Os anúncios oficiais e as notícias na imprensa sucedem-se de forma quase vertiginosa: José Filomeno dos Santos, filho do antigo presidente da República José Eduardo dos Santos, é acusado de desviar US $500 milhões do Tesouro angolano para Londres; o mesmo indivíduo e o seu sócio Jean-Claude Bastos de Morais são suspeitos de se terem apropriado de US $5 biliões do Fundo Soberano de Angola; Isabel dos Santos, filha mais velha do mesmo ex-presidente da República, vê adjudicações canceladas pelo facto de o processo de atribuição não ter respeitado a lei. Não vamos aqui discutir novamente os factos associados a estes processos.
O que nos interessa agora realçar é que em todos eles há um denominador comum: a pessoa que foi responsável máxima e última por tudo, que decidiu, autorizou, despachou, mandou, ordenou. Trata-se, evidentemente, do antigo presidente da República, José Eduardo dos Santos (JES). Sempre que se chega à análise das responsabilidades de JES nestes processos, porém, logo se diz que não se pode fazer nada porque ele goza de imunidade, pelo menos durante cinco anos. Esta ideia é enunciada por todos, sejam oficiais do Governo, jornalistas da situação ou da oposição, comentadores ou especialistas.
E, no entanto, é uma ideia falsa. Os actos praticados pelo antigo presidente da República no exercício das suas funções não estão ao abrigo da imunidade de cinco anos. As imunidades de que JES goza são diminutas e não impedem qualquer investigação à sua conduta.
As imunidades na Constituição
O que nos a Constituição angolana? O primeiro artigo relevante para este caso é o 127.º, o qual estabelece:
“Artigo 127.º
(Responsabilidade criminal)
1. O Presidente da República não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia.
2. A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de candidatura para outro mandato.
3. Pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato.”
(Responsabilidade criminal)
1. O Presidente da República não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia.
2. A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de candidatura para outro mandato.
3. Pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato.”
A norma distingue claramente entre crimes praticados no exercício das funções presidenciais (artigo 127.º, n.º 1) e crimes estranhos ao exercício dessas funções (artigo 127.º, n.º 3). A cada uma destas situações corresponde um regime diferente de procedimentos e imunidades.
Comecemos pelo adiamento de cinco anos. A regra da dilação de cinco anos só se aplica a crimes praticados pelo presidente da República que sejam estranhos à sua função. Ou seja, que nada tenham a ver com o facto de ser presidente da República. Imaginemos um exemplo. Uma bela manhã de domingo, o presidente conduzia o seu automóvel privado em alta velocidade para ir dar um mergulho na praia. A meio do caminho atropelou um transeunte, que morreu. Temos aqui um possível homicídio. Mas o homicídio nada tem a ver com o facto de o condutor ser presidente ou não. É um condutor de automóvel que atropela uma pessoa. Nesta situação, aplica-se o regime do artigo 127.º, n.º 3. Isto é, o presidente da República só será julgado cinco anos após o seu mandato ter terminado, no Tribunal Supremo. Só neste tipo de situações, envolvendo crimes por actividades privadas, se aplica a regra dos cinco anos.
Crimes no exercício das funções presidenciais
Então, o que acontece quando o presidente comete crimes no exercício das suas funções? Depende dos crimes. Crimes menores estão imunes a qualquer processo. Crimes graves, identificados no artigo 127.º, n.º 1, da Constituição – como suborno, traição à pátria e outros – estão sujeitos a um procedimento específico. Dentro destes crimes, poderemos, por exemplo, considerar o desvio de fundos, a corrupção, o peculato, etc. Obviamente, as situações (identificadas no início deste texto) relativas aos filhos de JES devem ser enquadradas no artigo 127.º, n.º 1. Isto é, são crimes graves que permitem a instauração de investigações e processos criminais. Enquanto o presidente da República estiver em exercício de funções, aplica-se o artigo 129.º da Constituição, que regula um procedimento complexo envolvendo a Assembleia Nacional e o Tribunal Supremo e que no final leva à sua destituição (artigo 129.º, n.º 1). Na prática, um terço dos deputados tinha de ter a iniciativa de promover a investigação e dois terços dos deputados teriam de autorizar a comunicação ao Tribunal Supremo (Artigo 129.º, n.º 5 da CRA). É evidente que nenhum destes procedimentos aconteceu enquanto JES foi presidente da República, pelo que não foi instaurado qualquer processo-crime.
Regras para antigos presidentes da República
No entanto, agora JES já não é presidente da República. Nessa medida, os crimes graves que tenha cometido no exercício das suas funções já não estão sujeitos ao artigo 129.º da CRA. Nem, obviamente, JES pode ser destituído, nem se lhe aplica qualquer amnistia ou prescrição.
O artigo que agora se lhe aplica é o artigo 150.º da CRA, por remissão do artigo 133.º, n.º 1, relativo aos antigos presidentes da República, que faz aplicar o artigo 135.º, n.º 3, referente aos membros do Conselho da República, que por sua vez nos envia para o artigo 150.º, que prescreve as imunidades dos deputados à Assembleia Nacional. Há assim uma espécie de “corrida de estafetas” dos artigos, que termina aplicando aos antigos presidentes da República as normas de imunidade que protegem os deputados. Assim, determina o artigo 150.º:
“1. Os Deputados não respondem civil, criminal nem disciplinarmente pelos votos ou opiniões que emitam em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional, no exercício das suas funções.
2. Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.
3. Após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo.”
2. Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.
3. Após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo.”
O número 3 é a norma mais importante deste artigo, dizendo-nos que podem ser livremente instaurados processos contra os abrangidos por esta previsão. No caso em análise, contra antigos presidentes da República. O processo pode ser instaurado, investigado e pode haver acusação com despacho de pronúncia. Só nesta fase entra a Assembleia, que delibera se o processo vai a julgamento ou não. Isto quer dizer o seguinte: neste momento, se considerarem que há matéria susceptível de investigar relativa ao comportamento de José Eduardo dos Santos enquanto presidente da República, as autoridades podem fazê-lo sem qualquer restrição. Aliás, devem fazê-lo. Só depois de terem chegado às suas conclusões e de produzirem uma acusação é que a Assembleia Nacional pode decidir não enviar o antigo presidente para julgamento, num acto de natureza e deliberação política para o qual é soberana.
Conclusão
Em resumo, as autoridades judiciárias são livres de investigar, ouvir e concluir sobre actos de antigos presidentes da República praticados no exercício das suas funções. Caso concluam por uma acusação, então sim intervém a Assembleia Nacional, à qual cabe deliberar se levanta ou não a imunidade para levar o antigo presidente a julgamento.
A regra dos cinco anos não é aplicável a actos praticados no exercício das funções presidenciais, mas meramente a actos privados.
JES pode e deve ser investigado. Se sofrer acusação, a Assembleia Nacional até pode depois, a bem da paz e da reconciliação nacional, decidir que não levará JES a julgamento. Mas pelo menos todos os angolanos ficarão a saber a verdade.
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