Depois dos exonerados, temos os arguidos. A vida política angolana está a passar por uma fase de judicialização. O grande combate começa a travar-se nos tribunais criminais. É um momento interessante, mas que também fará incidir uma luz mais forte sobre as fragilidades do sistema judicial angolano.
Vários casos, uns confirmados, outros ainda especulativos, estão agora na órbita da Procuradoria-Geral da República: Zenú, Valter Filipe, Norberto Garcia, Belarmino Van-Dúnem, o general Nunda são os novos arguidos. Caso as investigações sobre a dívida pública avancem, poderão ser constituídos novos arguidos, como Isabel dos Santos ou o general “Kopelipa”, assim como outros próceres do meio financeiro.
Obviamente, o fenómeno dos novos “arguidos VIP” é novo para o universo judicial angolano e colocará um desafio muito intenso a este e à sociedade em geral.
Uma das perguntas que a sociedade colocará é por que razão se falam de números e negócios astronómicos (500 milhões ou 50 mil milhões de dólares) sem que ninguém seja conduzido a prisão preventiva. A verdade é que no sistema judicial angolano qualquer pobre alma pode ir presa preventivamente por razões mínimas. Um exemplo de entre muitos: em 2016, Domingos Manuel Filipe Catete foi preso preventivamente por ter dormido num carro alheio quando estava bêbedo, conforme então relatado por Rafael Marques.
Agora, reportam-se burlas (desvio de dinheiro alheio com recurso a trapaças), abusos de confiança (desvio de dinheiro alheio que se tem à guarda), peculato (o mesmo que o abuso de confiança, mas feito por funcionário público), branqueamento de capitais (utilização do dinheiro desviado para novas compras normais ou depósitos em bancos) com valores inimagináveis e ninguém vai preso?
Ao observar esta questão, a sociedade em geral deve ficar perplexa, temendo mesmo que tudo não passe de uma magistral manobra de propaganda.
Abstraindo-nos do caso do general Nunda, que tem contornos diferentes e devia, em nome da ética republicana, ter obedecido a outros procedimentos, verifiquemos o que diz a lei aplicável aos novos arguidos em termos de prisão preventiva.
A prisão preventiva está regulada pela Lei das Medidas Cautelares, Lei n.º 25/15, de 12 de Agosto. A prisão preventiva está prevista no artigo 36.º e seguintes dessa lei, que estabelecem que o Ministério Público pode impor ao arguido a prisão quando considere que as restantes medidas de coacção não são suficientes ou adequadas e se existirem fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, ou se não forem cumpridas as obrigações a que um arguido em liberdade esteja sujeito. Portanto, para aplicar a prisão preventiva o Ministério Público tem de fazer um juízo de adequação e suficiência, que será fundamentado. Esse juízo de adequação e suficiência decorre da avaliação de três requisitos – i) a existência de perigo de fuga, ii) a perturbação da investigação; e iii) o perigo da continuação da actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade pública –, perante os quais as medidas de coacção menos gravosas que a prisão preventiva podem não ser adequadas e suficientes, segundo critérios de proporcionalidade. Tudo isto vem referido nos artigos 16.º a 19.º, referentes aos condicionalismos para aplicação de medidas de coacção.
Portanto, existe na Lei uma gradação subsidiária para aplicação de medidas de coacção, cabendo ao MP a sua aferição.
Há que ser muito claro na análise dos requisitos. No caso novos arguidos VIP, dois desses requisitos levantam sérias interrogações quanto aos juízos que o Ministério Público está a realizar em termos de aplicação de medidas de coacção.
A primeira perplexidade refere-se ao perigo de fuga. A maior parte destes arguidos tem casa em Lisboa ou Londres, tem à sua disposição uma forte rede de contactos internacionais, controla contas bancárias no estrangeiro, acede facilmente a jacto privado ou barco rápido. Há um óbvio e potencial risco de fuga. Em qualquer jurisdição, pessoas de elevada capacidade financeira, com habitações noutros países, possibilidade de uso fácil de jactos, seriam, muito provavelmente, alvo de prisão preventiva, até pelo menos terem sido anuladas as hipóteses mais óbvias de fuga.
O segundo requisito que não estará a ser devidamente avaliado pelo MP é o da tranquilidade pública. Figuras suspeitas de terem “roubado” ou “tentado roubar” muitos milhões continuam a passear-se e a discursar impunemente pela via pública. Obviamente, isso causa efectivo alarme social e deixa antever sérias hipóteses de perturbação da tranquilidade pública. Por um lado, entre a população, estupefacta perante a impunidade de gozam os “grandes ladrões”, pode aumentar a criminalidade: “Se os importantes roubam e não são presos, eu também posso roubar e não serei preso”, pensarão potenciais delinquentes. Por outro lado, alguns dos VIP poderão enfrentar a fúria popular, sendo agredidos pelos seus desmandos.
Note-se que a prisão preventiva, medida gravosa e de aplicação última, não quer dizer que a pessoa seja culpada. Quer apenas dizer que, em determinado momento, alguém sobre quem recaem suspeitas viola valores da ordem jurídica, como a segurança, a credibilidade e a agilidade da investigação, devendo permanecer sob custódia até que esses valores deixem de ser violados.
Se o MP tem confiança suficiente para avançar publicamente com investigações judiciais em que alega que determinadas pessoas são provavelmente responsáveis de magnos desvios de fundos, deve perceber que essas pessoas podem fugir e que a sociedade está alarmada com tais comportamentos por parte dos seus concidadãos mais influentes. Por tudo isto, em determinados casos, talvez se justifique a prisão preventiva dos “arguidos VIP”.
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