quinta-feira, 1 de março de 2018

Revista do Vaticano denuncia exploração de freiras


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"Servem os homens da igreja, levantam-se de manhã para fazer o pequeno-almoço e vão dormir depois de o jantar ser servido", recebendo quase nada por isso, lê-se no artigo da Women Church World.
FEHIM DEMIR/EPA
Uma revista do Vaticano denunciou como as freiras são frequentemente tratadas como servas contratadas pelos cardeais e pelos bispos, para quem cozinham e limpam por quase nenhum salário. A edição de março da “Women Church World”, a revista mensal feminina do jornal do Vaticano Osservatore Romano, chegou às bancas esta quinta-feira.
Esta exposição do trabalho mal pago e do intelecto não apreciado das religiosas confirma que está em crescimento e a chegar à igreja católica o movimento #MeToo, descreve a Associated Press (AP). “Algumas servem nas casas dos bispos e dos cardeais, outras trabalham nas cozinhas das instituições da igreja ou dão aulas. Algumas servem os homens da igreja, levantam-se de manhã para fazer o pequeno-almoço, e vão dormir depois de o jantar ser servido, a casa limpa e a roupa lavada e engomada”, lê-se num dos artigos principais.
Uma freira identificada apenas como irmã Mary descreve como as freiras servem o clero, mas raramente são convidadas a sentarem-se à mesa que servem. Apesar de esta servidão ser do conhecimento geral, é assinalável que uma publicação oficial do Vaticano se atreva a publicar estas palavras e a denunciar como a igreja explora sistematicamente as freiras.
Mas essa disposição começou a definir a “Women Church World”, que se iniciou há seis anos como suplemento mensal do Osservatore Romano e é hoje uma publicação autónoma distribuída gratuitamente ‘online’ e juntamente com a edição em papel do jornal, em italiano, espanhol, francês e inglês. “Até agora, ninguém tinha tido a coragem de denunciar estas coisas”, disse à AP a editora da revista, Lucetta Scaraffia. “Tentamos dar voz àqueles que não têm coragem para dizer estas palavras”.
“Dentro da igreja, as mulheres são exploradas”, afirmou numa entrevista recente a responsável pela revista. Enquanto o papa Francisco disse a Scaraffia que lia e apreciava a revista, esta não é de todo amada pelo sistema profundamente patriarcal do Vaticano.

Leia os testemunhos de duas irmãs à revista:

Irmã Maria, que recebe várias freiras nestas situações
Frequentemente recebo freiras que estão numa situação de serviço doméstico que definitivamente não é reconhecido. Muitas delas servem em casas de bispos e cardeais, outras trabalham na cozinha de instituições da Igreja, ou dão aulas ou catequese. Algumas delas, empregadas ao serviço de homens da Igreja, levantam-se de manhã para preparar o pequeno-almoço e vão dormir depois de o jantar ter sido servido, a casa ter sido limpa, a roupa ter sido lavada e passada a ferro. Neste tipo de ‘serviço’, as irmãs não têm um horário preciso e regulamentado, como os leigos, e a sua retribuição é incerta e frequentemente muito modesta”
“Um clérigo pensa em ter a sua refeição servida pela sua freira e depois em deixá-la a comer sozinha na cozinha, depois de ter sido servido? É normal uma pessoa consagrada ser servida desta forma por uma outra pessoa consagrada? Sabendo que as pessoas consagradas destinadas ao trabalho doméstico são sempre as mulheres, as freiras? A nossa consagração não é a mesma que a deles?”
“Tudo isto desperta nelas uma rebelião interior muito forte. Passam por uma profunda frustração, mas têm medo de falar porque por trás daquilo tudo podem estar histórias muito complexas. No caso de freiras estrangeiras, de África, Ásia e América Latina, há muitas vezes uma mãe doente cujo tratamento é pago pela congregação da sua filha freira, um irmão mais velho que conseguiu estudar na Europa graças à superiora… Se uma destas religiosas regressa ao seu país, a sua família não vai entender. Dizem-lhes: és tão caprichosa! Estas irmãs sentem-se em dívida, ligadas, e depois ficam em silêncio. Entre outras coisas, elas são frequentemente oriundas de famílias muito pobres, cujos pais, eles próprios, eram domésticos. Muitas dizem sentir-se felizes, não veem o problema, mas sentem uma tensão interior forte. Estes mecanismos não são saudáveis e certas freiras chegam, em alguns casos, a tomar ansiolíticos para suportar esta situação de frustração”
Irmã Paula, religiosa com “cargos importantes na Igreja”
Muitas vezes, isto significa que as irmãs não têm um contrato ou um acordo com os bispos ou paróquias com quem trabalham”
“Por isso, recebem pouco ou nada. Isto acontece em escolas ou em clínicas, e mais frequentemente em trabalhos pastorais ou quando se ocupam da cozinha e das tarefas domésticas, numa casa episcopal ou numa paróquia. É uma injustiça que se verifica também em Itália, não apenas em terras distantes”
“O maior problema é simplesmente como viver ou fazer viver uma comunidade. Como garantir os fundos necessários para a formação religiosa e profissional dos seus membros, quem paga e como pagar as contas quando as freiras estão doentes ou precisam de tratamento por causa da idade. Como encontrar recursos para levar a cabo a missão de acordo com o carisma próprio”
Entretanto, a irmã Maria da Graça Guedes, vice-presidente da Conferência dos Institutos Religiosos, já reagiu à reportagem e disse ao Observador que a exploração de freiras “entristece a Igreja”.Igreja Católica

“As mulheres, na Igreja, são tratadas como pessoal de segunda”

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Maria João Sande Lemos, uma das principais ativistas por um maior papel das mulheres no interior da Igreja Católica, diz que a notícia sobre a servidão das freiras não é novidade.
"Para o Vaticano, as mulheres são ótimas para os serviços de costura, para limpar a igreja, para as funções de secretariado", diz Maria João Sande Lemos
AFP/Getty Images
Maria João Sande Lemos, uma das fundadoras do braço português do movimento católico Nós Somos Igreja — que defende um maior papel das mulheres na Igreja Católica –, diz que “as mulheres, na Igreja, são tratadas como pessoal de segunda“.
No dia em que a revista Donne Chiesa Mondo, uma revista do jornal oficial do Vaticano, o Osservatore Romano, sobre as mulheres na Igreja, publicou um artigo em que denuncia a “servidão” e o trabalho gratuito de freiras ao serviço de bispos e cardeais, a responsável portuguesa confirma já ter assistido a várias situações do género, e sublinha: “Agora foi notícia, mas isto não é, de todo, uma situação nova”.
“Uma vez vi uma fotografia de um cardeal que ia para uma grande celebração e ao lado dele ia uma freirinha só para segurar o chapéu dele”, exemplifica, em declarações ao Observador. Segundo Maria João Sande Lemos, “o Vaticano não dá suficiente atenção às mulheres“, relegando-as para funções menores.
Para o Vaticano, as mulheres são ótimas para os serviços de costura, para limpar a igreja, para as funções de secretariado. Mas para ajudar a preparar as homilias não são convidadas. Ou para fazer parte de conselhos diocesanos, ou para serem consultoras da Conferência Episcopal”, comenta.
Para Maria João Sande Lemos, “enquanto a Igreja Católica não reconhecer a igualdade entre homens e mulheres”, nomeadamente aceitando a ordenação sacerdotal das mulheres — uma das grandes reivindicações do movimento Nós Somos Igreja –, não haverá solução para este problema.
No artigo publicado esta quinta-feira pela revista Donne Chiesa Mondo, são expostas denúncias de três freiras, identificadas com nomes fictícios (Maria, Paula e Cecília). As religiosas descrevem como as freiras servem nas casas dos bispos e dos cardeais, trabalham em cozinhas de instituições da Igreja ou dão aulas. Sobretudo, são-lhes atribuídas tarefas domésticas nas casas dos homens que estão à frente da Igreja, no Vaticano.
“Algumas servem os homens da igreja, levantam-se de manhã para fazer o pequeno-almoço, e vão dormir depois de o jantar ser servido, a casa limpa e a roupa lavada e engomada”, lê-se.
A editora da revista, Lucetta Scaraffia, disse à Associated Press que a publicação pretende “dar voz àqueles que não têm coragem para dizer estas palavras”. “Até agora, ninguém tinha tido a coragem de denunciar estas coisas”, afirmou.
Considerada “a feminista do Vaticano” por vários media religiosos, Scaraffia diz que o papa Francisco lhe disse que lia frequentemente e apreciava a revista, que é publicada todos os meses em italiano, espanhol, francês e inglês juntamente com o jornal oficial do Vaticano.

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