terça-feira, 26 de dezembro de 2017

“Um jovem chegado a um campo de prisioneiros achou nojento o cheiro de corpos queimados. Depois tinha tanta fome que era como um barbecue”


GETTY IMAGES

Contaram-lhe histórias duras, os dias nos campos de prisioneiros, as privações por que passaram e como fugiram da Coreia do Norte: Jieun Baek, investigadora da Universidade de Harvard, falou com mais de um centena de desertores para escrever “North Korea’s Hidden Revolution: How the Information Underground Is Transforming a Closed Society”. Em entrevista ao Expresso, explica o que ouviu e conta o que ela própria viu numa viagem “de partir o coração”

Que revolução escondida é esta que dá nome ao seu livro, “North Korea’s Hidden Revolution”?
Os cidadãos estão completamente proibidos de acederem a informação de fora sem que o Governo de Pyongyang tenha autorizado. É considerado traição e crime contra o Estado. Esta é uma das muitas formas de o regime controlar os norte-coreanos. Apesar dos risco de serem apanhadas, as pessoas continuam a consumir e a exigir informação de fora.
Para escrever o livro, falou com quase uma centena desertores da Coreia do Norte. Explicaram-lhe porque fugiram?
Há várias razões, a principal talvez seja as dificuldades económicas, porque lá não conseguem sobreviver. Depois, há o desejo de viverem sob uma política mais livre; também arriscam a fuga quando sabem que estão prestes a serem condenados depois de serem apanhados a fazer algo ilegal (ver um filme ou uma série); e é frequente escaparem para irem ter com familiares desertores.
Jieun Baek é investigadora no Centro Belfer de Ciências e Relações Internacionais da Universidade de Harvard
Jieun Baek é investigadora no Centro Belfer de Ciências e Relações Internacionais da Universidade de Harvard
D.R.
Para escrever o livro, falou com quase uma centena desertores da Coreia do Norte. Explicaram-lhe porque fugiram?
Há várias razões, a principal talvez seja as dificuldades económicas, porque lá não conseguem sobreviver. Depois, há o desejo de viverem sob uma política mais livre; também arriscam a fuga quando sabem que estão prestes a serem condenados depois de serem apanhados a fazer algo ilegal (ver um filme ou uma série); e é frequente escaparem para irem ter com familiares desertores.
Referiu que as pessoas são castigadas. De que tipo de castigos estamos a falar quando alguém é apanhado a ver um filme, por exemplo?
Isso depende muito. O primeiro castigo é monetário. Uma espécie de multa que, se a pessoa tiver sorte, pode conseguir subornar o polícia. Mas há também multas muito altas, que correspondem a seis ou 12 meses de salário. Estes são os castigos menos duros. Depois, as pessoas podem ser mandadas para os campos ou centros de detenção, o mais frequente são as penas de seis meses a um ano nos campos de prisioneiros políticos. Podem ser muitos mais anos se a pessoa for apanhada a distribuir os filmes e, se for considerado um ato excecionalmente criminoso, então a pena é execução pública.
FOTO KIM WON-JIN/AFP/GETTY IMAGES
Quais as condições em que as pessoas vivem nos campos-prisão?
Provavelmente são as piores do mundo. Usam as matrizes dos campos de concentração soviéticos, construídos nos anos 1950 e 1960. Há vários tipos de campos, mas quem vai para os piores são os condenados por crimes relacionados com a partilha de informação, os desertores apanhados na fuga e os cristãos. Não há respeito pelos direitos humanos. Aliás, direitos humanos é algo que não existe. Basicamente, as pessoas trabalham até à morte: 18 horas de trabalho por dia, fome, sem acesso a cuidados médicos – por exemplo, numa mulher grávida, o bebé escorrega-lhe literalmente pelas pernas sem ninguém dar por nada -, tortura, abusos sexuais a mulheres e homens… Há quem compare com os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial ou com os presos políticos na China, acho que esta é uma situação particularmente terrível. Não há saída. Os desertores diziam-me que a tortura física era mesmo horrível, mas pior era psicologicamente. Quando a mente quebra, a pessoa percebe ‘vou morrer em breve’. Um jovem contou-me que foi parar aos campos com 15 anos. Sentia o cheiro dos corpos queimados, achava nojento. Três anos depois, tinha tanta fome e estava tão habituado ao ambiente que era como um delicioso barbecue. A cabeça muda completamente para conseguirem sobreviver.
Qual o objetivo de castigos tão duros para algo que nos parece tão banal como ver um filme?
O objetivo imediato é tentar prevenir que outras pessoas façam os mesmo. A longo prazo, serve para controlar o que os cidadãos pensam. Se controlam aquilo que as pessoas pensam e acreditam, então o Governo pode fazer tudo aquilo que quiser. Por exemplo, o Governo diz aos norte-coreanos que foi a Coreia do Sul e os EUA que começaram a Guerra da Coreia. Mas isso não é verdade: foram os norte-coreanos que invadiram o sul. Todos os livros de história e filmes mostram sempre esta versão e a maior parte das pessoas acredita. De certa forma, acaba por justificar o dinheiro que o regime gasta em armamento, pois dizem que querem evitar outro conflito. Mesmo que isso significa que boa parte da população esteja a morrer à fome.
Que outras mentiras contam às pessoas?
Que os Estados Unidos da América estão quase a entrar em conflito com a Coreia do Norte, os direitos humanos não são violados… Até as biografias dos líderes são alteradas, dizem que nasceram de Mao Tsé-Tung, para criar uma espécie de linhagem de divina. Outra mentira frequente é que a Coreia do Sul é muito, muito pobre. Tentam passar a imagem de que os outros países são mais pobres do que a Coreia do Norte.
É quase como uma lavagem cerebral?
[Pausa] Sim, é. São níveis extremos de propaganda.
FOTO KIM WON-JIN/AFP/GETTY IMAGES
A Coreia do Norte é uma sociedade isolada e parada no tempo?
Sim e não. Por um lado, os equipamentos e armamento são antigos, muito material soviético e em segunda mão. As roupas que as pessoas usam são muito o estilo do leste europeu, a forma de falar é a mesma que era usada pelos coreanos há 80 anos. Neste sentido, estão parados no tempo. Não é um país que se está a modernizar. Por outro lado, apesar das sanções e do orçamento limitado, foram capazes de desenvolver armas nucleares muito rapidamente. Definitivamente isso não é obra de uma tecnologia antiquada.
Você tem descendência norte-coreana - os seus avós deixaram a região - e em 2013 esteve no país, numa visita organizada de uma semana... 
Foi a única vez que estive na Coreia do Norte. Podemos ter tantas abordagens a falar desta viagem, mas essencialmente é de partir o coração. Não quero parecer hipócrita ao dizê-lo, mas fui numa visita organizada embora ao mesmo tempo seja contra a este tipo de viagens. Visito com alguma frequência a Coreia do Sul e ao olhar para os norte-coreanos só pensava que eram pessoas que partilhavam o mesmo ADN, no entanto a má nutrição a que estão sujeitos afetou a sua genética - estão mais pequenos e baixos.
FOTO ED JONES/AFP/GETTY IMAGES
O que viu?
Vi sobretudo Pyongyang, a capital, e cidades na zona ocidental. Se pegarmos em cem pessoas de Lisboa, todas vão ser diferentes. Se pegarmos em cem pessoas de Pyongyang, também são diferentes: vemos pessoas a rir, outras trabalhar, umas mais stressadas, algumas a flirtar… São pessoas. Ao mesmo tempo é assustador porque ninguém pode dizer algo que não esteja autorizado a dizer. Estão constantemente a ser observados. Se fizermos alguma pergunta política, se perguntarmos o que acham do líder, a resposta vai ser exatamente a mesma: é um deus, é maravilhoso. Acreditam realmente naquilo que dizem? Ninguém sabe… A História mostra-nos que os desertores da Coreia do Norte não acreditam no regime, por isso a minha questão é: quantas mais pessoas vivem naquele país e não acreditam no que estão a dizer? Nunca ninguém saberá.
Quais são as regras que os turistas têm de seguir?
Temos de ficar sempre com guias turísticos, não podemos falar com os norte-coreanos, não podemos fotografar equipamentos militares, as fotos são permitidas em alguns locais. Em Pyongyang, a cidade está cuidadosamente construída, é possível fotografar quase tudo.
O que significa ser uma cidade “cuidadosamente construída”?
É uma cidade para mostrar às elites. Do lado de fora tudo tem bom aspeto mas por dentro não funcionam. A maioria dos edifícios nem tem elevador, mesmo aqueles com 30 andares. O fornecimento de eletricidade não está sempre garantido… É uma cidade show off.
Última questão: qual a sua perspetiva da forma como o mundo têm lidado com a Coreia do Norte? A Coreia do Norte deveria ser excluída ou incluída?
Acredito que o regime totalitário não é bom para ninguém. Não digo que a informação leve a uma mudança do regime, mas os norte-coreanos estão oprimidos há tanto tempo que precisam de ser os autores do seu futuro. Este país não precisa de um outro grande poder a dizer-lhes o que vem a seguir. Mas para os cidadão tomarem uma decisão – seja manter o regime ou não - precisam de mais informação. Se deve ser excluída ou incluída pelos outros países? Concordo com as conversações e negociações, no entanto a Coreia do Norte tem um historial de não cumprir os seus compromissos. É bom trazê-la para a discussão enquanto paralelamente se continua a fazer pressão ao regime.
Vi sobretudo Pyongyang, a capital, e cidades na zona ocidental. Se pegarmos em cem pessoas de Lisboa, todas vão ser diferentes. Se pegarmos em cem pessoas de Pyongyang, também são diferentes: vemos pessoas a rir, outras trabalhar, umas mais stressadas, algumas a flirtar… São pessoas. Ao mesmo tempo é assustador porque ninguém pode dizer algo que não esteja autorizado a dizer. Estão constantemente a ser observados. Se fizermos alguma pergunta política, se perguntarmos o que acham do líder, a resposta vai ser exatamente a mesma: é um deus, é maravilhoso. Acreditam realmente naquilo que dizem? Ninguém sabe… A História mostra-nos que os desertores da Coreia do Norte não acreditam no regime, por isso a minha questão é: quantas mais pessoas vivem naquele país e não acreditam no que estão a dizer? Nunca ninguém saberá.
Quais são as regras que os turistas têm de seguir?
Temos de ficar sempre com guias turísticos, não podemos falar com os norte-coreanos, não podemos fotografar equipamentos militares, as fotos são permitidas em alguns locais. Em Pyongyang, a cidade está cuidadosamente construída, é possível fotografar quase tudo.
O que significa ser uma cidade “cuidadosamente construída”?
É uma cidade para mostrar às elites. Do lado de fora tudo tem bom aspeto mas por dentro não funcionam. A maioria dos edifícios nem tem elevador, mesmo aqueles com 30 andares. O fornecimento de eletricidade não está sempre garantido… É uma cidade show off.
Última questão: qual a sua perspetiva da forma como o mundo têm lidado com a Coreia do Norte? A Coreia do Norte deveria ser excluída ou incluída?
Acredito que o regime totalitário não é bom para ninguém. Não digo que a informação leve a uma mudança do regime, mas os norte-coreanos estão oprimidos há tanto tempo que precisam de ser os autores do seu futuro. Este país não precisa de um outro grande poder a dizer-lhes o que vem a seguir. Mas para os cidadão tomarem uma decisão – seja manter o regime ou não - precisam de mais informação. Se deve ser excluída ou incluída pelos outros países? Concordo com as conversações e negociações, no entanto a Coreia do Norte tem um historial de não cumprir os seus compromissos. É bom trazê-la para a discussão enquanto paralelamente se continua a fazer pressão ao regime.

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