quinta-feira, 29 de março de 2018

REFLEXÕES SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA MANDIOCA PARA A PRODUÇÃO DE CERVEJA

DESTAQUE RURAL Nº 34 Abril de 2018 REFLEXÕES SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA MANDIOCA PARA A PRODUÇÃO DE CERVEJA Momade Ibraimo1 1. INTRODUÇÃO A mandioca foi trazida para Moçambique por volta do século XVIII, oriunda das regiões tropicais da América Latina. No entanto, foi em meados do século XX, numa altura em que se expandia o fomento de culturas não-alimentares e de produção obrigatória, que o cultivo de mandioca adquiriu particular importância para a segurança alimentar das populações rurais. Produzindo em solos menos férteis e exigindo poucos cuidados em termos de trabalho humano, o Estado colonial promoveu a cultura da mandioca no país, incluindo nas zonas de produção obrigatória do algodão. Desta forma, o Estado colonial pôde garantir a disponibilidade de mão-de-obra para o cultivo do algodão, evitando, simultaneamente, riscos de fome resultantes da oscilação dos preços do algodão, geradores de forte descontentamento social (Mate, 1991: 267-270) 2 . A mandioca mantém, ainda hoje, um papel importante na dieta das populações, particularmente do meio rural. Ao longo das últimas décadas, organizações não-governamentais e instituições públicas empenharam-se no fomento de variedades melhoradas em inúmeros distritos do país, sublinhando o respectivo valor nutritivo e importância para a segurança alimentar. A partir de 2012, com a entrada de uma empresa denominada Dutch Agricultural Development & Trading Company3 BV (DADTCO), que se dedica ao abastecimento de mandioca à indústria de cerveja, este tubérculo passou a ser cultivado, não só para o consumo alimentar, mas também para venda. A chegada da DADTCO significou para os pequenos agricultores um importante estímulo para o aumento da produção de mandioca virada para o mercado. No entanto, a comercialização de uma cultura alimentar, essencial na dieta de muitas famílias rurais, levantou um conjunto de questões em torno das variedades produzidas, de forma que o produtor consiga conciliar a produção para o seu consumo e para a comercialização. De facto, a entrada da DADTCO no mercado coincide com o período de introdução de certas variedades melhoradas de 1 Licenciado em Economia e Monitor de Investigação do Observatório do Meio Rural. 2 De acordo com a mesma fonte, a mandioca apresentava as seguintes vantagens em relação ao sorgo: (1) enquanto o sorgo precisa de cerca de 220 jornadas de trabalho agrícola anual, a mandioca precisa de menos de 160; (2) o cultivo do sorgo exige diferentes operações culturais durante o ciclo de produção para a obtenção de um bom rendimento, enquanto a mandioca exige menos operações culturais e é capaz de reproduzir em solos pobres; e (3) o sorgo tem que ser colhido e colocado em celeiros, enquanto a mandioca pode ser mantida no solo e colhida quando preciso. 3 Traduzido para português: Empresa Holandesa de Desenvolvimento e Comércio Agrícola. mandioca, ideais para o fabrico de cerveja mas que no entanto são impróprias para o consumo em fresco4 . Num cenário em que as novas variedades melhoradas possibilitam a obtenção de maiores rendimentos por planta, a substituição das variedades tradicionais tem um conjunto de riscos para o camponês. Perante momentos de oscilação de preços ou de más épocas agrícolas, o produtor poderá enfrentar diminuição nos rendimentos monetários e colocar em causa os seus hábitos alimentares. O presente Destaque Rural procura descrever o processo de comercialização da mandioca, apresentando evidências empíricas de agricultores de Ngomene Norte, no distrito de Zavala, província de Inhambane. 2. A EMPRESA A DADTCO foi criada em 2002 e está sediada na Holanda. Opera em três países africanos, nomeadamente: Nigéria, Gana e, desde 2012, em Moçambique. Juntamente com seus parceiros, cobre a cadeia de valor da mandioca a montante do processamento, desde a produção colectada pelos pequenos agricultores, insumos (estacas), processamento pré-comercialização (descasque e prensagem para retirar a água) e comercialização, e abastecimento da indústria de cerveja local. Não possuindo campos próprios para produção, a empresa adquire este tubérculo aos pequenos produtores. Numa primeira fase, instalou-se na província de Nampula, adquirindo a produção de agricultores de Ribaué e abrangendo algumas comunidades de Mecubúri. Posteriormente, expandiu-se para os distritos de Murrupula, Mogovolas, Meconta, Monapo, Nacala-aVelha e alguns distritos da Alta Zambézia. Numa segunda fase, em 2013, a empresa começou a operar na província de Inhambane, concretamente nos distritos de Morrumbene, expandindo-se posteriormente para Massinga, Maxixe, Jangamo, Inharrime e Zavala. De acordo com os registos da empresa, até meados de 2017, contava com 8.533 pequenos fornecedores locais, dos quais, 49% (4.212 produtores) na província de Inhambane e os restantes em Nampula. Embora tenha iniciado a sua operacionalização na província de Inhambane em 2013, somente dois anos mais tarde, em 2015, começou com as operações de compra deste tubérculo aos pequenos produtores do distrito de Zavala. 3. O PROCESSO DE COMERCIALIZAÇÃO O processo de comercialização segue, normalmente, os seguintes passos: 1º - Estimativa da quantidade: o agricultor contacta o agente mobilizador da empresa, estimando a quantidade a ser vendida. Deste modo, a empresa prepara-se para disponibilizar o meio de transporte. 4 O consumo em fresco (cru) da mandioca é um hábito alimentar da população moçambicana, principalmente no meio rural. Neste sentido, o facto das variedades melhoradas serem impróprias para o consumo em fresco, estas variedades não são preferidas pelos camponeses. Para o seu consumo, estas variedades devem ser sempre processadas (cozinhadas). Figura 1: Instalações da DADTCO em Zavala 2º - Confirmação da colheita: o mobilizador confirma junto do agricultor a realização da colheita e período de recolha. Devido à rápida deterioração da mandioca após a colheita, o produto não deve permanecer mais de 48 horas sem ser processado. 3º - Transporte: a empresa envia o veículo adequado para o transporte da quantidade colhida, carregando a produção até à unidade de comercialização, acompanhado pelo produtor. O agricultor pode levar a produção até às instalações da empresa. 4º - Medição e pagamento: na presença do agricultor, faz-se o descasque e a prensagem para obtenção da farinha que é levada para a pesagem em caixas. Após a pesagem, o agricultor recebe um bilhete de registo da quantidade e, fazendo-se apresentar com o seu cartão de produtor, dirigese à tesouraria para pagamento e registo da quantidade no seu cadastro. Actualmente, o preço praticado pela DADTCO é de 2,00 MZM/kg ou de 2,50 MZM/kg5 , se o agricultor levar o produto até as instalações da empresa. Este último caso é pouco usual, visto que os pequenos agricultores (de Ngomene Norte) não possuem veículos e o aluguer de uma viatura, é geralmente pouco compensatório. A fábrica opera durante todo o ano, sendo que existem períodos de pico de comercialização. No caso do distrito de Zavala, o período de maior comercialização é entre Junho e Outubro. Os dados disponibilizados pela empresa mostram uma tendência crescente das quantidades comercializadas ao longo dos anos na província de Inhambane, interrompida em 2016 (gráfico 1), devido à seca verificada neste período. De acordo com o representante da empresa entrevistado, existem no país diversas variedades deste tubérculo, divididas em dois grupos: (1) variedades tradicionais ou locais - que geralmente atingem um rendimento entre 8 a 10 ton./hectare; e (2) variedades melhoradas – desenvolvidas pelo Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM), com um rendimento entre as 20 e 35 ton./hectare, ou seja, quatro vezes maior que as tradicionais6 . Os pequenos agricultores de Zavala continuam a produzir variedades tradicionais. A principal inquietação dos produtores está relacionada com o preço. De acordo com os mesmos, ainda que o preço tenha sofrido um incremento, continua baixo. Por sua vez, a empresa alega que a falta de observação de práticas mais eficientes de produção e a utilização de variedades tradicionais tem um impacto negativo na produtividade, reflectindo-se nos baixos rendimentos monetários dos 5 Inicialmente, o preço praticado era de 1,00 MZM/kg. De acordo com o representante da empresa, os preços actuais (mais elevados) começaram a ser praticados na província de Inhambane em Abril de 2016. A empresa procurava, através do aumento do preço, incentivar a comercialização da mandioca nesta província que, na altura, atravessava um período de estiagem. Na altura, a intenção da empresa era de praticar este preço durante três meses (Abril, Maio, e Junho), mas o preço não mais se alterou. 6 Em cada grupo, existem variedades adequadas e não adequadas para o consumo humano em fresco. 1.505 3.929 5.821 2.165 2013 2014 2015 2016 Gráfico 1: Mandioca comercializada a DADTCO na província de Inhambane (ton.) produtores, pelo menos em relação às suas expectativas7 . A partir de pesquisa feita no distrito de Zavala, constatou-se que os pequenos agricultores não estão satisfeitos com o processo de comercialização, pelos seguintes motivos:  Processo de pesagem: a mandioca é descascada e colocada numa prensa para tirar a água, traduzindo-se numa significativa diminuição do peso do produto. Na opinião dos agricultores, a mandioca devia ser pesada antes de ser descascada.  Política de preços: ao deslocar-se até às explorações, a empresa reduz o preço de compra em 20% (de 2,5 para 2,0 Meticais). Na perspectiva dos produtores, o preço é baixo. 4. IMPACTOS E RISCOS Se consideramos os actuais preços praticados (2,50 MZM/kg – sendo o agricultor a transportar a produção até a fábrica) e uma média de 3 toneladas/ano8 de produção comercializada por produtor, poderíamos estimar que a DADTCO injecta directamente no orçamento das famílias um valor anual médio de 7.500 Meticais/ano/agricultor, ou seja, 625 Meticais mensais – valores muito abaixo da linha da pobreza (actualmente fixada pelo Banco Mundial em 1,90 USD/dia – 3.420 Meticais/mensais). No entanto, uma vez que, na realidade, normalmente a empresa adquire a produção junto aos campos de colheita ao preço de 2,00 MZM/kg, o valor médio reduziria de 625 para 500 Meticais mensais por agricultor. Os dados recolhidos junto de 60 agregados familiares (num universo de 155) em Ngomene Norte, na vila de Quissico, no distrito de Zavala, confirmam este cenário pouco optimista (ainda que o valor médio seja duas vezes superior à estimativa feita acima). Embora a maioria dos inquiridos (76,7%; 46 dos 60 agregados familiares), tenha vendido mandioca à DADTCO em 2017, estes não se mostraram satisfeitos com os rendimentos monetários obtidos. Os resultados revelam que os produtores que venderam mandioca à DADTCO obtiveram rendimentos médios mensais em torno dos 1.070 Meticais, o que representa menos de um terço da linha de pobreza. Na realidade, estes rendimentos não se traduzem na melhoria significativa da vida dos produtores. Por exemplo, verificámos que, do total das famílias que venderam mandioca à empresa, 71,7% (33 das 46 famílias) utiliza material local (capim, colmo ou palmeira) para cobertura das casas. Admitindo um cenário em que os pequenos agricultores produzam variedades melhoradas de mandioca, o que possibilitaria quadruplicar os rendimentos monetários, o rendimento médio mensal seria de cerca de 4.280 Meticais, um valor ligeiramente acima do nível da pobreza. Contudo, considerando que este panorama só seria possível com recurso a variedades não preferidas pelos camponeses. Apesar de possibilitar a comercialização de uma das culturas agrícolas mais produzidas no país e, logicamente, a obtenção de rendimentos monetários adicionais para milhares de pequenos produtores, este agro-negócio constitui dois riscos principais para as famílias produtoras: 7Em parceria com a Organização Holandesa para o Desenvolvimento (SNV), e de forma a melhorar as práticas de cultivo, a empresa tem desenvolvido um programa de capacitação dos agricultores, através de um técnico de extensão agrária. No caso específico de Zavala, a SNV actua desde 2015. Dois anos mais tarde, cerca de 1.500 produtores de mandioca foram organizados em 54 associações. Tendo o incremento de renda familiar como principal objectivo do programa, o apoio técnico consiste na disseminação de novas variedades e de conhecimento sobre as técnicas de plantio e tecnologias de produção. 8 Referido em Smart e Halon (2014).  O agricultor assume todos os riscos relacionados com as condições de produção e comercialização (não obstante a tolerância desta cultura às condições edafoclimáticas);  Risco de ruptura de hábitos alimentares das famílias camponesas com a introdução de variedades impróprias para o consumo em fresco. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora não apresentando evidências, a empresa garante que os agricultores (exemplificando com alguns produtores do distrito de Inharrime) que tem optado pela produção das espécies melhoradas possuem maior produtividade e, consequentemente, podem obter maiores rendimentos monetários. Por outro lado, os pequenos produtores entrevistados alegam que a produção de mandioca para a indústria de cerveja só é vantajosa para quem possui grandes explorações, pois só os grandes produtores podem conciliar a produção para o consumo e para a comercialização, mantendo os seus hábitos alimentares. Verifica-se no seio dos pequenos produtores expectativas defraudadas neste agro-negócio. De facto, os impactos não são visíveis na melhoria de condições de vida dos camponeses. O processo de pesagem e a política do preço figuram como os aspectos mais inquietantes para os camponeses. Este processo de comercialização acontece num contexto de fraca presença do Estado como agente regulador. O pequeno agricultor sente-se incapaz de discutir certos procedimentos durante a cadeia de valor. Urge a necessidade de um maior envolvimento por parte do Estado, quer através de estruturais locais, quer de técnicos de extensão rural e dos Serviços Distritais de Actividades Económicas. É, paralelamente, imprescindível que as políticas agrárias estejam articuladas com as necessidades dos pequenos produtores, os principais actores neste sector. A participação destes actores na elaboração de políticas agrárias constitui a base de uma agenda de desenvolvimento sustentável da agricultura e das sociedades rurais. Notou-se, durante a pesquisa, assimetrias de informação entre os produtores e a empresa. Por exemplo, no que tange às variedades melhoradas, os camponeses têm a percepção de que são espécies totalmente impróprias para o consumo, quer em fresco, quer depois de cozinhada, o que não corresponde à verdade. Uma vez que a empresa possui uma base de dados de seus produtores, é importante haver uma maior articulação no contexto da produção, quer para o consumo, quer para a comercialização, não deixando o produtor abandonado e arcando com os riscos de produção. Uma das formas de articular a produção virada para o mercado e para o consumo seria o fornecimento de tais variedades ideais para o fabrico da cerveja, para permitir uma maior produtividade e maiores rendimentos, como também o fornecimento de variedades adequadas para consumo (em fresco), fortalecendo, deste modo, a relação dos produtores com a empresa. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SMART, Teresa e HANLON, Joseph (2014). Galinhas e cerveja: uma receita para o crescimento. Maputo. Kapicua, Livros e Multimédia Lda. MATE, Alexandre (1991). “A transformação dos sistemas alimentares em Moçambique: o caso do distrito de Eráti (1930-1960) ” in JOSÉ, Alexandrino e MENESES, Maria (Edição) (1991) Moçambique 16 anos de historiografia. Volume 1. Maputo: Imprensa Universitária, pp. 267-270.

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