Houve um tempo em que Portugal era o país europeu com melhores relações com a Coreia do Norte. O embaixador José Manuel Duarte de Jesus lembra "o choque" que sentiu ao perceber que a Coreia do Norte era "uma encenação” e deixa avisos para a cimeira Trump-Kim.
Por causa de um “lapso administrativo”, as cartas credenciais do embaixador português em Pequim, José Manuel Duarte de Jesus, que também representava Portugal na Coreia do Norte, foram enviadas para a América Latina em vez de seguirem para Pyongyang. No tempo em que demoraram a chegar ao sítio certo, a Coreia do Norte mudou de líder. A 7 de Julho de 1994 o fundador da República Popular, Kim Il-sung, morre subitamente, criando um problema ao embaixador: a quem deveriam ser dirigidas as novas credenciais? A resposta de um colega diplomata norte-coreano foi desconcertante. “Kim Il-sung é eterno e será eternamente o nosso presidente.”
O episódio é relatado por Duarte de Jesus no livro que acaba de publicar, Coreia do Norte – A última dinastia Kim (Edições 70), em que lembra o período, nos anos 1990 em que foi embaixador extraordinário e plenipotenciário em Pyongyang, dando a Portugal uma janela privilegiada para o interior de um dos regimes mais isolados do planeta.
O livro é publicado numa altura em que o regime norte-coreano, agora liderado por Kim Jong-un, neto do fundador, está envolvido num processo negocial com os Estados Unidos. Apesar de um clima conturbado e de vários avanços e recuos, tudo parece estar encaminhado para que Kim se encontre com Donald Trump em Singapura no dia 12 de Junho – a primeira cimeira entre presidentes dos dois países.
As memórias de José Duarte de Jesus reportam-se a um período concreto mas muito sensível. Os efeitos do colapso da União Soviética faziam sentir-se profundamente na Coreia do Norte, que atravessava uma grave crise económica e uma devastadora escassez de alimentos. O fundador do país acabava de morrer e começavam a ser conhecidas as suspeitas de que o regime de Pyongyang estava a dar os primeiros passos do seu programa nuclear.
“Naquela altura evitava-se que a Coreia do Norte se tornasse uma potência nuclear, hoje procuramos que eles deixem de ser uma potência nuclear”, diz ao PÚBLICO o embaixador.
Quando aterrou em Pyongyang, em 1995, José Duarte de Jesus viu-se acompanhado por um diplomata norte-coreano que tinha passado por Lisboa, falava português e “gostava de sardinha”. “Esse contacto tornou tudo mais fácil”, conta o embaixador. Mas o “choque” acabou por chegar. Com o passar dos dias, o diplomata português começou a aperceber-se de que tudo à sua volta “era uma grande encenação”. Jesus tinha passado por outros países governados por regimes comunistas, como a Hungria, a Checoslováquia ou a China, mas nada o tinha preparado para o que iria encontrar.
"A impressão geral é a de uma sociedade orwelliana (...) Parecia um cenário de uma peça de teatro bastante dramática", escreveu num dos primeiros relatórios que enviou para Lisboa. Os norte-coreanos levaram o embaixador português a várias visitas. Uma delas à zona desmilitarizada que separa as duas Coreias. "Ao longo de uma auto-estrada com cerca de 200 quilómetros, não me recordo de me ter cruzado com nenhum automóvel. Tomámos café numa bomba de gasolina que, estou convencido, deve ter aberto de propósito para nos receber".
No livro, Duarte de Jesus recorda o momento em que visitou o mausoléu de Kim Il-sung, para prestar homenagem. “Na escadaria, a meu lado, estavam algumas senhoras de idade, várias com aparência de pessoas do campo, que choravam verdadeiramente, como se poderia imaginar numa peregrinação a um santuário de grande devoção.” José Duarte de Jesus acredita que “as pessoas estavam psicologicamente condicionadas” – “Ninguém chora porque se carrega num botão”.
Foi um diplomata norte-coreano que lhe explicou este culto aos Kim. “Não podemos esquecer a imagem das jovens coreanas grávidas, que, ao passearem nos jardins da aldeia onde Kim Il-sung nasceu, passavam três vezes a mão sobre a pedra onde ele se sentava, facto que proporcionaria milagrosamente que a criança fosse do sexo masculino”, escreve Jesus no livro. O diplomata continuou explicando que, "como português", Duarte de Jesus devia perceber porque o faziam. "Achei o que me dizia esquisito” – finalmente percebeu que o norte-coreano estaria a referir-se a Fátima.
Ao longo do pequeno livro de memórias onde junta relatórios enviados para Lisboa e fotografias da sua passagem pela Coreia do Norte, o embaixador explica a adoração dos norte-coreanos pela família Kim e conclui que o regime se aproxima de uma “teocracia”. "Dado o isolamento em que a população vive, tudo isto se torna numa realidade alternativa”, diz Duarte de Jesus. O secretismo que envolvia o regime atingia em meados da década de 1990 até os diplomatas, geralmente mais bem informados que a população comum. Após a morte de Kim Il-sung, o seu filho raramente aparecia em público e, por isso, depressa se instalou o rumor entre os diplomatas que Kim Jong-il teria um problema de “atrofia de fala”. “Onde o segredo impera, os boatos pululam”, observa o embaixador português que aos 82 anos está aposentado do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Portugal como ponte
À época, Portugal tinha uma relação particularmente próxima com Pyongyang. José Duarte de Jesus conta como a Coreia do Norte foi um dos apoiantes de primeira hora da candidatura portuguesa a um lugar de membro não-permanente no Conselho de Segurança da ONU, em 1996. Esteve também ao lado de Timor-Leste e aceitou participar na Expo 98. “Portugal era um país pequeno, que não tinha armas atómicas, e adoptava uma posição de bastante independência em relação aos dois blocos [EUA e URSS]”, explica.
Naquela altura, a Coreia do Norte estava envolvida em negociações com os Estados Unidos e a Coreia do Sul que tinham como objectivo o congelamento do seu programa nuclear. Ainda foi alcançado um acordo, conhecido como Agreed Framework (Acordo Base), em que Pyongyang se comprometia a abandonar o desenvolvimento de armamento e a manter-se no Tratado de Não-Proliferação nuclear em troca do fornecimento de petróleo e de reactores de água leve para a produção de energia – o regime justificava na época o seu desenvolvimento nuclear com as suas necessidades energéticas.
O grande interesse do regime era adquirir reactores fabricados na Alemanha – e não nos EUA ou na Rússia – e, para isso, era crucial ter boas relações com a União Europeia. E aqui entrava Portugal.
Como éramos o país europeu com melhores relações diplomáticas com a Coreia do Norte, “passámos a ter um papel que de outra maneira não teríamos”. Jesus tentou então fazer a ponte entre a Coreia do Norte e Bruxelas, mas a diplomacia acabou por não ser suficiente. O embaixador diz que a UE tinha já dificuldades em apresentar uma frente unida no âmbito da política externa, mas admite que “o Governo português, infelizmente, nunca teve grandes iniciativas”. E havia ainda a Coreia do Sul, que na altura se comportava como “um irritante diplomático”.
Em Pyongyang, Duarte de Jesus encontrou dirigentes muito disponíveis para dialogar com o resto do mundo, ao contrário da ideia generalizada de um país fechado. “Pareceu-me sempre que havia uma diferença grande entre um dogmatismo total em termos de política interna, quase uma religião, ao passo que a apreciação da política externa era muito mais pragmática”, diz o diplomata.
Agora que o processo negocial em torno da Península Coreana aparenta estar relançado, o antigo embaixador diz estar “com uma grande apreensão e um optimismo extremamente mitigado”. Vê “muita improvisação” em torno das conversações entre Washington e Pyongyang, sobretudo na surpreendente marcação de uma cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un. “Normalmente, dois chefes de Estado totalmente antagónicos dificilmente se devem encontrar antes de haver uma preparação diplomática”.
Em Abril e Maio houve duas deslocações do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, a Pyongyang. E quarta e quinta-feira o número dois de Pyongyang, Kim Yong Chol, esteve em Nova Iorque para se avistar com Pompeo - foi a primeira vez em 18 anos que um alto responsável norte-coreano esteve nos EUA.
“O meu medo é que aquelas duas feras se vão encontrar sem uma preparação de alternativas”, afirma Duarte de Jesus. Os dois lados parecem determinados em exclusivo em conseguir o máximo dos seus objectivos. Os EUA têm falado continuamente da “desnuclearização” total, imediata e verificável da Coreia do Norte, enquanto Pyongyang quer garantias de segurança e o fim da presença militar norte-americana na península.
Olhando para as suas décadas de experiência, Duarte de Jesus deixa um aviso: “Não sabemos quais são as posições de recuo ou os planos B ou C da Coreia do Norte, caso isto falhe. Estou convencido de que têm. O que me pergunto é se os Estados Unidos também os têm.”
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