O segundo comandante-geral da Polícia Nacional, comissário-chefe Paulo Gaspar de Almeida, foi constituído arguido por esbulho violento de uma quinta de 12 hectares, em posse do camponês Armando Manuel, de 71 anos, há quase 40 anos. O caso será ouvido pelo Tribunal Supremo.
TEXTO INTEGRAL
Para exibirem o seu poder e estatuto social, os dirigentes do MPLA e a sua classe castrense têm um passatempo preferido: esbulhar as terras de camponeses um pouco por todo o país.
Vez por outra ouve-se um grito isolado clamando justiça, mas os abusos prosseguem.
Desta feita, o segundo comandante-geral da Polícia Nacional, comissário-chefe Paulo Gaspar de Almeida, foi constituído arguido por esbulho violento de uma quinta de 12 hectares, em posse do camponês Armando Manuel, de 71 anos, há quase 40 anos. O caso será ouvido pelo Tribunal Supremo.
O terreno situa-se na zona do Zango 0, município de Viana. Actualmente, encontra-se sob controlo efectivo da esquadra local, que destacou cinco agentes policiais para o vigiar, impedindo o legítimo proprietário de lhe aceder e agindo como se Paulo Gaspar de Almeida o possuísse.
A 6 de Fevereiro passado, a directora da Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), Júlia Rosa de Lacerda Gonçalves, mandou notificar o camponês Armando Manuel sobre o despacho do caso que o opõe ao segundo comandante-geral da Polícia Nacional.
De acordo com o despacho do procurador-geral adjunto da República, Domingos Baxe, “existem nos autos indícios mais que suficientes que o participado Comissário-Chefe Paulo Gaspar de Almeida cometeu o crime de abuso de poder (...) razão pela qual deveria ter sido constituído arguido e ouvido em auto de interrogatório”.
O despacho refere o artigo 39.º da Lei da Probidade, sobre abuso de poder:
“O titular de cargo de responsabilidade que, abusando dos poderes que a lei lhe confere ou violando os deveres inerentes às funções ou por qualquer fraude, obtenha, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou cause prejuízo a entidade pública ou privada é punido com prisão e multa correspondente, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal”.
“O titular de cargo de responsabilidade que, abusando dos poderes que a lei lhe confere ou violando os deveres inerentes às funções ou por qualquer fraude, obtenha, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou cause prejuízo a entidade pública ou privada é punido com prisão e multa correspondente, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal”.
Com efeito, Domingos Baxe remeteu o processo n.º 16/17-DNIAP a esta instituição “com vista a reunir os elementos de indiciação necessários para fundamentar a acusação sendo o caso”.
Um conhecido advogado, sob anonimato, indica que o despacho do procurador Baxe “prova a existência de um processo crime, a sua constituição como arguido e a remessa dos autos para o Tribunal Supremo, porque a causa dele [Paulo Gaspar de Almeida] começa em primeira instância já na câmara [deste tribunal superior]”.
A 11 de Abril, a DNIAP informou o camponês Armando Manuel de que o comissário-chefe Paulo Gaspar de Almeida já fora constituído arguido, tendo o processo sido remetido ao Tribunal Supremo.
Essa medida não esmoreceu a pressão policial contra o camponês.
Cinco dias depois do despacho do procurador-geral adjunto Baxe, o comandante da unidade policial do Zango 0, conhecido apenas por Carneiro, deslocou-se pessoalmente à quinta em disputa.
Com uma escolta de três agentes policiais, o comandante fora acompanhar dois camiões carregados, um com areia e outro com cimento, para iniciar uma construção na quinta. Segundo informações prestadas por Armando Manuel ao Maka Angola, o referido comandante “disse que a quinta era do comandante Paulo de Almeida”.
Acto contínuo, conforme denúncia do lesado, a 18 de Abril, os efectivos locais da Polícia Nacional acompanharam os trabalhos de limpeza de uma parte do terreno, onde, no passado dia 21, foi instalada uma oficina móvel de reparação de viaturas.
“Quem foi acompanhar a montagem dessa oficina é o comandante Carneiro, do Zango 0, e o oficial de campo do comissário-chefe Paulo de Almeida, José António Eucundi, e ambos estão constantemente no terreno. Agora há lá permanentemente cinco agentes da Polícia Nacional. O meu pai foi expulso do seu terreno”, conta Edna Manuel.
Pai e filha deslocaram-se à DNIAP para dar conta da continuidade dos abusos. “O DNIAP informou-nos de que o caso já está no Tribunal Supremo e mais não pode fazer.”
“Eu estava presente quando se confirmou que o caso já subiu ao Tribunal Supremo, com o comissário-chefe Paulo de Almeida como arguido e, por isso, o DNIAP já não podia fazer nada”, lamenta Edna Manuel.
O ESBULHO
A disputa com o segundo comandante-geral da Polícia Nacional remonta a 12 de Dezembro de 2016.
Nesse dia, efectivos policiais liderados pelo comandante Joaquim Jordão, então responsável da esquadra do Zango 0, deslocaram-se à referida quinta, onde detiveram um indivíduo que Armando Manuel contratara para limpar o terreno.
Armando Manuel deslocou-se à esquadra e encontrou José António Eucundi, que se apresentou como oficial de campo do comissário-chefe Paulo Gaspar de Almeida. “Esse senhor afirmou, na presença do comandante Jordão, que o terreno era do segundo comandante-geral da Polícia Nacional e que este o tinha adquirido em 2005, por 11 mil dólares, ao Sr. Salomão, então director do GADAHKI [Gabinete de Desenvolvimento e Aproveitamento Hidráulico do Kikuxi]”.
Com esse argumento, o camponês foi detido e passou a noite na cela.
Em Junho passado, Armando Manuel conseguiu uma audiência com o segundo comandante-geral da Polícia Nacional.
“Eu expliquei ao comandante os motivos que me levaram a abandonar o terreno por algum tempo, mas que o mesmo é meu. O comissário-chefe Paulo de Almeida disse-me que o terreno é dele, que o comprou ao Estado. Eu quis mostrar-lhe os documentos que o Estado me passou da posse do terreno, mas ele recusou-se a ver ou receber”, conta.
Durante o encontro, “o próprio comandante revelou-me que foi ele quem ordenou a minha detenção, assim como a minha soltura, para dar-me uma lição”.
Armando Manuel mostrou como foi toscamente forjado um dos documentos apresentados por José António Eucundi e pela polícia local para justificar a pertença do terreno ao comandante Paulo Gaspar de Almeida.
O Maka Angola teve acesso ao documento forjado, datado de 5 de Maio de 2017, que tem como logótipo o símbolo da República e declara o Comando-Geral como proveniência. Este “Temo de entrega nº 2403/2017” indica que se trata de um termo segundo o qual a empresa privada Mark, Lda. entregava 11 milhões de kwanzas e três hectares ao genro de Armando Manuel, Paulo Alexandre de Castro, pela aquisição do terreno em disputa. Assinou o documento um José de Almeida, com carimbo da Imogestin, mas não há assinatura do vendedor.
“Quando lhe apresentei o documento falso, o Paulo de Almeida disse-me: ‘Você não sabe que na polícia também há bandidos?’”, revela o camponês.
O Maka Angola enviou uma mensagem directa ao comissário-chefe Paulo Gaspar de Almeida e, tão logo obtenha retorno, promoverá o seu direito de resposta.
No dia a seguir ao encontro entre o comandante e o camponês, segundo a versão deste último, o Sr. José António Eucundi deslocou-se ao terreno, exigindo conhecer a sua casa. “O Eucundi ameaçou-me: ‘Cuidado, mais-velho, você pode morrer.’ A minha filha Edna estava ao meu lado e ouviu. O que estes senhores da polícia fazem é pura bandidagem”, denuncia o visado.
Porque se enquadra nas típicas práticas policiais de rotina, este caso não poderia deixar de envolver a tortura de cidadãos. A 19 de Maio de 2017, Armando Manuel contratou quatro indivíduos para efectuarem a limpeza do terreno. “O comandante da divisão de Viana, superintendente-chefe Francisco Notícias, compareceu subitamente no local com vários efectivos da Polícia de Intervenção Rápida (PIR)”, afirma o camponês.
“O comandante Notícias acusou os trabalhadores de terem ‘invadido o terreno do MININT [Ministério do Interior]’, e os seus efectivos começaram a torturá-los ali mesmo, sob as suas ordens”, denuncia. Numa longa exposição enviada ao presidente João Lourenço, a 15 de Março passado, Armando Manuel revela também esse episódio.
Acto contínuo, os quatro cidadãos, nomeadamente Germano Januário, Tomé Fortunato, José João e Cláudio Vienese, foram torturados durante três dias, em três unidades policiais diferentes (Zango 0, Utanga e no Comando de Divisão de Viana). Ao quarto dia, foram presentes ao tribunal municipal de Viana, para julgamento sumário por “invasão do terreno do comandante Paulo de Almeida”.
A juíza Josefina Gomes absolveu os réus e ordenou a José António Eucundi, o referido oficial de campo do comandante Paulo de Almeida, a pagar as custas judiciais do processo.
A FUGA
Por causa do mesmo terreno, Armando Manuel conta ter buscado refúgio no Quilómetro 30, em 2008, quando o então comandante provincial de Luanda, comissário Quim Ribeiro, comandou o seu esbulho violento.
“Seis meses depois, os seus homens continuaram à minha procura, com ameaças de morte, e tive de retirar-me para a Muxima. Só regressei quando ele foi detido [em 2011] e os polícias que ele tinha colocado no terreno, instalados numa tenda, abandonaram o local, depois da sua detenção”, explica Armando Manuel.
O camponês informa ainda que a vedação do terreno foi feita por ordens do comandante Quim Ribeiro, durante “a primeira ocupação policial”.
É extraordinário que o DNIAP se tenha remetido ao silêncio sobre este caso, quando tem anunciado a constituição em arguido de outros poderosos.
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