Em 7 de julho de 2017, a BBC Brasil publicou um texto apresentando fotos e vídeos que seriam de autoria de um brasileiro que se apresentava para seus mais de 100 mil seguidores no Instagram como Eduardo Martins, fotógrafo da ONU. Após a publicação do conteúdo, surgiram suspeitas não apenas sobre a autoria das imagens enviadas como também sobre a verdadeira identidade de Martins. A BBC Brasil começou a investigar o caso há um mês e, pouco a pouco, os elementos de uma história construída por dois anos começaram a ruir. Diante das suspeitas e do risco de violação de direitos autorais, o conteúdo original foi retirado do ar. Pedimos desculpas a nossos leitores pelo engano. O caso servirá para reforçar nossos procedimentos de verificação. Conheça a história:
A história era de grudar os olhos na tela: um fotógrafo brasileiro, jovem, loiro e bonito, que havia superado abusos na infância e uma leucemia no início da vida adulta e se lançara às principais zonas de guerra do mundo, entre elas Iraque e Síria, para registrar o sofrimento humano. O resultado do trabalho eram imagens com alma, que poderiam estampar as páginas de qualquer publicação jornalística do mundo. O problema é que grande parte desta história era mentira.
Eduardo Martins, suposto paulistano de 32 anos, se apresentava em seu perfil no Instagram, onde tinha 127 mil seguidores, como fotógrafo da Organização das Nações Unidas em campos de refúgio. Descrevia seu cotidiano com grandiloquência heroica.
"Uma vez, durante um tiroteio no Iraque, eu parei de fotografar para ajudar um menino que tinha sido atingido por um molotov e o retirei da zona de tiro. Eu paro de ser fotógrafo para ser um ser humano", afirmou em uma entrevista para a publicação estrangeira Recount Magazine, em outubro de 2016.
O depoimento vinha ricamente ilustrado por imagens de conflitos em Gaza, na Síria, no Iraque - as mesmas que ele postava em seu Instagram.
Ali dizia ainda que gostava de surfe - intercalava a publicação de fotos sangrentas a supostas imagens suas sobre pranchas em praias que dizia serem na Austrália. Entre seus feitos, relatava ter até mesmo dado aulas do esporte a crianças na Palestina.
A cada reportagem ou foto que emplacava, Eduardo procurava novos veículos que publicassem seu material. Usava como provas de sua autenticidade o que já havia saído sobre ele na imprensa, além da grife ONU. No Instagram, publicava reproduções de páginas que teriam usado seu trabalho, como o jornal americano The Wall Street Journal.
Para aumentar a veracidade do que dizia, deixava públicos comentários calorosos de "amigos". Entre os cumprimentos estavam elogios de um suposto repórter do The Wall Street Journal chamado Thomaz Griffin, por uma dessas publicações na imprensa internacional. A redação do diário americano afirmou à BBC Brasil que não emprega nenhum jornalista com esse nome.
Ao mesmo tempo, por meio do Instagram, Eduardo se aproximou e conquistou a confiança de pessoas reais, conhecidas no meio.
Foi o caso do fotógrafo brasileiro Marco Vitale, que chegou a recomendar suas fotografias para editores de diversos veículos nacionais. Ele foi virtualmente apresentado a Eduardo por uma pessoa real, que teria sido namorada do fotógrafo. À BBC Brasil ele se questionou se seria "o culpado" por promovê-lo no país.
Outra profissional renomada que mantinha contato frequente com ele era a romena radicada nos EUA Diana Alhindawi. Ela contribui frequentemente para o jornal americano The New York Times a partir de zonas de guerra e, em conversa com a reportagem, se mostrou surpresa com as suspeitas que recaíam sobre Eduardo.
Em suas postagens de Instagram, Eduardo se mostrava intensamente envolvido no cotidiano das guerras. Chegou a lamentar a morte de um fotógrafo amigo identificado na rede com o perfil @shadikadar, vitimado em um ataque a bomba na Faixa de Gaza. O luto foi apoiado por diversos comentaristas, que ignoravam que @shadikadar era provavelmente mais uma mentira do suposto fotógrafo.
Não existe na internet qualquer outra menção ao nome além daquela feita na mensagem fúnebre do próprio Eduardo.
Em junho deste ano, ele chegou à BBC Brasil. Ofereceu sua história e suas fotos gratuitamente. Recusou-se a falar por telefone, sob a justificativa de que estava no front em Mossul, no Iraque, espaço disputado pelas forças de segurança do país e pelo grupo extremista autodenominado Estado Islâmico. Mandava mensagens de voz por WhatsApp, sempre como arquivos de áudio, nunca instantaneamente gravadas.
A BBC Brasil publicou uma entrevista acompanhada de um vídeo composto de fotos enviadas por ele. No material, que foi retirado do ar nesta sexta-feira, ele dizia que seu trabalho era movido pela necessidade de alertar o mundo sobre os horrores da guerra.
A suspeita de que Eduardo é, na verdade, um fake, chegou à reportagem após ele ter abordado na internet a jornalista Natasha Ribeiro, colaboradora da BBC Brasil que vive no Oriente Médio e também assina esta reportagem. Ela desconfiou de seu discurso.
As desconfianças aumentaram quando, no Iraque real, palco das cenas de guerra que Eduardo afirmava retratar, jornalistas brasileiros se deram conta de que ele não era conhecido ali. Ninguém, entre autoridades e organizações não governamentais na Síria ou no Iraque, dizia já tê-lo visto ou conhecido.
Algo que seria impossível para alguém que havia sido protagonista, este ano, de uma reportagem da Vice brasileira, cujo título era "No front com os Peshmerga" (o conteúdo foi retirado do ar nesta quinta-feira).
De modo gráfico, o texto descrevia as cenas da morte de seis soldados do exército curdo e de 14 combatentes do Estado Islâmico para arrematar: "Essa era a rotina tensa e intensa que Eduardo viveu por 20 dias no front iraquiano, à convite de um comandante dos Peshmerga que conheceu em Sinjar, cidade fronteiriça ao Curdistão sírio. Para acompanhar o exército, ele virava madrugadas em claro, muitas vezes o dia inteiro na ativa. Em meio ao combate, testemunhava a gana com que os curdos enfrentam o Estado Islâmico".
A história, no entanto, não se sustenta. Outros dois jornalistas brasileiros que estiveram com os peshmerga no período em que Eduardo dizia também estar ali afirmaram à BBC Brasil que jamais conheceram o suposto fotógrafo.
Para um deles, Eduardo chegou a fazer uma proposta, em maio deste ano, via Instagram: "Tô produzindo um documentário com a Netflix sobre Mossul e queria saber se vc tem interesse de participar. Abraços irmão." Consultada pela BBC Brasil, a Netflix informou em nota que o trabalho não havia sido encomendado: "Checamos com a equipe e não temos nenhuma informação sobre o assunto no momento".
Procurada pela reportagem, a Vice brasileira disse que não se pronunciaria sobre o tema por enquanto.
Concomitantemente, Fernando Costa Netto, fotógrafo e sócio da casa de exposições DOC Galeria, estava em contato com Eduardo, que dizia estar no Iraque. "Eu estava organizando uma exposição de fotos de brasileiros em área de conflito e estava em contato com ele. Do nada, ele sumiu, por mais de uma semana. Achei que ele tivesse sido sequestrado pelo Estado Islâmico, contatei os colegas brasileiros no Iraque. Quando começamos essa movimentação de busca por ele, ele reapareceu dizendo ter tido um mero problema de conexão de internet", afirmou Costa Netto à BBC Brasil. Ele soube das suspeitas sobre a identidade de Eduardo por meio da reportagem.
Não foi um desencontro. Eduardo Martins não era quem dizia ser nem esteve onde dizia ter estado. Interpelado pela reportagem da BBC Brasil em agosto, por mensagem de WhatsApp, ele reafirmou sua ocupação: "Sou humanitário (voluntário) em campo da UN (United Nations) eu trabalho na organização dos campos de refugiados", disse.
A posição seria estratégica para que ele pudesse produzir as imagens. Mas suas credenciais eram falsas. "Checamos e não conseguimos encontrar qualquer registro de Eduardo tendo trabalhado para o Alto Comissariado da ONU para Refugiados. Estamos pesquisando o que podemos fazer sobre as afirmações que ele faz a nosso respeito", afirmou à BBC Brasil Adrian Edwards, chefe de imprensa da organização em Genebra.
Em uma foto em que aparecia sorridente, ladeado por crianças, Eduardo Martins afirmava estar em um abrigo para menores soropositivos no Quênia. Consultada, a organização Living Positive, responsável pelo abrigo, afirmou que nenhum brasileiro com aquele nome ou aparência jamais visitou suas dependências.
"Depois de olhar para essa foto cuidadosamente, tenho certeza absoluta que nós jamais vimos essa pessoa", afirmou Mary Wanderi, fundadora do abrigo, à BBC Brasil.
Em 2014, a história de Eduardo esbarrou na de outro correspondente brasileiro, que preferiu não ser identificado. Desta vez, o episódio teria ocorrido na Síria.
"Recebi uma ligação de uma moça que se dizia namorada do Eduardo. Ela estava desesperada, dizendo que ele estava na Síria, com um grupo de elite do Exército americano, quando foi ferido. A história era surreal, já que não tinha ninguém do Exército americano no país, mas mesmo assim entrei em contato com meus tradutores e contatos. Não havia qualquer evidência de que ele já tivesse estado ali. Logo depois ele mesmo me mandou uma mensagem no celular dizendo que a namorada tinha se precipitado e se enganado, mas que nada havia acontecido", afirmou o jornalista.
A BBC Brasil chegou a localizar a suposta namorada. A reportagem apurou que ao menos outras cinco mulheres, todas bonitas e bem-sucedidas em seus campos, se relacionaram amorosamente com Eduardo por redes sociais. Nenhuma delas o encontrou pessoalmente. Todas pediram que suas identidades fossem mantidas em segredo.
Se Eduardo Martins não era autor das fotos, de quem eram as imagens que ele roubava? Há dez dias, a BBC Brasil entrou em contato com o fotógrafo americano Daniel C. Britt. A suspeita era de que ao menos parte do material usado pelo suposto profissional pertencesse a ele. Os direitos autorais das fotos, no entanto, não podiam ser rastreados por ferramentas de busca de imagens porque Eduardo fazia pequenas alterações nelas.
Naquele momento, Britt se disse ocupado com o casamento de um irmão e não chegou a examinar os arquivos mandados pela reportagem. Nesta sexta, no entanto, ele retomou o contato em outros termos: "Isso é o que eu sei: Eduardo Martins tem roubado fotos de vários sites, incluindo o meu próprio, e revendido por meio das agências Getty Images e Zuma Press".
Para esconder o roubo intelectual, Eduardo Martins invertia as fotos, de modo que o próprio Britt demorou para suspeitar de que era vítima do fake.
A BBC Brasil localizou ao menos nove fotos de Britt que foram usadas por Eduardo. No dia 27 de maio do ano passado, o The Wall Street Journal publicou uma imagem de rebeldes sírios na cidade de Azaz com o crédito da agência de fotógrafos independentes Zuma Photo. No Instagram, Martins afirmou que a imagem era sua. No entanto, ela foi feita por Daniel C. Britt no dia 28 de outubro de 2013 na cidade de Hama, também na Síria. A mesma imagem foi publicada pelo site do tradicional jornal russo Izvestia.
Na entrevista para a "Recount Magazine", são de Daniel Britt três das 13 imagens creditadas ao suposto paulistano. Nas legendas, os locais onde as imagens foram feitas estão trocados. Um exemplo: Eduardo publicou a cena de um "garoto palestino gritando depois de um confronto com as forças de Israel". A mesma imagem aparece no site oficial do americano Britt com uma legenda que informa que o garoto é iraquiano, da cidade de Kirkuk - a cena foi registrada em 13 de agosto de 2010.
Questionada sobre a distribuição de material de outro profissional com crédito ao fake brasileiro, a Getty Images afirmou, em nota, que "Eduardo Martins, a pessoa em questão, foi identificado como um colaborador e fornecedor de conteúdo de um de nossos parceiros que já foi notificado sobre esta infração. Enquanto trabalhamos em conjunto com todos os nossos departamentos internos para esclarecer urgentemente esta questão, estamos retirando do ar todo o material envolvido".
Já a Zuma Press escreveu à BBC Brasil, por email, que recebeu imagens com créditos para Eduardo Martins de uma outra "respeitada" agência, a NurPhoto. "Ficamos sabendo desta situação hoje, e depois de contatar a provedora da imagem, a NurPhoto, estamos removendo as imagens em questão com crédito para 'Eduardo Martins' - e pedimos às nossas agências parceiras para fazer o mesmo".
A Nurphoto não respondeu até a publicação desta reportagem. A BBC Brasil não localizou os contatos dos responsáveis pela Recount Magazine nem conseguiu falar com Eduardo nesta sexta-feira.
No fim de agosto, Fernando Costa Netto, inadvertidamente, alertou Eduardo Martins, via WhatsApp, que circulava a suspeita de que ele fosse um fake. Ato contínuo, o suposto fotógrafo deletou sua página no Instagram e anunciou, por número já deletado do WhatsApp, que desapareceria, sem que que a reportagem pudesse descobrir sua real identidade ou quem é o belo loiro retratado nas fotos que ele se dizia retratado.
"Fala irmão. Tô na Austrália, tomei a decisão de passar um ano em uma van rodando o mundo. Vou cortar tudo inclusive internet, tb (também) deletei o IG (Instagram). Quero ficar em paz. A gente se fala qd (quando) eu voltar. Abraços". E na sequência: "Valeu. Vou deletar aqui o zap. Fica com Deus".
*Colaboraram Flávia Milhorance, da BBC Brasil em Londres, e Mariana Alvim e Leandro Machado, da BBC Brasil em São Paulo
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