terça-feira, 31 de julho de 2018

ANGOLA CONTRA ZENÚ E JEAN-CLAUDE NO TRIBUNAL DE LONDRES (PARTE 1)



Na divisão comercial do Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e País de Gales, em Londres (não confundir com o Tribunal Supremo), corre o processo n.º CL-2018-000269, que opõe o Governo liderado por João Lourenço, neste caso representado pelo Fundo Soberano de Angola, e José Filomeno dos Santos (Zenú), filho do antigo presidente da República José Eduardo dos Santos, bem como o seu sócio suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais, e ainda as várias empresas Quantum Global (pertença de Jean-Claude) e a Northern Trust Company, instituição financeira norte-americana com sede em Chicago.
O objecto do julgamento em Londres
Entre 24 e 28 de Julho de 2018, têm lugar as audiências relativas ao processo. Adaptando aos parâmetros do Direito lusófono, o que está em causa neste julgamento é uma espécie de providência cautelar cível de arresto (em termos simples, um congelamento de fundos; mais concretamente, um WFO – “worldwide freezing order and proprietary injunction”), decretada a 27 de Abril passado pelo juiz Phillips. Esta decisão judicial impediu Zenú, Jean-Claude e todos os outros réus de movimentarem três biliões de dólares que detinham, provenientes do Fundo Soberano.
Em Junho, Jean-Claude e Zenú dirigiram-se ao tribunal inglês, e manifestaram opor-se a esse congelamento de dinheiro, mais dizendo que esta instituição não tinha jurisdição para julgar o caso.
É justamente sobre as pretensões de Jean-Claude e Zenú que o tribunal londrino vai agora pronunciar-se, após as audiências. Antes do julgamento, ambas as partes remeteram os seus argumentos por escrito para o tribunal. A peça apresentada pelo Fundo Soberano é assinada por Paul Mcgrath QC, um advogado de fama mundial que esteve envolvido na litigância dos casos Enron (grande falência norte-americana no tempo de George Bush), Berezovski (ex-oligarca russo caído em desgraça) e, no Egipto, contra o antigo presidente Hosni Mubarak. A peça de Jean-Claude é assinada por Stephen Auld QC, também um advogado inglês de alto coturno. Temos então dois pesos-pesados da advocacia londrina a debaterem-se num tribunal britânico para resolverem problemas angolanos.
Ao passo que o argumento de Zenú e Jean-Claude é essencialmente técnico e formal, apenas aflorando aspectos essenciais do caso, os argumentos do Fundo Soberano vão além dos aspectos técnico-formais e centram-se na substância do caso: aquilo a que chamam a conspiração de Zenú e Jean-Claude para se apropriarem de cinco biliões de dólares pertencentes a Angola.
Os desvios de Zenú e Jean-Claude
A tese central do Governo angolano sustentada pelo Fundo Soberano é que Zenú e Jean-Claude fizeram um acordo por meio do qual o filho do ex-presidente colocou os cinco biliões do Fundo Soberano à disposição do suíço-angolano e das suas empresas, que nem sequer tinham experiência ou qualificações para administrar tais valores.
O que se passou, na realidade, afirma o Fundo Soberano, é que a maior parte dos US$ 5 biliões não foi investida, tendo sido usada pelas empresas Quantum (pertencentes a Jean-Claude) para extrair valores absurdos de honorários e taxas (no valor de cerca de US$ 380 milhões). A reduzida porção que foi realmente investida não serviu os interesses do Estado e do Governo angolanos, tendo antes sido canalizada principalmente para projectos pertencentes a Jean-Claude Bastos de Morais – está em causa um montante de pelo menos US$ 400 milhões. Além disso, acrescentam os advogados do Fundo Soberano, como parte da mesma conspiração, Zenú comprometeu o Fundo Soberano a pagar cerca de US$ 180 milhões à Quantum e a outras empresas controladas por Jean-Claude, ao abrigo de contratos fictícios de prestação de serviços.
Entretanto, o Fundo Soberano já recuperou o controlo de cerca de US$ 2 biliões dos US$ 5 biliões que foram originalmente colocados sob o controlo dos réus. Logo, actualmente, os seus objectivos são:
1) Rastrear e recuperar os US$ 3 biliões restantes;
2) Recuperar os honorários e as taxas adicionais (fictícias) pagas a Jean-Claude e à Quantum, que totalizam cerca de US$ 170 milhões.
A gestão secreta do Fundo Soberano no tempo de José Eduardo dos Santos
O Fundo Soberano foi criado em 2013 e, inicialmente, tinha dois outros administradores, além de Zenú: Hugo Miguel Évora Gonçalves e Artur Carlos Andrade Fortunato. Em Novembro de 2016, Miguel Damião Gago também se tornou administrador.
Hugo Gonçalves afirma que “as decisões estratégicas, incluindo os investimentos, eram da responsabilidade” de Zenú e que “não havia oportunidade para mim ou para outras pessoas dentro do FSDEA [Fundo Soberano] para desafiar o Sr. Dos Santos [Zenú] em investimentos e decisões estratégicas. Isso se deveu ao facto de ele ser filho do presidente da República e, na época, não fazia parte da cultura angolana questionar essa autoridade”. Da mesma forma, Miguel Gago diz, sem hesitações, que Zenú tinha uma gestão “absoluta, discreta e reservada” e que “qualquer pessoa que trabalhasse para o Fundo Petrolífero ou o FSDEA, independentemente do seu nível, teria conhecimento da impossibilidade de questionar, muito menos de criticar as suas decisões”.
A operacionalização do desvio dos biliões
No documento do Fundo Soberano apresentado ao tribunal de Londres, e de acordo com as perícias levadas a cabo pela nova gestão, também se explicita de que modo Zenú e Jean-Claude desviaram os biliões.
Jean-Claude Bastos de Morais.
Tudo começou a 29 de Novembro de 2013, quando Zenú, em nome do Fundo Soberano, celebrou um Acordo de Gestão de Investimentos (“IMA”) com a Quantum (“QGIM AG”), pertencente a Jean-Claude Bastos de Morais. Por meio desse acordo, a QGIM AG foi nomeada para actuar como gestora de investimentos do FSDEA “em relação a dinheiro e propriedades designados por este”.
A QGIM AG faz parte da Quantum Global, que é detida e controlada em 95% por Jean-Claude Bastos de Morais. Como se disse, Jean-Claude é um cidadão suíço-angolano, amigo de longa data e sócio comercial de Zenú. Estiveram conjuntamente envolvidos na fundação e gestão de várias empresas em Angola, nomeadamente do Banco Kwanza Invest, lançado em 2008, e que hoje é também alvo de várias suspeitas de envolvimento em esquemas fraudulentos.
Os actuais gestores do Fundo Soberano afirmam que Zenú nunca poderia ter comprometido o Fundo com um Acordo de Gestão de Investimentos com a Quantum, caso estivesse a agir de forma honesta e consistente com os seus deveres de lealdade.
Em particular, a QGIM AG era manifestamente não qualificada e inadequada para tal nomeação, pois detinha pouca ou nenhuma experiência ou especialização no campo dos investimentos, e o “exercício de selecção” assumido pelo Fundo, no qual a Quantum Global supostamente superou gestores de activos internacionais bem conhecidos, como o UBS e o Standard Bank, não passou de fachada. O argumento segundo o qual os réus tinham experiência em África não faz sentido, uma vez que se pretendia uma gestão de investimentos a nível mundial.
Relativamente ao seu conteúdo, os termos do Acordo Global de Investimento entre o Fundo presidido por Zenú e a Quantum de Jean-Claude eram altamente unilaterais e prejudiciais ao Fundo. Em especial, no que diz respeito ao valor dos honorários e das taxas cobradas, à falta de controlo do Fundo sobre os seus dinheiros, e à margem de manobra da Quantum AG para fazer investimentos que deram origem a conflitos de interesse: na realidade, Jean-Claude investia em Jean-Claude.
Dando cumprimento ao Acordo Global de Investimento até 24 de Dezembro de 2014, US$ 5 biliões foram transferidos para contas com a Northern Trust Company, em Londres, para serem administrados pela Quantum. Dos US$ 5 biliões transferidos para a Northern Trust, US$ 2 biliões – conhecidos como o “portfólio líquido” – foram retidos sob a forma de dinheiro ou títulos equivalentes. Obviamente, o retorno destes “investimentos” foi tão insignificante, que não cobria a taxa anual de administração de 1% paga à Quantum pelo Fundo nos dois primeiros anos do Acordo. Isto significa que o Fundo de Zenú pagava mais a alguém para gerir o seu dinheiro do que os lucros que recebia dessa gestão. Em português corrente, estava a pagar para perder dinheiro.
Em Abril de 2014, dando mais um passo na implementação da conspiração agora exposta pelo actual Governo de Angola, Zenú e Jean-Claude (desta vez agindo em nome de outra Quantum, a que por facilidade vamos chamar Quantunzinha), realizaram cinco Acordos de Serviços de Incorporação (“ISAs”), pelos quais a Quantunzinha concordou estabelecer cinco fundos para investir em vários sectores em África. O Fundo concordou em pagar à Quantunzinha um total de US$ 26,4 milhões pelo “trabalho” derivado desses acordos.
Mais ou menos na mesma época, e novamente como parte da conspiração agora revelada pelo Governo, Zenú, em nome do Fundo Soberano, celebrou dois acordos de consultoria com outra Quantunzinha, desta vez relativos ao estabelecimento de mais dois fundos para investir no sector hoteleiro e em projectos de infra-estrutura. Aparentemente, o Fundo pagou mais US$ 10 milhões devido a esses acordos.
Posteriormente, mas ainda em 2014, a Quantum e as Quantunzinhas estabeleceram sete Sociedades Limitadas nas Ilhas Maurícias. Cada Sociedade Limitada compreendia uma subsidiária do Fundo Soberano e uma entidade da Quantum Global como sócios. Zenú foi nomeado administrador destas sociedades.
Estas sociedades, segundo alega o Governo de Angola, serviam para colocar uma parede legal entre o Fundo Soberano e o dinheiro, de forma que um eventual novo governo em Angola não tivesse acesso aos fundos.
(Continua…)

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