As autarquias e o gradualismo começam a tornar-se um dos assuntos mais presentes na agenda política do país. O governo angolano, dirigido pelo MPLA há 42 anos, continua com a sua retórica de “abertura”. Produz uns documentos com vista à implantação das autarquias, e a oposição, vendo a oportunidade de finalmente conquistar algum poder, abraça com toda a energia a causa das eleições locais.
por RUI VERDE
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Na verdade, nem de longe nem de perto serão as autarquias uma panaceia para a situação angolana, nem a sua instituição constitui a solução para os problemas estruturais de Angola: pobreza e corrupção. Contudo, a realidade é que a discussão começou, e por isso queremos deixar algumas notas.
A questão financeira
O primeiro ponto é que, antes de ser uma questão jurídica, a implantação das autarquias é uma questão económico-financeira. Isto quer dizer que o aspecto essencial a considerar é qual o papel que as autarquias irão desempenhar, que funções lhes serão atribuídas e quais os fundos financeiros que lhes serão adstritos.
Um exemplo concreto. Imaginemos que é criada a Câmara Municipal de Luanda, com responsabilidades na área da educação básica – escolas e professores – e nos transportes. A UNITA ganha as eleições autárquicas em Luanda e fica obrigada a garantir boas escolas e autocarros para a população.
Todos ficam à espera de que a UNITA cumpra as suas promessas. Passam-se anos e a UNITA não faz nada, logo perde as eleições seguintes. O que se passou? A resposta seria fácil: a UNITA ficou com a responsabilidade, mas sem o poder. Nunca teve poder, porque nunca teve dinheiro. O governo central nunca lhe atribuiu verbas, e portanto a UNITA não teve meios para cumprir qualquer promessa. Este é o cenário que se pode desenhar caso, antes de qualquer discussão jurídica, não se encarem as perguntas essenciais: o que vão as autarquias fazer e onde está o dinheiro para o concretizar?
Por consequência, em termos de autarquias, primeiro o dinheiro, depois o resto.
O gradualismo na Constituição
Vejamos agora os aspectos constitucionais que definem as autarquias. O desenho jurídico está concretizado nos artigos 217.º e seguintes da Constituição de República de Angola (CRA).
Essencialmente, o quadro é muito genérico e remete as grandes decisões sobre as autarquias para a lei. Por isso, competirá à Assembleia Nacional a estruturação, a partir quase do zero, do modelo autárquico para o país. O mesmo acontece em relação ao património e finanças. O artigo 218.º estabelece que a autarquia básica é o município, mas admite que possam existir autarquias acima dos municípios e abaixo dos municípios, competindo mais uma vez à lei a sua definição. Quanto às atribuições, dispõe o artigo 219.º e elenca várias possibilidades. As autarquias podem dedicar-se à educação, à saúde, à energia, às águas, à cultura, etc.
De novo, será a lei a definir exactamente quais as atribuições das autarquias, dentro dos exemplos que o artigo nomeia. O artigo 220.º diz-nos quais são os órgãos das autarquias, imitando o modelo português: um presidente, um executivo e uma assembleia. O artigo 221.º submete as autarquias à tutela administrativa Executivo, definindo essa tutela como de legalidade. Isto quer dizer que o Executivo nacional terá poderes para verificar se as autarquias cumprem ou não a lei. Certamente, esta será uma área de fricção futura.
Finalmente, o artigo 222.º enuncia uns vagos princípios de solidariedade e cooperação entre as autarquias e o governo central, que mais uma vez serão concretizados pela lei.
A partir desta enumeração normativa, percebe-se que o legislador constitucional teve medo das autarquias locais, e só as introduziu de forma muito vaga e indeterminada, remetendo para a lei, isto é, para a maioria do MPLA na Assembleia Nacional, a definição concreta do modelo autárquico.
A acrescer a esta nebulosidade autárquica, temos o famoso princípio do gradualismo, introduzido pelo artigo 242.º da CRA. A redacção do artigo é a seguinte:
“1. A institucionalização efectiva das autarquias locais obedece ao princípio do gradualismo.
2. Os órgãos competentes do Estado determinam por lei a oportunidade da sua criação, o alargamento gradual das suas atribuições, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais.”
O n.º 1 do artigo diz-nos, apenas, que a existência real das autarquias locais obedece ao “princípio do gradualismo”. O n.º 2 define o que é esse princípio. Assim, poderemos afirmar que, em termos constitucionais, o gradualismo se decompõe em quatro elementos:
i) a oportunidade de criação das autarquias;
ii) o alargamento gradual das suas atribuições;
iii) o doseamento da tutela de mérito;
iv) a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais.
i) a oportunidade de criação das autarquias;
ii) o alargamento gradual das suas atribuições;
iii) o doseamento da tutela de mérito;
iv) a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais.
O gradualismo é isto, nem mais, nem menos. É um conceito jurídico-constitucional que foi explicitado pelo legislador constitucional atempadamente. Se consultarmos um dicionário, encontraremos outras definições de gradualismo, e o mesmo acontece se recorrermos ao Direito Comparado. Contudo, em Angola, a Constituição densifica o que é o gradualismo, e comete à lei (como em tudo o que se refere às autarquias) a concretização dos elementos do gradualismo.
O primeiro elemento do conceito de gradualismo é a oportunidade de criação das autarquias. O enunciado deste elemento é simples e contém a resposta para muitas discussões actuais. Compete à lei decidir o momento em que as circunstâncias são adequadas para estabelecer as autarquias. No entanto, a CRA não fala “de autarquias”, mas “das autarquias”. Assim, a interpretação consonante com a letra da Constituição é de que a criação das autarquias é una. Não há a possibilidade constitucional de criação de autarquias, mas sim das autarquias. De acordo com esta análise linguística, é a CRA que obriga a que a lei crie de uma vez cada tipo de autarquias. Se a lei determina que é oportuno criar municípios, então criam-se todos os municípios. Não existe a possibilidade de criar uns e não outros. Aliás, esta interpretação relaciona-se com o segundo elemento, que prevê o alargamento gradual das atribuições das autarquias. Quer isto dizer que a lei é obrigada a criar toda uma categoria de autarquias (por exemplo, municípios) e depois pode ir estendendo as suas competências (primeiro saúde, depois transportes, etc.).
Assim, os dois primeiros elementos do conceito de gradualismo dizem-nos que a lei define quando é oportuno criar um tipo de autarquias, e que essa criação tem de ser nacional. Criadas as autarquias, a lei não tem de lhes conferir de imediato todos os poderes. Aqui pode haver um gradualismo. Como referimos, primeiro tratam da saúde, depois dos transportes, e depois da educação, por exemplo.
Na essência, o gradualismo permite à maioria da Assembleia Nacional definir o momento em que cria autarquias, mas não lhe permite criá-las para uns pedaços do território nacional e não para outros. Permite também que os poderes sejam transmitidos paulatinamente às autarquias, e não de uma só vez.
Os restantes elementos do conceito são a introdução de uma tutela de mérito e a passagem das funções da administração local do Estado (por exemplo, governadores provinciais) para as autarquias.
A questão da tutela de mérito é estranha e parece contradizer o explicitado no artigo 221.º, sobre a tutela de legalidade. Este é um tema um pouco técnico, embora com amplas consequências políticas, mas o qual deixaremos para discussão nas teses de mestrado e doutoramento. Em termos político-constitucionais, ficará aberta a porta para uma intervenção inesperada do governo central nas decisões políticas das autarquias. É bizarro.
Finalmente, o último elemento de transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias está ligado ao segundo: à medida que forem sendo conferidas mais atribuições às autarquias, ter-se-á de fazer a passagem de competências de uns órgãos para os outros.
Conclusões
Esta é apenas uma primeira nota sobre o gradualismo constitucional nas autarquias. Verifica-se que é um conceito relativamente fechado, cuja definição se encontra no n.º 2 do artigo 242.º. Esta definição não permite a criação desigual de autarquias a nível nacional, mas apenas a evolução nas suas atribuições, no que diz respeito às matérias que vão sendo passadas às autarquias estabelecidas, bem como a escolha da oportunidade para criar cada tipo de autarquia.
Em próximo artigo analisaremos as propostas do governo face a estas conclusões.
Em seguida, o ex-Procurador-Geral, João Maria de Sousa, disse que eu o tinha escolhido e " perseguido pois havia vários funcionários do estado que indefinição as linhas entre os seus deveres públicos e interesses privados. Como exemplo, ele alegou, sem nomear a pessoa, que um certo funcionário público era simultaneamente ceo de um banco privado. Ele também alegou que havia magistrados e ministros que permaneceram envolvidos com as firmas de advocacia que possuíam. Ele atacou-me como injusto por não expô-los a todos!
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