30.07.2018 às 14h12
O vídeo é de 2015, mas na altura ninguém ligou. Três anos depois, numa era pós #MeToo, o relato de um famoso youtuber brasileiro que conta como forçou sexo com a namorada enquanto ela dormia, porque ela tinha sono e ele não ia “dormir na vontade, não”, gerou uma onda de indignação. Sexo sem consentimento dentro de uma relação pode ser encarado como “brincadeirinha”? Ou será que estamos a falar de abuso sexual?
O vídeo é de Everson Zoio, um youtuber seguido por cerca de 9 milhões de pessoas. Ele é aquela típica personagem do malandro, com a mania que tem piada, que é aventureiro e que se presta a desafios idiotas (como dar com uma marreta no pé ou colar a boca com super-cola). Num vídeo de 2015 que agora voltou a circular no Youtube pela mão de outro utilizador, o jovem aparece sentado com um grupo de amigos a relatar uma noite que passou em sua casa com a namorada da altura. Conta ele que estava cheio de vontade de ter relações sexuais e que a namorada lhe disse que tinha sono e que “não ia rolar, não”. Não satisfeito com a recusa, Zoio conta que decidiu meter-lhe a mão entre as pernas para perceber se ela estava menstruada ou não. Ou seja, o facto de não lhe apetecer não era suficiente, era necessária uma justificação.
A história, contada em tom humorístico, continua: “Não vou forçar porque não sou estuprador, né?”, relata Zoio aos amigos, “mas o garotão estava em pé querendo brincar, agitadão”. Ela adormeceu e ele ficou acordado agarrado ao telemóvel a ver se arranjava solução para a sua inquietude. “Pensei ver um pornô, mas não ia fazer isso”. Então fez conchinha com a namorada adormecida, “que roncava igual a um porco”, e como não conseguia dormir decidiu baixar-lhe os calções do pijama “devagar para não a acordar”, desviou-lhe as cuecas e “o grandão bateu na porta e ficou lá (...) e fui cutucando”. Os amigos riem que nem uns perdidos e ele continua a descrição com tom de miúdo supostamente tímido, vangloriando-se do seu enorme feito, como se fosse apenas uma simples tropelia inocente. “Então ela acordou e perguntou: ‘O que é que é isso?’. E eu fiquei muito sem graça e fui dormir. Aquilo era para ser só uma brincadeirinha, sem ela ver”. A questão é que aquilo que este rapaz descreve com uma brincadeirinha, que “não era para ela ver”, é sexo sem consentimento. Mas no fim do vídeo os amigos batem palmas porque a história parece ser hilariante.
O PROBLEMA DA MASCULINIDADE TÓXICA
Dois dias depois de o vídeo ter voltado a circular na web, Everson Zoio perdeu a conta às mensagens e comentários que recebeu acusando-o de violação. E decidiu fazer novo vídeo onde desmente todo o relato: “Inventei esta história. Homem sempre aumenta as coisas. Nada aconteceu, mas o homem acrescenta mais coisas”. Não me admira que até esteja a dizer a verdade (veremos, as autoridades que façam o seu trabalho), e caso assim tenha sido, talvez este episódio sirva de lição para reflexão futura no que que diz respeito à construção tóxica que fazemos da masculinidade. Basicamente, estamos perante um belo exemplo de como uma grande parte da validação masculina ainda passa pela exacerbação dos seus feitos sexuais e pela demonstração de poder sobre as mulheres (a forma como ele fala da namorada, por exemplo, também demonstra isto bem), mesmo que na “vida real” a verdade não seja igual aos relatos.
Ele podia ter-se validado relatando aos amigos - e aos 9 milhões que o seguem no Youtube - que, como a namorada não queria ter relações, ele respeitou a sua vontade, deixou-a dormir e adormeceu junto dela em conchinha porque a respeita e estima, e porque o sexo realmente é bom é quando todas as partes envolvidas estão nessa, por exemplo. Mas isso não valida propriamente a masculinidade como nós estamos habituados a encará-la. O que a valida é a descrição do tal “grandão” que tem necessidades (porque o tamanho do pénis também importa neste processo de se mostrar aos outros que se muito é macho), e que leva a sua avante quer a namorada queira, quer não.
É mais validadora a descrição do marialva que perante uma recusa contorna a situação e “dá um jeito” para tratar da sua satisfação sexual. Porque como o próprio Zoio diz noutro vídeo sobre este tema, “não vou dormir na vontade não”. A vontade dos demais, neste caso da namorada, é um fator secundário perante a sua quando se quer mostrar ao mundo que se é muito homem. Se ainda não perceberam muito bem o que é isso da masculinidade tóxica, este é um belo exemplo de como a equação funciona.
Entretanto, de acordo com os media brasileiros, o caso já está a ser investigado pela polícia. Mas nas redes, Zoio deixa cair a personagem gabarola e faz de tudo para provar desde já a sua inocência: “Galera, mesmo a história sendo inventada eu peguei pesado. Foi uma atitude imatura. Uma piada sem graça. Nem devia chamar isto de piada”, tenta agora justificar o Youtuber. “Na época, em 2015, o vídeo não fez o efeito que está fazendo agora. Podiam ter criticado, mas o pessoal riu”. Esta é a única parte que a mim me parece positiva nesta história: primeiro, a pessoa em causa fazer uma autorreflexão sobre os seus atos, autocondenar a sua atitude e partilhar isto com as massas, as mesmas que anos antes riram disto como se fosse um relato normal. Mas não sejamos ingénuos, Zoio também o faz porque sabe que está em maus lençóis, e basicamente está desesperado por sair limpo de uma situação que pode correr muito mal. Aliás, basta reparar na forma subtil como ele deixa no ar a hipótese de a ex-namorada poder aproveitar a situação para o tentar acusar sem razão, algo que me parece altamente manipulador.
Segundo, é verdade que em 2015 poucos olhariam para um vídeo destes, ainda por cima em tom de humor, e identificariam um relato de abuso sexual. Hoje, o cenário é outro. E o repúdio viral que o vídeo gerou em menos de 24 horas é um reflexo disso. Estamos mais atentos, mais conscientes e mais ativos a criticar atos inaceitáveis que não podem continuar a ser encarados como simples “brincadeirinhas”, “piadas de mau gosto” ou desmonstrações inocentes de masculinidade. O sexo sem consentimento não é justificável, seja entre desconhecidos, seja dentro de uma relação de intimidade, seja em que situação for. E inventar histórias destas para impressionar os amigos não é sinal de que se é muito macho, é só sintoma de se ser muito estúpido. E de não se perceber o conceito da palavra respeito.
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