondlane, com quem partilhava muitos pontos de vista, dissera para que o casal fosse a Dar-es-Salaam, mas o marido preferiu Paris àquela cidade. Em 1966, chegou a Paris onde se registou como Ivette Joana Tshilenge, com ajuda do amigo do marido. Teve assim,  uma nacionalidade congolesa.

Em 14 de Março de 1967 teve a primeira filha, Cecile Tshirenge. A 25 de Maio do ano seguinte nasceu o segundo filho. Mas a vida familiar não era bem-sucedida e, por vezes, o esposo usava o passaporte como objecto de chantagem. Ela empregou-se na TV Francesa, após ter conseguido que o Vaticano apoiasse o seu projecto para retirar as meninas negras das ruas de Paris. Esta iniciativa nobre lhe valerá acusação entre os machistas do seu tempo. Diabolizada sob todas as formas, a Joana prosseguiu com o ideal de ajudar que parte das prostitutas negras de Paris conseguisse algum trabalho fixo e se retirassem da rua. Projectava viajar aos governos africanos para negociar vagas de modo que algumas daquelas meninas pudessem ter espaço em seus países, começar com as do Congo Kinshasa. Com efeito, viajou para Kinshasa, ao encontro do ministro dos assuntos sociais, mas aqui conheceu Holden Roberto que achou interessante a sua actividade e prometeu pôr-lhe em contacto com os chefes do Coremo, sediados em Lusaka, tendo-lhe pago a passagem de avião. 

A 24 de Agosto de 1970, chegou a Lusaka e constatou que nesta altura, Paulo José Gumane, presidente do Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO) encontrava-se isolado pelos amigos, Absalon Titus Bahule e Mahlatini Ngome. Nesta mesma noite, foi jantar na casa de Mariano Matsinhe, «meu grande amigo». Três dias depois, distribuiu panfletos pelas ruas de Lusaka, na qualidade de Presidente da Associação da Juventude Feminina Africana na Europa. Daqui recebeu a missão de ser propagandista do COREMO na Europa onde já residia  o Dr. Campos com quem teve muitos desentendimentos, devido a velha suspeita. Os seus opositores tinham espalhado uma fama segundo a qual ela pertencia à «uma associação vergonhosa, de prostitutas africanas para arranjar dinheiro na Europa». Como propagandista do COREMO, conseguiu mobilizar apoio mas o partido não conseguiu pagar o transporte e ficou retido em Londres e Bruxelas. A 2 de Fevereiro de 1971, chegou inesperadamente a Lusaka com os dois filhos, tendo se hospedado na casa de Paulo Gumane. Nesta altura, o Coremo tinha capturado cinco militares/técnicos portugueses do acampamento de Mucangadeze. Diz-se que teria enviado uma carta ao chefe da Cruz Vermelha, Rene Weber, dizendo que os raptores queriam 7000USD. Além desse valor, devia haver bilhetes de passagem para ela e para os filhos seguirem à Europa/Paris. Weber consultou Absalon Titus Bahule que declinou. Insegura pela suspeita que recaía sobre ela quanto ao pedido de resgate, na ausência de Gumane da casa, refugiou-se para Vitoria Hotel. Entretanto, a versão dela foi a de que apenas traduziu a carta que Bahule redigira. Provavelmente terá fugido quando se apercebeu que os reféns tinham sido executados, medida com a qual não concordava. 

A 27 de Fevereiro, fugiu precipitadamente da Zâmbia para a Europa. Na França apresentou-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e, com ajuda de um Salvo-Conduto, foi a Portugal donde seguirá a Moçambique. Hospedou-se em Dondo, na casa de Jorge Jardim. Estando aqui, a PIDE procurou aliciá-la a fazer uma confissão pública, criticar a Frelimo e ao  Coremo. Ela recusou porque segundo suas palavras «lá  fora  diz-se que a Frelimo vencerá». Em 23 de Dezembro de 1972, foi a Nampula, após 15 anos de ausência. Ai ficou até 28 de Janeiro de 1973. Regressou para Beira onde trabalhou no Notícias da Beira. A sua passagem por Nampula deixou a cidade agitada, conforme o relatório quinzenal do governo local, de 15 a 30 de Janeiro daquele ano. A Joana alugou um salão da Missão S. Pedro onde promoveu danças, comeretes e beberetes aos convidados. Seguiu-se o tempo da fala em que disse: «o preto deixará de ser escravo e eu vim para convosco trabalhar: pretos, mitos…. Brancos, asiáticos; por um Moçambique maior e melhor. Temos que acabar com a indolência Macua, temos de trabalhar para isso, mas primeiro tem de pensar e deixar de ser alarves. Só a aderência aos movimentos de libertação (FRELIMO E COREMO) pode fazer desaparecer a lepra das injustiças». Mais tarde, decidiu-se pelo seu envio a Lourenço Marques, onde foi admitida como professora de Francês no então Liceu António Enes. Mais tarde, criou embaraços na Instituição pois seguiu para a Suécia, onde estava a filha ao cuidado da Ana, sem deixar notas dos estudantes à direcção. A PIDE continuou a querer fazer dela porta-voz da autonomia progressiva, porém, ela agia cautelosamente. No expresso de 22 de Dezembro de 1973, o Dr. Augusto de Carvalho, jornalista daquele Jornal, escrevia, indignado «ou é uma agente do Governo ou uma revolucionária preparada para provocar discórdia, propícias a um movimento subversivo» ao se aperceber de que a Joana continua inflexível com a ideia de Moçambique Independente. Com Máximo Dias, Jorge de Abreu e Cassamo Daude, fundaram Grupo Unid Por Moçambique, cuja vida durou 65 dias. Os três homens mostraram recuo quando ela já tinha os estatutos em mão, elaborados por Máximo Dias. A 7 de Abril de 1974 viajou para Lisboa. Abreu chegou a telefonar-lhe para dizer que «estava arrependido de ter aderido ao Gumo enquanto Máximo Dias já pedira para que ela não fosse fazer entrega dos estatutos para reconhecimento, mas ela prosseguiu. Continua

QUARTA-FEIRA, 23 DE MARÇO DE 2016

Cartas de Dhlakama ao Presidente de Portugal (1991)

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Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe
Carta 1
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Presidente da Renamo
Gorongosa, 1 de Março de 1991
À sua excelência o Presidente da República Portuguesa.
Excelência:
Tomo a liberdade de me dirigir a Vossa Excelência na minha qualidade de Presidente da Renamo, numa altura em que no Mundo se conhecem grandes transformações. A Renamo é um Movimento Político que luta pela democracia e liberdade em Moçambique, ciente de que o progresso só é possível em liberdade e paz, condições que em Moçambique só serão possíveis quando se enveredar pela democracia pluripartidária. Estamos convictos de que a Vossa Excelência, com o seu passado de sincero apego aos valores da liberdade e da democracia, compreenderá a determinação da Renamo e não deixará de contribuir para que a paz venha a ser possível em Moçambique.
Somos de opinião que Portugal pode e deve desempenhar um papel relevante na busca de paz em Moçambique, dados os laços históricos e culturais que unem os povos dos dois países, e a vontade de cooperar com os países africanos de expressão portuguesa que os governantes portugueses sempre manifestaram. É tendo em conta essa posição privilegiada e em virtude de a Renamo julgar da maior importância que o novo Moçambique, democrático e pluralista, desenvolva, a todos os níveis, os laços de amizade e de cooperação com o país a cujos destinos Vossa Excelência preside, que tenciono visitar Portugal entre os próximos dias 10 a 30 de Maio do corrente ano.
Aquando dessa visita, seria uma honra para o Movimento a que presido e para mim próprio encontrar-me com Vossa Excelência, no intuito de, conjuntamente, analisarmos a actual situação moçambicana, no contexto geral da África Austral, no propósito de se vir a encontrar os caminhos do diálogo e da paz. Certo de que é do esclarecimento dos pontos de vista de todos os intervenientes no processo de paz e da livre confrontação de ideias que nascem as soluções construtivas, apresento, desde já, os meus respeitosos cumprimentos.
Afonso Dhlakama

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Carta 2
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A Sua Excelência,
O Senhor Presidente da República,
Dr. Mário Soares.
Terminada a visita que efectuei a Portugal, não posso deixar de agradecer vivamente todo o empenho, compreensão e disponibilidade manifestada por Vossa Excelência na resolução do processo de paz no meu País. Creia, Senhor Presidente, que levo deste País as mais gratas recordações de amizade e carinho do Povo Português, o que naturalmente vem reforçar as relações entre os nossos dois Povos. Aproveito a oportunidade para reiterar a Vossa Excelência, Senhor Presidente, os protestos da minha mais elevada consideração.
Presidente da Renamo
Afonso Dhlakama

SÁBADO, 19 DE MARÇO DE 2016

Quando Dhlakama rezou pela Paz em Fátima

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Por Eusébio A. P. Gwembe

Lisboa, 9 de Novembro de 1991. As ruas estão repletas de Jornais com títulos curiosos. «Dhlakama foi a Fátima Pedir a Paz»; «Afonso Dhlakama, o Peregrino»; «Dhlakama rezou pela paz em Moçambique», «Dhlakama, o Sobrevivente». Falam de um homem que está no País, vindo da Itália, onde negoceia a paz e para onde vai regressar. Sem as habituais roupagens de militar, afável mas reservado sobe automóvel, a caminho do Santuário da Fátima. Chega sem criar alaridos. Poucos advinham que se encontra ali o líder da guerrilha moçambicana.  Baixinho, vestindo um facto azul escuro e uma gravata às riscas, o homem de quem se guarda curiosidade já está no meio deles. Sobe a escadaria da Basílica do Santuário. São 11 horas,  o «peregrino» ajoelha-se em recolhimento por longos minutos. 39 anos de idade, lidera uma guerrilha conhecida pela sua violência, num dos países mais pobres do mundo. Seus passos testemunham o que sabe fazer, trepar. 
Passa às passadeiras de mármore do lugar dos Valinhos, onde ocorreram as aparições. «Se calhar aqui não vale a pena subir, é escorregadio» diz-lhe o padre Oliveira junto a uma subida. «Podemos subir? Vamos subir», pergunta e responde de um fôlego Dhlakama. Admirado o padre diz «na guerrilha deve estar habituado a andar a pé». Dhlakama limita-se a sorrir, como quase  sempre. Visita os túmulos de Francisco e Jacinta e ouve atentamente dos guias contando-lhe a história oficial das aparições  da Virgem Maria aos três videntes. A sua presença prima-se pela ausência dos aparotosos seguranças que, por exemplo, caracterizam as animadas passagens de Savimbi por Portugal. Desce e estende a mão ao repórter do Público a quem afirma «estou aqui porque sou cristão, sou católico e quero a Paz para Moçambique. Vim aqui rezar pela paz porque confio muito na força de Deus, que é muito forte». Alguns dos Jornais tentam lançar a biografia do guerreiro. «O filho do régulo que fez a instrução primária numa missão católica de São Francisco de Assis e frequentou o Seminário de Boroma, em Tete, baptizado, crismado pela Igreja, ainda se afirma «cem por cento católico». É a descrição do «Público». 
«Estudou em Zobue, onde se manteve por pouco tempo, antes de transferir-se para a escola Industrial da Beira, onde concluiu o quinto ano. Ingressa então no Exército Português, de onde deserta em 1972, com 19 anos, aderindo à Frelimo, mas segundo  o Partido no Poder em Moçambique, a adesão de Dhlakama só aconteceu em 1974». Assim descreve o Jornal.  É hora da Missa. O grupo de Dhlakama senta-se na primeira fila, «bebendo com atenção cada apelo à paz e reconciliação em Moçambique proferido pelo reitor do Santuário, o monsenhor Luciano Guerra. Ao fim da missa, o homem do facto azul afirma que «o papel da Igreja Católica em Moçambique é hoje primordial porque foi a Igreja Católica a exigir que a Frelimo e a Renamo se juntassem». Enquanto fala, à sua frente, os flashes de fotógrafos o assediam. Pouco habituado a essas coisas, prossegue: «Foi da iniciativa da Igreja que as duas forças se juntaram. A Igreja sempre teve um papel muito importante no ensino, por exemplo, e terá um papel muito importante». 
O Padre António Oliveira, amigo pessoal de Jonas Savimbi, escolhido pelo patriarca de Lisboa, por isso, a acompanhar Dhlakama de automóvel desde Lisboa diz aos repórteres: «Ele parece-me um católico convicto. É um homem que não terá praticado muito mas quem tem uma formação católica desde a Infância. Estou surpreso com a sua simplicidade. É um guerrilheiro puro que saiu da mata, ao pé dele Savimbi é uma raposa velha. Dhlakama é mais genuíno e mais sincero que os políticos que conhecemos. Não é um político consumado, mostra quais os seus objectivos, fala sem rodeios, muito claramente, com poucas palavras mas sem floreados. Não terá a cultura e a facilidade de expressão de outros líderes, mas capta pela simplicidade». A hora do almoço, ainda no Santuário, Dhlakama deixa uma dedicatória na qual explica que foi a Fátima pedir a Paz. Estende a sua mão e o seu coração aos irmãos da Frelimo a quem promete «um espírito de esquecer e não retaliar contra os que o combateram». Aproveita visitar no Colégio Pio XII o filho mais velho do malogrado Evo Fernandes. 
Dhlakama é um homem silencioso, quase tímido. A comitiva que o acompanha é extremamente reduzida e as palavras parcas. Enquanto esteve em Portugal não deu uma só entrevista, esquivou-se a todas. É hábito dele!  Quando permaneceu em Portugal, pela primeira vez, no ano de 1982, ninguém deu por ele. O semanário diz que «agora, apesar dos encontros oficiais, continua a parecer um homem estranhamente acanhado; sem o aparato de um chefe africano. Compará-lo com Savimbi é totalmente descabido de sentido. Enquanto o líder da Unita não dá um passo sem um exército de gorilas, Afonso Dhlakama viajou sem guarda própria e com apenas um destacamento de 3 ou 4 elementos da escolta (a paisana) designada por Portugal e que mantinham sempre a largos metros do líder». Despertados pela curiosidade, algumas pessoas dirigem-se a Dhlakama para se apresentarem na qualidade de portugueses que viveram em Moçambique.

Fontes: 
Expresso, Sábado, 9 de Novembro de 1991
O Jornal, Sexta, 8 de Novembro de 1991
O Público, 9 de Novembro de 1991
Semanário, Lisboa, 9 Nov 91

SEXTA-FEIRA, 18 DE MARÇO DE 2016

A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu (Parte 2)

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Leia a parte 1 Aqui.
Povo não sabe onde pôr o coração.

Aspirações do povo:
O Povo sente na carne e no espírito todas as violência: os massacres, os assassinatos, os maus tratos e as torturas. Sente a humilhação e a degradação. Sente a perda da sua própria vida e da sua própria alma: a perda da sua personalidade, identidade e cultura. E sente, com uma intensidade ainda maior, o profundo desejo de um tempo melhor: um tempo de maior justiça e de maior dignidade; um tempo de um bem estar maior a todos os níveis: a nível político, económico, administrativo e militar, a nível espiritual, moral e cultural. O Povo, esmagado por tantas violências e por tantas carências, aspira, de facto, a um tempo de maior justiça e de maior amor. Mas parece não saber donde poderá surgir, efectivamente, esse tempo de maior justiça e de maior amor. A desilusão é grande, e, como dizem os velhos, «o Povo não sabe onde pôr o coração». 
Nenhuma das forças em presença lhe merece inteira confiança. Uns e outros, mercê das arbitrariedades e injustiças cometidas, humilharam-no e desiludiram-no. Mas, apesar de tudo isso, continua a sonhar com um tempo de justiça e de paz. Continua a esperar que alguém o tome a sério e lhe devolva a dignidade e a liberdade a que tem indiscutível direito. Impõe-se, portanto, o aparecimento de homens que façam uma verdadeira e clara opção pelo Povo, pela sua vida e os seus direitos, pelo seu desenvolvimento e bem-estar, pela sua personalidade e cultura, pela sua independência e soberania. Homens que façam sinceramente um opção pela paz, contra a guerra e contra todas as armas de guerra, uma opção pela vida e contra todas as formas de destruição e de morte, uma opção pelos valores que possam salvar, efectivamente, a Nação Moçambicana.

Opção por uma política de maior verdade:
Em primeiro lugar, a opção pela verdade. Urge, de facto, uma política de maior verdade, a  todos os níveis. A mentira, tão infiltrada nas Instituições, no Aparelho do Estado e do Partido, nos diversos sectores da vida nacional, terá que dar lugar a uma política de maior verdade. A hipocrisia, as meias-verdades, os discursos alienantes, a informação orientada, as diversas formas de manipulação e de instrumentalização, terão que dar lugar à sinceridade, à honestidade, ao respeito pelas consciências, pela inteligência, pela liberdade e co-responsabilidade de todos e de cada um dos cidadãos do nosso País. Só pelo cultivo da sinceridade e da verdade poderá haver, nos diversos sectores da vida da Nação, na Comunidade Política e nas Instituições partidárias, políticas, sociais, económicas, jurídicas, educacionais e culturais, consciências vivas, inteligências criadoras, liberdades solidárias e responsabilizadas, participação consciente e generosa.
A mentira, tenha ela a face que tiver, corrompe e aliena. Um povo governado ou orientado por mentiras organizadas ou por ideologias mutiladas ou redutoras, jamais será um Povo saudável e adulto. Será, pelo contrário, um Povo ameaçado naquilo que ele tem de melhor e mais profundo: a sua consciência, a sua liberdade, a sua dignidade e criatividade. Impõe-se, portanto, uma política de maior verdade e de maior sinceridade, uma política de maior serviço à dignidade, à liberdade, à criatividade e responsabilidade de todo o nosso Povo.

Opção por sistemas e modelos mais próximos e mais ajustados:
Impõe-se, também, uma opção por sistemas e modelos que tenham mais em conta o homem concreto, o Povo inteiro, ou seja, a totalidade dos seus legítimos direitos e deveres, e das suas justas e irreprimíveis aspirações. Que tenham mais em conta a inteira personalidade da Nação Moçambicana. Torna-se, portanto, imperiosa a revisão dos sistemas e modelos em curso, abandonando o que neles possa haver de humilhação e opressão, e conservando, com um espírito sempre mais crítico e mais aberto, o que neles houver de verdadeiro e autêntico crescimento do homem e do Povo.
Verificamos com tristeza que, apesar dos esforços havidos e dos sucessos alcançados, o Povo Moçambicano continua, na sua maioria, a ser objecto e não sujeito do seu próprio crescimento e da sua própria história. Continua, sobretudo, a servir, com grave prejuízo para a sua personalidade e liberdade, ideologias e culturas estranhas. Impõe-se, na verdade, uma lúcida análise das ideologias, dos modelos e sistemas, os quais, julgados, num dado momento, os melhores para servir a libertação e o crescimento do Povo, hoje se revelem como sistemas ou modelos menos ajustados e menos aptos a contribuir, eficazmente, para um real e solidário crescimento do Povo e da Nação. Impõe-se uma opção por sistemas e modelos mais próximos da cultura e índole do Povo. Não se trata de contrapor uma ideologia a outra, um sistema a outro sistema ou modelo, mas de proporcionar a todo o Povo possibilidades reais de ser, ele próprio, o sujeito indiscutível do seu desenvolvimento e da sua história, o primeiro responsável da sua independência e do seu destino.

Opção pelo homem concreto:
Esta opção por ideologias, sistemas ou modelos mais próximos e mais ajustados, implica, naturalmente, a opção pelo homem concreto, pelo Povo concreto e pelos valores que são inerentes e inalienáveis. Com isto queremos dizer que, no centro de toda a actividade política, económica, social, jurídica, cultural, deverá estar presente o homem concreto, real, o homem na sua inteira verdade, com a sua dimensão individual e social, com a sua imanência e transcendência, a sua vocação histórica e trans-histórica. O homem concreto e inteiro, e não o homem utópico, abstracto, reduzido ou parcelados. Devera estar presente o homem todo e o Povo todo: o Povo real, concreto e não o Povo abstracto ou utópico.

Opção pelos valores superiores do homem e do povo:
A opção pelo homem e pelo Povo, como tais, exige a opção pelos valores que os caracterizam e lhes dão, no conjunto dos Povos, uma fisionomia inconfundível. Exige, também, uma opção pelos direitos e pelas liberdades que lhes são inerentes. Urge, de facto, uma política de maior respeito e de maior empenho pelos valores essenciais ao homem e à sociedade, e pela cultura própria do Povo e da Nação Moçambicana. A experiência diz-nos que não basta, empenharmo-nos em alcançar mais valores científicos e tecnológicos, mais valores ideológicos, jurídicos e políticos, mais valores económico-sociais. Urge, efectivamente, um empenho que permita dar aos valores espirituais, éticos, morais, religiosos, culturais e humanos o lugar que lhes compete na libertação e crescimento de cada um e de todos, na construção da sociedade e na edificação da nossa Pátria. Urge um empenho mais sério e mais autêntico no sentido da defesa e promoção dos valores próprios do Povo e cuja perda ou destruição constituiriam um grave atentado à personalidade e à identidade da Nação Moçambicana, um prejuízo irresponsável para o património espiritual da humanidade e dos Povos.
Sem dúvida, não basta crescer ideológica, política e economicamente. Não bastam os valores que fazem o bem-estar material. Impõe-se a opção clara pelos valores do espírito, pelos valores superiores do homem e da sociedade. Caso contrário, poderemos assistir a um certo crescimento científico, tecnológico, político, económico-social e constatarmos, ao mesmo tempo, um crescimento e imparável degradação moral, espiritual e cultural do homem e da sociedade, do Povo e da própria Nação. O clima de violência, de arbitrariedades, de abuso e de egoísmo, os diversos crimes contra a vida, contra  dignidade humana e contra os valores mais sagrados do Povo - como são os valores espirituais, morais e religiosos -, as mentalidades e comportamentos imorais, mostram bem a degradação e a corrupção do homem, da mulher, da família e da sociedade moçambicana não são, infelizmente, um simples receio, mas sim uma triste e preocupante realidade. Urge, portanto, uma ampla e corajosa promoção e defesa dos valores humanos, dos valores espirituais, morais e religiosos. A par dos valores da ciência, da tecnologia, da política e do progresso económico-social. Urge uma atenção maior e mais esclarecida aos sistemas de ensino, de educação e de cultura. 

Opção pela não-violência:
A opção pelos valores espirituais, morais, culturais e religiosos, isto é, pelos valores superiores do homem e da sociedade, arrasta consigo uma outra opção inadiável: a opção pela não-violência. Talvez esta opção pela não violência possa parecer, à partida, um pouco ingénua ou irrealista. Contudo, ninguém ignora que a violência gera violência e que o cultivo da violência jamais levará à construção de uma sociedade não violenta. O avanço e generalização da violência arbitrária e assassina obriga-nos, por isso, a propor a opção pela não-violência. Só deste modo conseguiremos, verdadeiramente, uma sociedade e uma Nação de homens não-violentos, isto é, de homens capazes de vencer a tentação dos meios violentos, e de construir uma sociedade, recorrendo a meios humanos, racionais e pacíficos. A unidade nacional, a paz civil, a concórdia, a solidariedade, a amizade entre as diversas tribos, línguas e culturas que integram e caracterizam o nosso País, não virão pela violência das armas nem pelo cultivo do ódio e do espírito de represália e de vingança. Não virão pelas estratégias ou políticas de liquidação e destruição do adversário, mas sim pelo cultivo e defesa dos meios não-violentos. A paz digna, humana e duradoura, será fruto da justiça, da reconciliação, do entendimento, das conversações, da magnanimidade e da sinceridade de uns e de outros. Será fruto dos meios não-violentos, dos meios racionais, éticos, morais, políticos, diplomáticos e jurídicos.
Esta opção pela não violência, sem dúvida imperiosa  e inadiável, implica, por um lado, que se encontrem as medidas adequadas no sentido de se pôr termo imediato às crueldades organizadas e premeditadas - como são os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, os castigos degradantes e as torturas -, de se acabar com as represálias indiscriminadas, as detenções arbitrárias, os julgamentos a partir das Polícias ou das Forças Militares, a captura e deslocação compulsiva de populações, o abuso das armas e a arrogância do poder. Impõe-se, de facto, uma ordem que proíba, terminantemente, esta prática hedionda da violência assassina. Uma ordem que exorcize, de vez, o espírito de vingança, de represália, de humilhação e liquidação física do inimigo, ou de pessoas e populações julgadas suspeitas ou encontradas nas áreas de influência do adversário. 
Uma ordem que proíba as arbitrariedades, os roubos às populações indefesas, a destruição de casas e de bens, a violação de mulheres, o desprezo sistemático pelo direitos da pessoa humana e do próprio Povo. Que proíba às Tropas, e operações de reconhecimento, de controle ou de «limpeza», liquidar os homens que encontram e de levar consigo as mulheres, situando-as em zonas obrigatórias ou estratégicas. Uma ordem que proíba os abusos contra a Constituição, a Legalidade, a Ética e a Cultura da nação. Por outro lado, a opção pela não-violência implica que se promova e favoreça, a nível das consciências, da sociedade e da Nação, um clima de maior respeito e de maior concórdia. Um clima que permita, a nível das forças em presença, reduzir as posições extremadas, ultrapassar os ódios e o espírito de vingança, e faça nascer, pelo concurso de ambos os lados, aquele conjunto de meios não-violentos que tornem possível a reconciliação e a paz.
Isto exigirá, à partida, uma confiança maior na força moral e espiritual do homem e do próprio Povo, uma vontade maior de entendimento e de reconciliação, uma aceitação mais corajosa da política do diálogo e das conversações, como política decisiva para a paz nacional. Exigirá, também, que se abandone a linguagem da violência e se promova, a nível da Nação, uma linguagem, uma mentalidade e um comportamento de não-violência. Que se promova e assuma, com maior sinceridade, a prática da clemência, do amor solidário e da justiça. A paz nacional não virá da violência das armas, ou da violência do Povo armado, mas sim da força dos meios humanos, políticos e éticos, da força da justiça e do amor.

Opção pela justiça:
Urge, portanto, uma política de maior justiça, a par da política de não-violência. Uma política que se concretize, por um lado, na eficaz ultrapassagem de situações de injustiça e de medidas ou programas que segreguem, de algum modo, a discriminação, ou que favoreçam o aparecimento de novas formas de opressão e de alienação. Uma política que, por outro lado, abra caminho à prática da justiça e ao livre exercício dos direitos e liberdades de cada cidadão, particularmente no campo dos direitos políticos. Concretamente, a discriminação a partir dos privilégios e das facilidades de acesso aos bens de consumo, a partir do poder de compra em divisas, ou a partir de ideologias, posições partidárias, etnias, nacionalidade, região, cultura, religião. 
Não basta, efectivamente, a preocupação pela  justiça social, desconhecendo outros aspectos essenciais da justiça. Por isso, a opção pela justiça, garantia e guardiã da dignidade da pessoa humana e, bem assim, da unidade nacional e da paz civil, obriga a ter em conta aquela justiça que sirva o homem todo, isto é, o homem com os seus direitos individuais e sociais, os seus direitos económicos e políticos, os seus direitos culturais e espirituais, morais e religiosos, as suas liberdades objectivas e subjectivas. Aquela justiça que sirva o Povo inteiro, isto é, o Povo com as suas legítimas e indiscutíveis aspirações, com as liberdades fundamentais e indissociáveis da sua dignidade, criatividade e independência, com o direito indiscutível de ser, ele mesmo, o sujeito do seu próprio desenvolvimento, da sua libertação e da sua cultura.
Não é necessário lembrar a degradação da justiça, praticamente a todos os níveis. Sente-se, por toda a parte, uma grave e injuriosa forma de injustiça: o desprezo pela pessoa humana e, simultaneamente, uma crescente e irresponsável violação dos direitos humanos. As próprias Instituições, criadas e organizadas para defender e garantir a justiça, o direito, a dignidade de cada um e do próprio Povo, parecem claudicar neste ponto, agravando o desprezo pelo homem concreto e a violação sistemática dos direitos e de liberdades fundamentais. Impõe-se, na verdade, uma política de maior justiça em todos os campos, de maior defesa dos direitos invioláveis de cada um e da cada uma, e de maior respeito pela dignidade da pessoa humana, seja homem ou mulher, velho, jovem ou criança.

Opção pelo amor:
A opção pela justiça anda junta com a opção pelo amor. Não se trata de um amor abstracto, platónico, sentimental e inoperante. Trata-se, pelo contrário, de um amor que, na prática, se manifeste no reconhecimento e defesa do homem e do Povo, o compromisso com a vida e com as alegrias e tristezas, aspirações e frustrações, vitórias e fracassos de cada um e da cada uma, e que se empenha seriamente nos combates pela dignidade, a libertação, o desenvolvimento de todo o Povo, na partilha, na solidariedade, na amizade e na fraternidade. Trata-se de um amor que, em última análise, é «a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo», de um amor que, pela sua força de libertação, de humanização e de entendimento, gera, alimenta e consolida a paz social, a paz civil, a paz nacional. Não será o ódio a força motriz dos homens novos, das sociedades novas e dos povos novos, mas sim a justiça e o amor. Não será a civilização do ódio e da violência assassina a civilização da paz e do progresso dos homens e dos povos, mas sim a civilização da justiça e do amor.

Senhor Presidente:
Na efectivação destas opções, que consideramos imperiosas e urgentes, Vossa excelência pode contar com o apoio que de nós dependa, como Bispos, como pastores da justiça, da verdade, da liberdade, do amor, da reconciliação, da concórdia e da paz, como pastores do homem e da sua dignidade, vocação e direitos. Terminamos, pedindo que não veja nesta nossa exposição outra intenção além de querermos ajudar seriamente na libertação e desenvolvimento do nosso Povo, na construção de um país sempre mais livre da humilhação e da violência, na edificação de uma Pátria sempre mais digna, mais culta e mais próspera. Aceite, Senhor Presidente, as nossas respeitosas e cordiais saudações e os nossos votos de muitas prosperidades, sobretudo no trabalho pela paz e pala unidade nacional. Que o Ano Internacional da Paz traga a paz a Moçambique, à África Austral, ao Continente Africano, Ao Mundo Inteiro. 

Nampula, 25 de Setembro de 1986
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D. Manuel da Silva Vieira Pinto

Fonte: O Jornal, 16-09-1988

Transcrito por Eusébio A. P. Gwembe 

QUINTA-FEIRA, 17 DE MARÇO DE 2016

A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu

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Samora Machel e Manuel Vieira Pinto fazem parte da História de Moçambique. O primeiro foi o líder incontestável líder que conduziu o país à independência tornando-se no primeiro presidente durante 11 anos. O segundo foi o único bispo português que se insurgiu pública e abertamente contra a dominação colonial, pronunciando-se, em coerência, pela autodeterminação do povo moçambicano o que lhe custou a expulsão, dias antes do 25 de Abril.  Nos 11 anos de independêcia, as relações entre o Estado e a Igreja estiveram longe de ser as melhores. Apesar disso, Vieira Pinto e Samora Machel nutriam uma sincera admiração e respeito um pelo outro. Eles procuravam manter encontros pessoais. Em 25 de Setembro de 1986, Manuel Vieira Pinto escreveu a carta que não chegaria ao destinatário, em virtude deste morrer (19 de Outubro) antes de a receber, num encontro a dois. Era um inventário frontal das inúmeras situações provocadas pela guerra provocadas pelos dois lados e do apontar dos caminhos julgados mais eficazes para a obtenção da paz. Eis o conteúdo da carta:


O Povo não sabe onde pôr o coração.

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A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobre de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n.... e as torturas.

Massacres: 
As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas, sim, uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados, e pergunta igualmente por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral. 
O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?

Perguntas fundamentais: 
O povo pergunta se na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e irredutíveis. O povo pergunta se na base destas atrocidades não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se na origem destes abusos não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se os massacres e outros actos abomináveis são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.

Crueldades: 
Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo  e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactentes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e em seguida encurraladas pelas armas e barbaramente destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas a golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.
Estas e outras vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se, a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e do Povo Moçambicano. O Povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a alma e a vida do País.

Execuções: 
As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja examinada, com equidade e publicamente, por um Tribunal Independente e Imparcial. Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de tribunais improvisadas e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue. 
Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito, e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres, deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.
Sentimo-nos, por isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

Assassinatos: 
Os assassinatos, a partir sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da vida estão postos em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando vêem pela frente homens armados. 
Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação «os homens da Renamo desprezam e matam», «os homens da Frelimo desprezam e matam», uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando muitas vezes métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas ainda vivas, obrigando-as previamente a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio Povo.

Maus tratos e castigos desumanos: 
O clima de violência engendra e autoriza mais violência. Os maus tratos, os castigos humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País, não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas, estão presentes no dia a dia das populações. Há maus tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o Povo. Os castigos desumanos e os maus tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos Povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de 1948. 
Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar. qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.

Torturas: 
As torturas são actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o deu direito e a sua justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o poder constituído, antes o corrompe e o põe em grave perigo. Tais abusos e crimes também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional, antes as destroem e dificultam.

Aspirações do povo:
Continua.

Fonte: (O Jornal. 16-09-1986), Transcrição de 
Eusébio A. P. Gwembe

DOMINGO, 13 DE MARÇO DE 2016

Correspondência entre Chissano (Pai) e Eduardo Mondlane em 1954

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Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

Concelho de Gaza,
João Belo, C. P. 34.
P. East Africa - Via Lourenço Marques.
17-03-1954.
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Exmo Sr. Eduardo Chivambo Mondlane,
United  States Of America,
Illinois, Evaston.

A sua saúde, que a minha vai bem, graças a Deus. Naturalmente o senhor vai estranhar receber esta minha carta sem saber quem lhe manda, talvez por já não se lembrar de mim. Sou uma daquelas pessoas a quem o Senhor mandou cumprimentos por intermédio do Mabunda, irmão mais moço do Dr. Mabunda a quem, segundo me consta, o senhor preparou a papelada para ir matricular-se ai numa das universidades locais. Sou, numa palavra, um conterrâneo seu, natural de Chibuto, residente actualmente em João Belo, onde presto serviço de intérprete administrativo. Desejo retribuir-lhe os cumprimentos que nos enviou por intermédio do senhor Mabunda de Chicumbane. Grato fiquei por saber que um meu patrício havia tirado um Curso de Ciências Económicas e financeiras em Lisboa, mas que já se encontrava na América para tirar uma especialidade e doutorar-se. Que tal vão esses estudos? Quando é que pensa completar o curso, e quando volta para cá? Como vê, também sou das pessoas que gosto de instruir e educar os meus filhos. Tenho a estudar, em Lourenço Marques, no Liceu Salazar dois filhos e um, na escola Técnica da mesma cidade. Gostaria depois mandar alguns filhos a Portugal, afim de tirarem ali algum curso superior, mas para isso é preciso dinheiro, o que não tenho, pois Deus, dá nozes a quem não tem dentes como se (o)usa dizer. No entanto, vou ver se tento conseguir alguma Bolsa de Estudo para eles seguirem depois os seus estudos superiores em Portugal. Deus queira. Quanto a vida em Gaza é barata, verificando-se já um número progressivo de pequenos agricultores indígenas que fazem as suas culturas de vária espécie: arroz, milho, feijão, trigo, algodão e outros cereais, que são vendidos depois em mercados pelos próprios indígenas, assistidos pela autoridade. Há nativos que chegam a tirar 100 a 150 sacos de qualquer das espécies de cereais indicados. Somente o ano passado é que foi ano de fome devido a escassez das chuvas. Porém, sua Excia, o Governador Geral de Moçambique, Gabriel Teixeira, fez na Inhamissa, uma obra meritória, transformando, no seu dito, o Xai-Xai, antigo  celeiro de mosquitos, num celeiro de cereais, o que é bastante consolador para as populações  indígenas. Há bastante terra para todos aqueles que têm vontade de trabalhar. Temos bastantes escolas do ensino primário Oficial e do ensino missionário, Portguês, espalhadas por mato além. Temos Liceus e Escolas Técnicas em Lourenço Marques, faltando-as ainda aqui, em Gaza. Quanto ao ramo do comércio, há por enquanto poucos indígenas inclinados para isso, verificando-se em grande escala, comerciantes monhés e alguns europeus. Os agricultores indígenas, na maior parte, fazem as suas machambas com charruas de bois e alguns com tractores da sua propriedade. Por hoje não vou além deste ponto final, mandando-lhe os meus respeitosos cumprimentos.

Alberto Chissano

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Resposta de Mondlane ao Senhor Chissano
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Eduardo C. Mondlane
1935 Sherman Ave.,
Evanston, Ill. 
23 de Dezembro de  1954.

Exmo Sr. Alberto Chissano,
Intérprete Official Administrativo,
Caixa Postal 34,
Vila de João Belo, Moçambique

Exmo Senhor Alberto Chissano,
A sua estimada carta do mês passado impressionou-me tanto que traduzi-a para que os meus amigos americanos que se interessam por Moçambique possam lê-la. Sinto-me muito orgulhoso por ter um patrício tão devotado ao seu povo. Não sei se o senhor Chissano compreende o valor intrínseco do que faz por educar os seus filhos. Nenhum povo no mundo tem alcançado uma posição superior sem que tenha habilitado os seus filhos no manejo das ciências. O futuro do nosso povo Africano dependerá da qualidade de educação que os nossos filhos poderão obter, e esta depende de grau de sacrifício que nós responsáveis pela sua educação estamos preparados a dar. Parabéns patrício. 
Os meus estudos vão avançando. Estou agora para acabar a minha tese para a licenciatura. Ficarei mais um ano e meio a fazer uma dissertação para o meu doutoramento em ciências sociais. Para conseguir ficar na universidade e pagar as despesas dos estudos, comida e sala de dormir, bem como os livros, etc., ensino três classes (aulas) cada semana. Tenho em meu cargo 90 estudantes, todos eles brancos excepto um Negro americano e um Chinês. Aqui nesta parte dos Estados Unidos não há preconceitos raciais. Vivo aqui em boas relações sociais com todos os meus colegas, estudantes e professores.
Uma razão porque não escrevo tanto é a falta de tempo. Diga ao nosso amigo Sansão que hei de escrever logo que apanhar um minuto. Estou muitissimo ocupado. Mas não me esqueço dos meus compatrícios. Admiro o Senhor Mutemba muito. Ele é um dos nossos geniosinhos que infelizmente não conseguiu continuar os seus estudos. Estou certo que apesar de não ter feito estudos avançados na medicina é melhor doutor do que muitos deles. Uma coisa que eu admiro muito em Sansão é o seu amor pelo nosso povo africano. Mandá-lo  os meus mais sinceros cumprimentos, e diga-lo que vou escrever muito já.
Que tal é da vida em Gaza. Dê-me alguns detalhes sobre a vida do povo na sua próxima carta.

Com os meus cumprimentos do Ano Novo.
Assino,
Eduardo C. Mondlane (Mu-Khambane)

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