O destino de “Zenu”
4/11
Como pode o sucessor natural de José Eduardo dos Santos não lhe suceder. No dia em que José Filomeno dos Santos foi constituído arguido e ficou impedido de sair de Angola, o Expresso republica um texto originalmente publicado na Revista E, a 9 junho 2016
Tinha tudo para ser ele. Desde logo porque é o filho varão. Dos dez irmãos, José Filomeno dos Santos só é mais novo do que Isabel. E depois porque ela, a primogénita, que podia fazer-lhe sombra, parecia não estar para aí virada. Isabel tornou-se a primeira figura da sua geração em Angola a ser internacionalmente famosa, aproveitando os cinco anos que tem a mais que o irmão para levar um bom avanço no caminho do êxito público, mas o seu mundo eram os negócios. E o outro eventual candidato, Manuel Vicente, o único fora do círculo da família, começou a ter a sua sorte traçada assim que deixou de ser presidente da Sonangol para assumir a vice-presidência de Angola.
Pouco importava se ninguém sabia muito bem quem ele era até ser nomeado, em 2012, administrador do Fundo Soberano de Angola. O filho do Presidente não era ainda capa de revistas, mas nos círculos do poder em Luanda já existia há uns anos a ideia de que era dali que viria o futuro do país. Pelo menos desde 2007, quando uma primeira referência ao seu nome surgia em Portugal, num artigo do jornal “Público” precisamente sobre a ascensão de Isabel, em que era escrito que “a sucessão política” estava “orientada para o seu irmão, José Filomeno dos Santos”. Formada em Londres, onde adquirira experiência a trabalhar em multinacionais, em 2007, Isabel dos Santos estava a crescer como empresária, vendendo a ideia de que era não só independente do pai mas também uma seguidora fiel das regras do direito privado europeu. Com ela seria by the book. Não iria misturar as coisas, passaria bem sem ocupar cargos públicos. A cadeira da Presidência não era o seu campeonato.
A ideia foi amadurecendo. O rapaz podia ter o perfil para o que era preciso: contentar os pobres, contemporizar os ricos. Num relatório confidencial sobre o potencial sucessor do Presidente de Angola, produzido em maio de 2010 pela agência de intelligence norte-americana Stratfor e mais tarde publicado na íntegra pela organização de fugas de informação WikiLeaks, José Filomeno era retratado como o único dos filhos de José Eduardo dos Santos que parecia preocupar-se com a situação social do país: “Quando viaja até às províncias, ele faz uma avaliação crítica e rigorosa da situação, às vezes destacando uma certa lentidão ou má-fé das autoridades locais em fazerem o seu trabalho. No regresso partilha essas situações com o pai, o que tem reforçado o seu papel de fonte de informação do chefe de Estado.”
O interesse da Stratfor, uma fonte de informações de relevo para multinacionais e para o Governo norte-americano, especializada em identificar oportunidades e riscos em todas as zonas do globo, era o reflexo da importância que já era dada ao jovem José Filomeno dentro e fora de fronteiras.
A maior parte da informação relatada pela Stratfor vinha originalmente do Clube K, um site de notícias fundado em 2000 que se assumiu desde o início como um órgão de comunicação independente vocacionado para denunciar abusos de poder e corrupção em Angola, editado a partir dos Estados Unidos, Portugal, Holanda, França, Alemanha e Brasil por angolanos expatriados. Eram eles que diziam que o filho mais velho do Presidente angolano era uma pessoa atenta. E um homem educado.
“Porta-se como um cavalheiro”, escreveu o Clube K no seu site, no texto que foi apropriado pela Stratfor. “Quando vai à padaria comprar pão, saúda as pessoas, mesmo as que não conhece. É capaz de dar prioridade às senhoras. Quem com ele se cruza, sobretudo os jovens, acaba por ter a impressão de que é uma figura simples e bastante educada, que nem parece ser filho de quem é.”
José Filomeno dos Santos fez então o que era esperado. Em 2012, logo a seguir às eleições gerais ganhas pelo pai com 72% dos votos, no primeiro confronto direto com eleitores em 20 anos, surgiu a nomeação do filho varão como administrador de um novo fundo soberano, há muito anunciado, capaz de garantir o futuro de Angola, tornando o país menos dependente do petróleo. “Zenu”, a alcunha do jovem financeiro, estava a dar o passo aparentemente certo para vir a ser o legítimo herdeiro de “Zedu”.
O Fundo Soberano de Angola, também designado FSDEA, com ativos iniciais de 5 mil milhões de dólares, foi lançado oficialmente a 17 de outubro desse ano. O primeiro comunicado da nova entidade dizia que o objetivo era “promover o desenvolvimento socioeconómico do país e criar património para as gerações futuras”. Falava de uma “carta social” e de “grandes desafios sociais”, como o acesso do povo a água potável ou a serviços de saúde. O secretário presidencial para os assuntos económicos e antigo diretor nacional do Tesouro, Armando Manuel, era empossado como presidente, tendo “Zenu” e um outro jovem gestor, Hugo Gonçalves, como administradores. Armando Manuel afirmava que o Fundo iria “assegurar uma receita financeira e uma receita social elevadas”. O próprio José Filomeno era citado a realçar a criação de “oportunidades com um impacto positivo na vida atual de todos os angolanos” — agricultura, distribuição de água e eletricidade, transportes.
Numa entrevista ao “Diário Económico”, publicada no dia seguinte, José Filomeno dizia que o Fundo continuaria “a ser alimentado pelas receitas da venda de barris de petróleo”. Numa notícia do Expresso, Armando Manuel assumia que o ritmo de injeção de dinheiro no Fundo iria ser de 100 mil barris de petróleo por dia, o equivalente na altura a 3,5 mil milhões de dólares por ano. Essas contas eram repetidas pelo próprio “Zenu”, em declarações também ao Expresso, em que aproveitava para reforçar a sua veia social: o grande objetivo “era melhorar cada vez mais a vida da população em geral e, deste modo, ir reduzindo as assimetrias”.
Além disso, tudo iria ser feito de forma transparente, de acordo com um novo comunicado divulgado dois meses depois, para que o “povo angolano” pudesse monitorizar o progresso do programa de investimentos. “O nosso plano é trazer um crescimento socioeconómico para todos”, sublinhou José Filomeno dos Santos ao “Financial Times”. “Não é trazer um crescimento para certos indivíduos em particular.” A ambição era grande. E a tentação também. Num país em que 95% das exportações são petróleo e a produção diária andava nos 1,5 milhões de barris em 2012, 100 mil barris eram 7% do bolo.
O projeto tinha a cara do filho varão. Em seis meses houve um salto rápido. Com apenas 35 anos, “Zenu” passava de administrador a presidente do Fundo. A 21 de junho de 2013 era anunciada a sua súbita promoção. O pai tinha resolvido fazer uma pequena remodelação governamental. Tirou a pasta das Finanças a Carlos Alberto e deu o cargo a Armando Manuel, ao mesmo tempo que corria com o ministro da Construção, Fernando Fonseca.
A jogada política provocou alguma agitação. O grupo parlamentar Convergência Ampla de Salvação de Angola, a CASA, pediu ao Tribunal Constitucional para que anulasse o decreto presidencial que tinha criado o Fundo, uma vez que essa iniciativa teria de ser aprovada pela Assembleia da República, mas os juízes não lhe deram razão. Citado pelo serviço público internacional de televisão e rádio alemão, Deutsche Welle, o diretor da organização não-governamental angolana Open Society, Elias Isaac, explicava que o problema não se prendia com o facto de existirem “mecanismos institucionais do Estado que vão verificar se os objetivos deste Fundo estão a ser cumpridos ou não”, mas sim com o facto de em Angola já terem sido “constituídos outros fundos que foram à falência”. E o Governo, concluía o ativista, nunca tinha chamado ninguém à responsabilidade. Daí a importância do envolvimento do Parlamento.
Não havia como voltar atrás. O Presidente decidira. Calado, de pose reservada e introspetivo como o pai, mas com uma atitude mais sensível, viria mesmo “Zenu” a ser o novo “Zedu”?
Sempre em trânsito
José Filomeno de Sousa dos Santos nasceu a 9 de janeiro de 1978 em Luanda, quando o pai era ministro das Relações Exteriores do Governo do então Presidente Agostinho Neto. José Eduardo dos Santos tinha casado com uma russa que conhecera na universidade em Baku, no Azerbaijão, na época em que aquele país fazia parte da União Soviética. Com a independência de Angola, em 1975, Tatiana Kukanova viera com o marido e com a pequena Isabel, então com dois anos, instalando-se no Bairro Alvalade.
Mas “Zedu” não aguentou o casamento durante muito tempo e em 1977 já se tinha envolvido com a sua secretária no Ministério. Filha de pai cabo-verdiano e mãe angolana, Filomena de Sousa — “Necas” como sempre foi conhecida entre amigos e familiares — tinha estudado na escola comercial Vicente Ferreira antes de começar a trabalhar para o Governo. E antes de se apaixonar pelo jovem ministro, então com 35 anos.
José Eduardo dos Santos e “Necas” não chegaram a casar. Nem a viver juntos. Com a morte de Agostinho Neto e a sua ascensão a líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e, por inerência, a Presidente do país, “Zedu” iria, de qualquer modo, garantir que nada faltaria a nenhum dos seus sucessivos núcleos familiares, à medida que ia tendo filhos de diferentes mulheres.
José Filomeno passou os primeiros anos de vida na rua Porto Alexandre, perto do mercado do Bairro Popular, na casa dos avós maternos. A mãe vira-se obrigada a deixar de morar sozinha, em Vila Clotilde (hoje Vila Alice), para ter ajuda na educação e nas rotinas diárias da criança.
Para todos os efeitos, o miúdo foi assumido pelo pai. Quando frequentou a escola Ngola Kanini, antiga João Crisóstomo, no quarteirão da escola portuguesa e do liceu francês de Luanda, e mais tarde, quando se transferiu para o estabelecimento do ensino secundário Juventude em Luta, logo ali ao lado, ia e vinha num Mercedes fornecido pela Presidência, acompanhado sempre de dois guarda-costas.
Os antigos colegas de carteira recordam-se dele como um rapaz “muito recatado”. Tirando a sua condição especial de ser filho de quem era, não dava nas vistas. Com a vida mais estabilizada, a mãe mudou-se para a rua Comandante Stona, nos arredores do Bairro Alvalade, e acabou por casar com um antigo militar das FAPLA, o exército do MPLA, de quem viria a ter mais duas crianças.
Ao mesmo tempo que assegurava uma boa educação formal para o filho varão, José Eduardo dos Santos parecia querer manter à distância a ex-companheira, à medida que a sua vida sentimental ia ficando cada vez mais complicada. Ainda na primeira metade da década de 80, Zedu viu nascer mais dois herdeiros, Welwitschea — ou Tchizé — e o músico José Paulino, que viria a adotar o nome artístico de Coréon Dú. Ambos eram fruto de uma relação iniciada com uma terceira mulher, Maria Luísa Abrantes. Considerada como uma “personalidade extravagante” nos círculos sociais, “Milucha” Abrantes, que até há pouco tempo foi presidente da extinta Agência Nacional de Investimento Privado, ficou célebre por ter feito um escândalo na rua ao cruzar-se com “Necas”. Um episódio que seria contado e recontado em Luanda.
“Milucha” e “Necas” estavam a criar os filhos do Presidente, cada uma no seu bairro, mas a cidade estava a ficar pequena. E ficou ainda mais pequena quando José Eduardo dos Santos teve um quinto filho, em 1988, José Avelino, com uma quarta mulher, vindo finalmente a casar-se com uma quinta mulher, Ana Paula Lemos, uma hospedeira do avião presidencial que subiria ao altar em maio de 1991, grávida de cinco meses de Eduane Danilo.
Por esta altura, quando fez 12 anos, “Zenu” deixou a escola Juventude em Luta e foi viver para Estocolmo, depois de a mãe ter sido nomeada de forma aparentemente oportuna como secretária para os assuntos económicos na embaixada angolana na Suécia, acompanhando-a mais tarde na mudança de posto para a embaixada em Londres, a cidade para onde também tinha ido Tatiana com Isabel. “Milucha” fora entretanto com os filhos para os Estados Unidos. O ambiente, apesar da guerra civil em curso, desanuviara em Luanda, na guerra emocional do líder do MPLA.
Em Londres entrou para a Universidade de Westminster, de onde saiu com uma licenciatura em Engenharia Eletrónica e um mestrado em Finanças e Gestão de Sistemas de Informação. Nos tempos livres aprendeu a tocar piano. Gostava muito de música. Foi nesse período, numa das vindas de férias a Luanda, que conheceu Maíra Fernandes. Segundo o perfil traçado pelo Clube K, “Zenu” “arranjou uma bolsa para a namorada pela Sonangol” e em 1997 ela “seguiu para Inglaterra”.
Depois de o cadáver de Jonas Savimbi, o líder da UNITA, o partido rival do MPLA, ser exibido na televisão, em 2002, anunciando o fim da guerra civil, José Filomeno dos Santos estava pronto para regressar de vez a casa. Após o casamento com Maíra, em 2004, foi morar para o Bairro Alvalade, não muito longe de onde passara a infância, e começou a acumular casas na capital angolana, duas, três, quatro. Uma delas na praia.
O primeiro emprego na AAA, a seguradora da Sonangol, durou até 2005. Foi quando decidiu experimentar o sector privado, seguindo o exemplo de um jovem empresário, Mirco Martins, enteado de Manuel Vicente de quem se tornara muito amigo em Inglaterra, quando ambos estudavam Engenharia Eletrónica, embora em diferentes cidades.
Começou num escritório pouco sofisticado e meio escondido nas imediações da Livraria Lello, o antigo largo da pastelaria e café Gelo, perto da marginal que abraça a baía de Luanda. Terão sido aí as primeiras reuniões da consultora Quantum Global, a ‘progenitora’ do Banco Quantum Invest, o seu primeiro projeto no mundo da finança. E foi aí que conheceu o homem com quem passou a fazer parcerias — um gestor e empresário com ligações a Cabinda, uma eventual ascendência portuguesa e detentor de dupla nacionalidade, suíça e angolana. Jean-Claude Bastos de Morais tornou-se omnipresente na sua vida.
Embora na biografia que publicou no site pessoal, Jean-Claude diga que fundou a Quantum Global em 2003, o site oficial do grupo afirma que a primeira das várias companhias que o empresário tem vindo a criar foi fundada somente em 2007. Era a Quantum Global Wealth Management, que em 2012 viria a transformar-se na Quantum Global Investment Management, com dupla sede: na Suíça e em Angola. Quando isso aconteceu — a mudança de nome — já Jean-Claude e “Zenu” tinham fundado juntos o Banco Quantum, o primeiro banco de investimento em Angola, rebatizado, em 2010, Bank Kwanza Invest.
Rafael Marques, o jornalista mais conhecido de Angola e o mais temido pelo regime, não perdeu tempo e logo em dezembro de 2012 aprofundou o passado de “Zenu”, analisando a situação num longo artigo. A Quantum Global já estava a gerir fundos de milhares de milhões de euros para o Banco Nacional de Angola e, embora na data de lançamento do Fundo o filho do Presidente tivesse dito que iria vender a sua participação acionista no Bank Kwanza, um jornal sul-africano, o “Mail & Guardian”, publicou uma entrevista em que José Filomeno dizia em contrapartida que a Quantum Global estava a gerir temporariamente a carteira de investimentos da nova entidade, até se poder abrir um concurso público para isso.
Algo estava mal explicado. O gestor desligava-se do seu antigo negócio por um lado, desfazendo-se das ações que podiam provar que era dono de um grupo privado, mas mantinha a relação com as empresas e os seus ex-sócios de uma outra forma? Como ter a garantia de que não iria usar testas de ferro para continuar como acionista oculto da Quantum e do Bank Kwanza. Seria mesmo verdade que aquele jovem sensível às “assimetrias” entre os angolanos ricos e os angolanos pobres tinha estofo para guiar o país no futuro?
O primeiro sinal de que as coisas podiam não ser assim tão promissoras de uma nova era com a subida do filho ao poder surgiu numa notícia publicada pelo Expresso logo em junho de 2013, dias depois de ter sido nomeado presidente do Fundo. “Após um prolongado impasse, que se arrastou por mais de 30 meses, a compra de 90% da Escom, empresa do grupo Espírito Santo, deverá estar finalmente concluída nos próximos dias”, dizia a notícia. “O comprador será o Fundo Soberano de Angola, agora presidido por José Filomeno dos Santos, filho do Presidente angolano.”
O dinheiro da reserva destinada a criar novas fontes de receita para o futuro era, afinal, um instrumento para resolver negócios pendentes?
No Governo acreditou-se que o Fundo iria ocupar por direito próprio o espaço que tinha sido até então um território da Sonangol — de onde acabara de sair Manuel Vicente, o peso mais pesado do regime de Angola, ao ter acumulado o poder de gerir a maior empresa pública do país com a diversificação dos ativos da petrolífera fora da esfera do sector energético e dos limites físicos do país. Talvez os ministros adivinhassem o que iria na cabeça de José Eduardo dos Santos. De que era por ali, e não pela Sonangol, que o dinheiro a sério passaria a jorrar. “A saída da Sonangol do negócio [da Escom] corresponde a uma alteração significativa da política de investimentos de Angola”, escrevia o Expresso. “Com a criação do Fundo Soberano, este passa a ser o principal instrumento do Governo para a realização de grandes operações financeiras dentro e fora do país.”
Para aliviar a pressão provocada pelos comentários cada vez mais sonoros de que o pai o tinha colocado como líder do Fundo de modo a abrir-lhe a porta da sucessão, “Zenu” tentou rebater essa ideia na imprensa. “A minha nomeação não tem nada a ver com uma campanha política de espécie alguma”, disse o delfim à Reuters, uma agência de notícias global. Queria que toda a gente o ouvisse. Era por causa do seu currículo que ele estava onde estava. “Passei a maior parte da carreira no sector financeiro, tanto na banca como nos seguros, a fazer avaliações de investimento semelhantes às que estamos a fazer.”
A justificação de que subiu exclusivamente por mérito deu a deixa para o “Financial Times” esmiuçar o assunto. Era provavelmente o mais novo no mundo à frente de um fundo soberano. E não vinha carimbado para o lugar com uma formação nas melhores escolas de gestão, porque Westminster é apenas a 100ª melhor universidade inglesa, num ranking de 127. Tirando a hipótese de ter ido para o cargo por via sanguínea, sobrava então o argumento da experiência profissional. “A biografia do senhor dos Santos diz que antes de ser nomeado para o Fundo Soberano de Angola trabalhou em várias indústrias, incluindo trading, seguros e banca e ‘ocupou cargos’ na Glencore [multinacional anglo-suíça]. Verificou-se que a experiência do senhor dos Santos na Glencore estava relacionada com um estágio através da Sonangol — a petrolífera do Estado angolano — que durou entre três e seis meses no final dos anos 90. Ninguém na Glencore conseguiu confirmar que tivesse tido um emprego lá.”
Para o bem e para o mal, agora era uma figura pública. Tudo poderia ser usado contra si. A rádio Voz da América contava como um amigo de “Zenu” tinha sido detido no sul de França quando viajava de carro, a caminho do Mónaco, com três milhões de euros na bagageira. Ia acompanhado por um funcionário do general Bento Kagamba — o controverso homem de negócios casado com uma sobrinha do Presidente, que o Ministério Público brasileiro investigou por ter montado um esquema com prostitutas de luxo entre São Paulo, Lisboa e Luanda. O amigo disse às autoridades francesas que só 100 mil euros é que eram dele. Segundo o “Maka Angola”, o site de Rafael Marques, o amigo era o principal sócio do filho do Presidente para os negócios imobiliários.
Um fundo sem fundo
A compra da Escom tal como tinha sido noticiada não chegou a acontecer, mas o episódio mostrava que talvez “Zenu” fosse facilmente permeável à forma habitual de gerir o dinheiro em Angola. Cedo a realidade se instalou no novo gabinete ocupado pelo jovem gestor de topo. Em novembro de 2013, depois de um primeiro ano em que o Fundo perdeu os primeiros 4,8 milhões de dólares, José Filomeno dos Santos formalizava um contrato com o grupo Quantum Global, “mediante o qual esta entidade deverá atuar como gestor de investimento com relação aos dinheiros e propriedades que lhe sejam designados, de tempos em tempos, pelo FSDEA, todos os investimentos e reinvestimentos feitos com esses dinheiros e propriedades e as receitas dos mesmos e todos os ganhos e lucros dos mesmos resultantes”.
Até hoje, o Fundo Soberano de Angola publicou dois relatórios anuais. Só em 2014, de acordo com o mais recente desses relatórios, divulgado há um ano, José Filomeno decidiu pagar 117 milhões de dólares em contratos feitos com seis consultoras, três delas diretamente relacionadas com o grupo Global Quantum, que cobraram 75 milhões de dólares.
Tirando as companhias facilmente identificadas com a Global Quantum, na lista surge ainda uma Stampa CG, a quem foram pagos 17 milhões. Sem referências na internet, trata-se de uma companhia incorporada no Chipre, em outubro de 2013. E que tem como administrador Jean-Claude Bastos de Morais. Uma outra empresa, a Tomé International AG, que recebeu 20 milhões do Fundo, foi fundada na Suíça em maio de 2012 como consultora especializada em energias alternativas, tendo sido comprada em dezembro de 2013. Nos registos comerciais suíços consta uma mudança de morada em janeiro e 2014. A empresa transferiu-se de cidade, de Baar para Zug, e ficou a 900 metros de distância da Quantum Global. No site oficial da Tomé International, onde passou a vir escrito que a consultora tem experiência em gerir “o desenvolvimento de infraestruturas críticas e de larga escala em todo o mundo” e que esses projetos vão da América do Sul à Europa e a África, nada diz sobre a sua estrutura acionista. Mas nos contactos, além da sede em Zug, também vem um endereço em Luanda, uma caixa postal na rua Comandante Gika. A mesma rua onde fica a sede do banco da Global Quantum.
Nem a consultora de recursos humanos contratada para dar uma ajuda no recrutamento de pessoas para o fundo escapou a esta lógica fechada. A Uniqua Consulting GmbH, que recebeu 5,8 milhões de dólares pela consultoria prestada em 2014, era até fevereiro deste ano propriedade da Quantum Global. Sendo que nos últimos quatro meses passou a ser detida por uma empresa com sede em Chipre, a Varintia Holding Limited. Cujo administrador é Jean-Claude Bastos de Morais.
Todas as seis consultoras contratadas pelo Fundo têm, pois, Jean-Claude por trás. Ou seja, dos 121 milhões de dólares pagos em consultorias, em 2014, 117 milhões foram parar ao amigo e antigo sócio de “Zenu”. Uma outra sociedade da Global Quantum recebeu, além disso, um adiantamento de 7,2 milhões de dólares, a propósito de um contrato assinado em maio de 2014. Eram as duas primeiras prestações para uma consultoria no valor de 11,6 milhões e com a duração de três anos que “visa o desenvolvimento de um modelo econométrico para simulação de aspetos da economia nacional que permita aos economistas especialistas do Fundo compreenderem de forma eficaz os processos fundamentais que afetam a economia nacional”.
Por cima desses valores todos, houve ainda 23 milhões de dólares atribuídos pelo Fundo a uma organização chamada African Innovation Foundation (AIF) “para o financiamento de projetos de cariz social”, sendo que foram pagos 11 milhões à cabeça. “Os acordos de doação celebrados entre as partes preveem a realização de um total de dez projetos no âmbito do Programa de Impacto Social para Angola, o qual será coordenado pela AIF. No âmbito dos acordos de doação celebrados entre as partes, a AIF disponibilizará ao Fundo relatórios de atividades semestrais e anuais sobre cada um dos projetos a desenvolver.” Esses relatórios não estão, no entanto, publicados pelo Fundo. E quem é que está por trás da African Innovation Foundation? Jean-Claude Bastos de Morais.
“Tudo o que sai da cabeça de ‘Zenu’, sai da cabeça de Jean-Claude”, acredita Rafael Marques. O antigo sócio de José Filomeno no Bank Kwanza Invest considera-se, ele próprio, uma “máquina de ideias”, chegando a assumir-se numa entrevista a um jornal suíço como “o cérebro” do Fundo Soberano de Angola, o homem que deu a ideia para que ele fosse criado.
Independentemente de quem foi a ideia, o certo é que num ano, em vez de aumentar de valor, o Fundo perdeu 157 milhões de dólares. Pela pouca informação que existe, até ao final de 2014, o Fundo tinha 2,7 mil milhões aplicados em obrigações e títulos do tesouro, sendo que a maioria desse dinheiro serviu para comprar títulos com maturidades superiores a um ano. Menos de 280 milhões de euros foram jogados na bolsa. Tudo somado, 3 mil milhões de dólares de capital investido deram 15,6 milhões de proveitos. Ou seja, tiveram 0,52% de rentabilidade, apesar de todo o dinheiro extra gasto em consultorias de gestão. E nunca entrou um barril de petróleo a mais que fosse das receitas do Estado desde que o Fundo foi lançado.
Em abril deste ano, os ‘Panana Papers’, a maior fuga de informação de sempre, levaram uma rede africana de centros de jornalismo de investigação, a ANCIR, a publicar no Expresso e noutros jornais um artigo onde se revelava os bastidores das relações entre “Zenu” e Jean-Claude com um ex-diretor da Quantum Gobal e atual diretor do Bank Kwanza, Marcel Krüse, e com Ernst Welteke, administrador de ambas as entidades e ex-presidente do banco central alemão, o Bundesbank, de onde foi forçado a demitir-se. O artigo abordava o pagamento do Fundo de Soberano de Angola numa única transação de 100 milhões de dólares a uma empresa chamada Kijinga, bem como outros pagamentos a companhias em paraísos fiscais criadas pela operadora de offshores Mossack Fonseca, cujos beneficiários finais estão ainda por descobrir. “O sistema estabelecido pelos arquitetos responsáveis pelo FSDEA e o Banco Kwanza é um esquema perfeito”, escrevia o ANCIR. “Há um conselheiro financeiro, uma fonte de fundos, bancos privados e inúmeros beneficiários desconhecidos. As possibilidades de criar atividades ilícitas, especialmente no que toca a capital político, são tão ilimitadas quanto as formas de as levar a cabo.”
O cenário promissor anunciado em 2012 não está a acontecer. Jean-Claude parece ser apenas o mais visível dos calcanhares de Aquiles que o filho varão do Presidente tem vindo a colecionar. Somam-se as suspeitas de testas de ferro. O amigo Jorge Gaudens Sebastião comprou 49% do Standard Bank alegadamente em seu nome, além de o representar de forma não assumida como investidor no complexo de edifícios que está a ser construído na ilha da Chicala. Joaquim Sebastião, antigo diretor do Instituto Nacional de Estradas (INEA) e atual presidente do Benfica de Luanda, é um dos outros nomes de que se fala. Consta que foi a algumas empresas fictícias de “Zedu” que terá entregue mais de 200 milhões de dólares em empreitadas sobrefaturadas.
Armando Manuel, que assumiu a pasta das Finanças em 2012 porque “Zenu” assim o quis, segundo uma fonte do palácio presidencial, tornou-se entretanto um dos seus mais fiéis aliados. Com Óscar Tito Fernandes, outro jovem empresário, formam um trio com várias ramificações empresariais. A amizade com o ministro terá estado na origem de um negócio que está a provocar uma onda de indignação pública.
O caso envolve a compra pelo Estado de um edifício de 35 andares por 115 milhões de dólares, apesar de o seu custo total ter sido de 40 milhões, segundo dados públicos da Mota-Engil, a construtora da obra. A 12 de setembro de 2014, José Eduardo dos Santos instruiu o ministro das Finanças que procedesse à aquisição do edifício através de um contrato de compra e venda entre o Governo e a Imob Angola — Empreendimentos Imobiliários, Lda., uma empresa detida em 45% por Maíra Isungi Campos Costa dos Santos, mulher de José Filomeno dos Santos, e em 10% por Óscar Tito Fernandes. Os restantes 45% pertenciam ao brasileiro Valdomiro Minoro, mas foram vendidos à Incasa, propriedade, em partes iguais, de Óscar Tito Fernandes e do brasileiro António Perruci Alves.
Dez dias depois da compra do prédio pelo Ministério das Finanças, a titularidade da Imob Angola passaria para as mãos de uma empresa-fantasma, a Bertoli Investment Participações, cujas sócias — Maria Isabel João e Domingas Zanda Muenho — são duas figuras desconhecidas registadas no notariado sem que os seus endereços estejam completos.
O tapete vermelho estendido a José Filomeno tem vindo a transformar-se, aparentemente, numa armadilha. Em Luanda, pessoas que têm acompanhado de perto o drama da sucessão de José Eduardo admitem como pouco provável a hipótese de ser “Zenu” a suceder-lhe. Não necessariamente por causa dos rumores de se ter envolvido em desvios do dinheiro do Estado. “Na verdade, não revela inclinação para a coisa, é muito inseguro e o pai não parece dar mostras de lhe depositar confiança para o substituir”, admite uma fonte da família.
“Zenu” sabe que, se quiser sobreviver, terá de ir mais longe do que já foi e entrar diretamente na política. “Não há futuro empresarial para os nossos príncipes, sem cobertura política” — confessa Jeremias Félix, um informático, militante do MPLA, desencantando com a atual liderança de Eduardo dos Santos. Mas para isso é preciso que José Filomeno chegue a tempo. A combinação dos dados, outrora propícia, mudou.
O pai já confirmou que vai fazer o que tinha dito que não ia fazer, recandidatando-se a Presidente nas eleições gerais de 2017, quando completar 75 anos, na esperança de aguentar as pontas do regime enquanto Angola não recuperar um pouco da grave crise financeira e económica que está a assolar o país. E a única irmã que lhe podia fazer sombra acabou de assumir a administração da Sonangol, num anúncio inesperado feito em maio e que pôs fim à teoria de que Isabel dos Santos nunca iria ocupar cargos públicos. “Zenu”, que tinha tudo para ser ele o sucessor, tem agora tudo para não o ser.
Com Gustavo Costa em Luanda
Veja também: Esta é uma das sete maravilhas do país
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 9 junho 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ