quarta-feira, 26 de julho de 2017

Antes da independência, a vida em África era assim


Antes da independência, a vida em África era assim

21.05.2017 12:38 por Rita Garcia9541
Tinham boas casas com espaço, jardim e criados para os servir. O trabalho era exigente, mas ninguém dispensava um copo ao cair da tarde. A era dourada para os portugueses acabou há 40 anos. Leia o trabalho publicado na SÁBADO a 28 de Outubro de 2010

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O acampamento estava a acabar de ser montado quando o empresário Manuel Vinhas chegou a Serpa Pinto (actual Menongue, Leste de Angola) com a mulher e os oito filhos. A fogueira já ardia e as tendas de campanha verdes tinham sido distribuídas pelo terreno junto ao rio Kwelei. A família viajara de propósito de Lisboa para quatro dias de safari, mais dois de caminho. À excepção do patrão das cervejas Cuca, que passava seis meses por ano em Angola, viviam todos na Metrópole. Saíram de Luanda de avião em direcção a Nova Lisboa (Huambo).A partir daí, fizeram 150 quilómetros até Silva Porto (Cuíto) e mais 500 até ao destino em dois jipes Willys, sempre de janelas abertas, e num velho Hudson americano que sofria furos sucessivos. O camião da logística levava um dia de avanço. Para quase todos os miúdos, era o primeiro contacto com a vida selvagem. 

A alvorada ficou marcada para as 4h. "Quinze minutos depois estávamos a tomar o pequeno-almoço: bacalhau cozido com batatas, servido em pratos de alumínio", diz à SÁBADO Manuel Vinhas filho, 61 anos. Arrancaram antes do nascer do sol, com um farnel leve. Mais tarde não faltaria caça para comer. Até porque, com a espingarda Winchester Magnum 3.75, Manuel Vinhas era um caçador infalível. Apanharam de tudo e muito: impalas, palancas, pacaças (uma espécie de búfalo mais pequeno e encarnado), rolas, galinhas do mato e pombos. Parte da carne assava-se no mato e só se levava para o acampamento o necessário para as refeições. O resto era entregue aos indígenas. Foi assim durante quatro dias. A fogueira só se apagou quando a família partiu de regresso a Luanda.
Nem todos os portugueses que viviam em Angola e Moçambique antes da independência das colónias e gostavam de caçar participavam em safaris deste tipo. O próprio Manuel Vinhas, que se tornou um dos homens de maior prestígio em Angola, não fazia muitos por ano. Chegou a ir de propósito a Moçambique para atirar sobre elefantes e leões. Mas, na maioria das vezes, escolhia destinos mais próximos. A reserva de Quiçama, alguns quilómetros a norte de Luanda, era um dos mais populares.

Os dias que pareciam sem fim, os grandes espaços, o cheiro da terra vermelha e o estilo de vida informal e descontraído levaram Manuel Vinhas a apaixonar-se por Angola na primeira visita – de tal maneira que dizia que era ali que queria morrer. O empresário partiu no início dos anos 50,na sequência de desentendimentos com Salazar. O ditador opunha-se aos seus planos de expansão. Quando chegou, começou com as cervejas. "Tinha fazendas no Luso (Luena), plantações de café, fábricas de plástico e vidro, importava vinho. No fim eram mais de 50 empresas. Em 1956, introduziu a cerveja em Angola", lembra Manuel Vinhas filho, 61 anos. Ele e os irmãos ainda deram opinião sobre o nome da marca. "Uma das hipóteses era Kuka, com k, mas nós dissemos-lhe que fazia lembrar Ku Klux Klan." Ficou Cuca. E Cuca passou a ser sinónimo de cerveja.

O fim de tarde não era o mesmo quando não se ia beber um copo. Patrões e empregados podiam sentar-se lado a lado para tomar um whisky com soda, um gin tónico ou uma imperial no Baleizão (conhecido, sobretudo, pelos gelados), no Calhambeque ou no bar do Hotel Continental, na baixa de Luanda. Tanto em Angola como em Moçambique, uma bebida nunca vinha só. "Pedia-se uma cerveja e punham em cima da mesa um prato de camarão a acompanhar como se fosse tremoços. Não se pagava mais por isso", recorda José Quental, 72 anos, que nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo, capital de Moçambique) e mais tarde se tornou piloto de aviões civis. Durante a guerra, fez mais de 400 transportes de feridos durante a noite, quando a Força Aérea não voava, no Norte do território. "No [restaurante] Oceania, em cima da praia na Ponta Gêa (Beira), ainda traziam tremoços, carne com molho, pão e amendoins", conta Manuel Frade, de 64 anos, ex-militar e filho de uma das famílias mais tradicionais da província.
LuxosUma cerveja nunca vinha só: trazia pelo menos um prato de camarões grátis a acompanhar
O pai era delegado da TAP em Lourenço Marques e isso dava-lhe acesso à elite. Instalou-se com a mulher e os filhos no Sommerschield, um dos bairros mais chiques da cidade. "Havia um meio snobe muito restrito. Uns eram banqueiros, outros moçambicanos brancos ou negros que subiam na vida." Apesar de a sociedade ser mais fechada do que a angolana, os Frade foram bem recebidos. Relacionavam-se, entre outros, com Jorge Jardim, pai das irmãs Jardim, e tinham acesso às festas no Palácio quando Baltasar Rebelo de Sousa foi governador.

Para estas famílias, o Grémio Civil, o clube mais exclusivo da cidade, era um ponto de encontro. "Ia-se à piscina e jogava-se canasta e bridge a dinheiro. Aos sábados à noite havia póquer. Havia gente a perder muito." A maior parte dos jovens preferia fazer remo e vela no Clube Naval, natação na Associação dos Velhos Colonos, e jogar râguebi, basquetebol ou futebol no Desportivo, no Sporting ou no Benfica de Lourenço Marques. Muitos iniciavam-se na caça submarina e pescavam garoupas de grande porte. Para apanhar lagostas só era preciso jeito, tal era a abundância no mar.


A relação entre os rapazes e as raparigas era muito menos controlada do que na Metrópole. Se alguns liceus, como o Salazar, em Lourenço Marques, e o Diogo Cão, em Sá da Bandeira (actual Lubango), Angola, tinham uma ala para eles e outra para elas, os pais não se opunham ao convívio entre os dois sexos. Era normal irem juntos à praia, ao cinema e a festas em casa uns dos outros. "A gente nova ficava por sua conta. Os pais ou não apareciam ou davam uma volta e desapareciam", conta à SÁBADO Zezinha van Zeller, 55 anos, que cresceu em Luanda. Os namoros eram muito mais liberais. O escuro do cinema ajudava a esconder uns beijos. No Miramar, ao ar livre, no Avis, no Restauração, onde era permitido fumar, no Tivoli e no São Paulo, os filmes passavam com pouco atraso em relação à Metrópole.

"Nas festas e nas praias era um enrolanço total. Dançávamos slows, muito apertados. Muitas raparigas faziam sexo antes de casar. Algumas ficavam à espera de bebé e outras faziam abortos." Tanto ela como as irmãs sempre se arranjaram muito: maquilhavam-se, usavam minissaias e decotes. Mas havia limites: "Um dia apareci com um biquíni que tinha comprado em Lisboa e anunciei ao meu pai que ia para a praia assim. Levei uma sova mas fui na mesma. Depois fiquei de castigo." O confronto repetiu-se quando o pai de Zezinha descobriu que ela tinha comprado o disco Je T’Aime Moi non plus, de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. "Não fez mais nada: deu-me uma sova monumental e partiu o disco à minha frente." Os gemidos da cantora eram demasiado lascivos para os ouvidos de uma rapariga de respeito.

Os maiores êxitos internacionais ouviam-se nas 17 rádios de Angola com muito pouco atraso em relação ao lançamento. "Os discos da [editora norte-americana] Capitol Records chegavam poucos dias depois de saírem. Ouvia-se sobretudo música anglo-saxónica e francesa. Também iam algumas coisas de Lisboa", recorda Emídio Rangel, então jornalista da Rádio Comercial de Angola, em Sá da Bandeira [morreu a 13 de Agosto de 2014].

A cidade onde a sua família se estabelecera há várias gerações era conhecida pela vida estudantil. Durante muitos anos, só havia dois liceus em todo o território: o Salvador Correia de Sá, em Luanda, e o Diogo Cão, ali. E isso fazia chegar, todos os anos, alunos de outras zonas. "Além do liceu, havia uma escola de enfermagem e uma escola de regentes agrícolas. Era frequente circular e ver passar estudantes de capa e batina."

A maioria dos miúdos que frequentavam o liceu ainda era branca, mas já havia alguns negros. Andavam nas mesmas turmas e eram tratados de forma igualitária pelos professores, conhecidos pela exigência. Rangel, um dos veteranos, pertencia ao Reino imaginário de Maconge, com Rei, vice-rei, bispo, duques, sobas, cavaleiros e barões. Os maconginos reúnem-se até hoje. Kundy Paihama, actual ministro dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria de Angola, é conde do Hombo. 

A associação académica promovia actividades tão diferentes como futebol, hóquei em patins e teatro. "O grupo tinha uma intensidade de trabalho enorme. Fiz Um Pedido de Casamento, de Tchekhov,e Todo o Mundo e Ninguém, de Gil Vicente. Ganhámos um festival provincial de teatro", conta o antigo director- geral da SIC e da RTP. "Lembro-me de ter aparecido a editora Imbondeiro, que publicava livros proibidos pela censura. A liberdade era muito mais ampla em Angola. A PIDE estava centrada nos movimentos independentistas e nos assuntos relacionados com a guerra", diz Rangel. 

O conflito que se iniciou a 15 de Março de 1961,no Norte do território, reflectia-se mais na Metrópole do que nos portugueses que viviam no Ultramar. Na Europa, milhares de jovens eram recrutados para combater os movimentos independentistas. Muitos morriam ou sofriam ferimentos graves que deixaram sequelas para sempre. Em Angola e Moçambique, a vida corria sem sobressaltos e a economia continuava a desenvolver-se.

Um ano depois do início da guerra colonial, António Cardoso e Cunha partiu para Sá da Bandeira e foi ajudar o sogro nos negócios. Venâncio Guimarães Sobrinho tinha um império na cidade e precisava de um homem de confiança para o desenvolver. Escolheu o genro. "Só quando lá cheguei percebi o real valor dele. Levou-me ao escritório, tirou um papel da gaveta e disse-me: ‘Leia isto.’ Era uma procuração que me passava plenos poderes sobre todo o património. Ele não jogava só uma cartada: jogava tudo", diz à SÁBADO Cardoso e Cunha, que foi ministro da Agricultura e Pescas dos Governos de Sá Carneiro e Balsemão. Venâncio tratou-o sempre por engenheiro. Ele chamava ao sogro comandante.

António instalou-se no sétimo e último piso do edifício construído para albergar a sede da firma. Do terraço da casa tinha uma vista deslumbrante. Mas a maior vantagem era mesmo morar, literalmente, em cima do trabalho. Chegava a descer ao escritório, no segundo andar, de pijama. Depois subia para tomar o pequeno-almoço e regressava.

Havia empresas de todos os ramos para administrar: da agricultura à pecuária, passando pela lucrativa área das representações, um jornal e, mais tarde, uma rádio. "As nossas actividades cresciam em volume e superfície. Eu tinha ao meu dispor os meios necessários para trabalhar: um rádio para as comunicações porque as linhas telefónicas eram nulas e um avião Piper bimotor para as deslocações longas."

Só viajava em trabalho e dedicava muito pouco tempo ao lazer. E isso era uma excepção em África. Os portugueses habituaram-se a um convívio constante em casa uns dos outros. As festas nem precisavam de ser convocadas. "Combinava-se e ia-se de assalto a casa de alguém, sobretudo no Carnaval, no Santo António e no São João", lembra Emídio Rangel. Às vezes apareciam 20 ou 30 pessoas de uma vez e ninguém estranhava. Uns traziam comida, outros bebida. Falavam, cantavam e dançavam ao som de discos de vinil até de madrugada. No dia seguinte iam trabalhar. "Trabalhava-se muito, mas tínhamos a preocupação de gozar a vida."

Se na metrópole só um pequeno grupo de famílias tinha criados em casa, no Ultramar eram muito raras as que os dispensavam. "Quase toda a gente tinha um cuca [cozinheiro], um mainato, que cuidava da roupa, e um pequenino para os ajudar e tomar conta dos miúdos. Nós ainda tínhamos um jardineiro e chegou a haver uma criada branca", lembra José Quental, que vivia no bairro da Polana, próximo do Palácio da Ponta Vermelha, residência oficial do governador, e hoje do Presidente da República. Isso, sim, era um privilégio em Lourenço Marques, onde o pessoal da casa era sempre negro.

A relação entre brancos e pretos nunca era de igual para igual, mesmo na cidade. Nas cantinas (lojas no mato) e nas fazendas, os maus-tratos aconteciam com frequência. Em ambiente urbano era mais raro ver um patrão bater num empregado. "Nós não éramos racistas como os sul-africanos. Eu só batia nos empregados que roubavam gasóleo e outras coisas do armazém do meu pai [Armazéns Guerreiro Quental, os maiores da cidade].Quando os apanhava, perguntava-lhes: ‘Queres mezinha ou queres ir para a rua?’ E eles escolhiam sempre mezinha (pancada). Davam-se bem comigo." Os negros estavam acostumados a castigos deste tipo. E só se revoltavam quando achavam a sova injusta. 

De resto, José Quental diz que tinha bons amigos pretos. "O meu pai comprou-me um barco quando eu era miúdo e eu levava amigos negros ao Clube Naval para passearem comigo. Ele dizia-me: ‘Levaste o teu amigo preto? Já sabes que eles lá não gostam disso.’ E eu continuava a fazer a mesma coisa."

A separação total das raças nunca foi como a da África do Sul. "Quando cheguei a Moçambique, em 1947, os negros só podiam andar no banco de trás do autocarro. Mas depois de Adriano Moreira ter sido ministro do Ultramar [e ter acabado, em 1961, como Estatuto do Indigenato, que legalizava a discriminação dos negros pelos brancos], a segregação terminou", conta à SÁBADO Daniel Perdigão, 83 anos, antigo funcionário dos Correios de Lourenço Marques.

Ainda assim, a cidade do asfalto estava reservada aos brancos e a algumas famílias negras que iam subindo na escala social. Era o caso dos Van Dunen e dos Pinto de Andrade em Luanda, por exemplo. A maioria, porém, vivia nos musseques, às portas das cidades.

Em Angola, por norma, estes eram bairros de casas com telhado de zinco; em Moçambique, de palhotas muito juntas. E até aqui havia oportunidades de negócio para os brancos. Os fubeiros, como eram conhecidos estes comerciantes, tinham lojas de tudo: da alimentação a roupa. Havia ainda armazéns com peças para automóveis e boas carpintarias onde se mandava fazer móveis por encomenda.

O pai de Zezinha van Zeller, António Costa Macedo, desenhou várias peças para a residência da família no bairro de Alvalade (Luanda). "A casa era enorme, de luxo. Tinha cave, rés-do-chão e primeiro andar e ficava colada à de uma tia minha", diz. No quintal houve durante um tempo duas macacas de estimação. Uma delas, chamada Chica, fugiu da corrente que aprendia a uma árvore e foi apanhada numa clínica, na rua de trás, na cama de um doente.

"Quando havia festas, fazia-se um bufê e servia-se com os melhores serviços e pratos. Punham-se mesas nos terraços, varandas e jardins." O menu podia até variar muito, mas nunca saía da comida tradicional portuguesa. À mesa, os colonos não podiam ser mais conservadores. No Natal comia-se bacalhau como na Metrópole. E nem o calor que fazia em África os desencorajava de comer cozido à portuguesa e feijoada. Só dois ou três pratos locais passaram a ser feitos em casas de brancos: muamba, em Angola; caril de camarão e frango à cafreal, em Moçambique. 

Os restaurantes reflectiam essa tendência. Em Lourenço Marques, ninguém perdia os camarões do Piri-Piri, o peixe do Costa do Sol – a que todos chamavam Grego por causa da nacionalidade do dono – ou do Peter’s. "Na Fábrica das Cervejas comiam-se as melhores sandes de carne assada do mundo", recorda Manuel Frade. Ao domingo era fácil ver algumas as famílias mais tradicionais a almoçar no Hotel Polana.

O Vilela era paragem obrigatória para quem procurava o melhor e mais alto bacalhau de Luanda. "O Bitoque só servia garoupinhas grelhadas. Tinha mesas de madeira todas tortas e teias de aranha, mas estava sempre cheio", conta João van Zeller, marido de Zezinha. No Pezinhos na Água almoçava-se em fato de banho. E o melhor bife com molho de natas, batatas fritas e ovo comia-se ao balcão do Caçarola.

No Mussulo, as tascas de grelhados faziam sucesso. "Quem não tinha barco ia no cacilheiro Cabo Soca e ficava junto ao porto. Os outros ficavam onde queriam. Muitos tinham cabanas de praia lá." O Clube dos Amigos da Costa, um barracão frequentado maioritariamente por pescadores desportivos, era um ponto de encontro para patuscadas. "Cada um levava a sua arca frigorífica. Faziam-se lá grandes churrascos".

O clima quente permitia ir à praia durante todo o ano. Ao fim-de-semana, além do Mussulo, rumava-se às Palmeirinhas, ao Morro dos Veados ou à ilha de Luanda. Em Lourenço Marques, a Costa do Sol atraía muita gente. Mas havia quem preferisse dar um pulo ao Bilene, a 150 quilómetros, ou a Xai-Xai, a 270. "Às vezes estávamos às 6h da tarde no Sheik, um cocktail-bar, e dizíamos: ‘Mas porque é que não vamos tomar um copo ao hotel de Xai- Xai? Acabávamos por ficar de sábado para domingo e íamos à praia lá", conta Manuel Frade. Em África, as distâncias nunca importaram. 

Enquanto viveu na Beira, no Norte, Manuel passou sempre o mês de Janeiro na Rodésia (actual Zimbabwe), de férias. Já para Daniel Perdigão, o destino de lazer era a Ponta do Ouro, no extremo sul de Moçambique: "Íamos para lá em Abril. Alugávamos umas barracas na praia. Tinham uns beliches atrás, casa de jantar e cozinha à frente." Daniel e o irmão Eurico entravam na água todos os dias às 8he iam à caça submarina. Só saíam para almoçar. Depois voltavam até ao fim do dia. "Numa sessão apanhávamos 15, 20 ou 30 lagostas."

Era em mercados e mercearias de bairro que se comprava a maior parte dos produtos alimentares. Na década de 1950, o pai de José Quental decidiu inovar: transformou os Armazéns Guerreiro Quental numa grande superfície, onde os clientes entravam e escolhiam os produtos que colocavam em cestos ou carrinhos. "Na altura houve quem o criticasse. As pessoas estavam habituadas a ser servidas", conta o filho. O conceito resultou.

Um outro armazém dava que falar em Lourenço Marques. Nos vários pisos do John Orr’s, frequentado por consumidores exigentes, vendia-se roupa cara e até jóias. Dali vinham muitos dos vestidos usados nos bailes de debute no Hotel Polana ou no Grémio – em Angola, não havia esta tradição. "A minha mãe costumava comprar lá roupa. Mas fazia questão de também prestigiar a melhor costureira da cidade, a Laurentina", recorda Pedro Rebelo de Sousa, 55 anos.

Os modelos das boutiques Maria Armanda e Gioconda, em Luanda, não estavam ao alcance de todas. Eram, no entanto, a melhor escolha quando se procurava um vestido melhor. Havia pronto-a-vestir e confecção por encomenda. Os feitios eram tirados de revistas como a Burda, a Elle e a Marie Claire e não podiam ser mais actuais. Havia ainda os Armazéns do Minho e os Quintas & Irmãos. Entre os homens, ir ao Pierre Fardex tornou-se um programa de fim- de-semana. "No mercado, havia um sítio que vendia roupa em segunda mão que vinha em fardos dos Estados Unidos. Encontravam-se coisas óptimas. Depois fervia-se tudo e estava a andar", recorda Manuel Vinhas.

"Quando íamos dançar rebita [dança tradicional] com os pretos, na praia do Dongo, na ilha, comprávamos tecidos africanos nos Armazéns da Gajajeira, num dos musseques", diz Zezinha van Zeller. Depois do jantar, dezenas de jovens brancos dirigiam-se aos terreiros junto das cubatas e passavam a noite inteira animadíssimos com batuques e guitarradas.



A chegada milhares de militares às colónias, sobretudo depois do início da Guerra Colonial, fez despertar os cabarés. Uns tinham espectáculos de striptease, outros de variedades. "Cheguei a ir à Cave, em Lourenço Marques, com uma das minhas irmãs. Depois do show, a stripper veio dar-lhe um beijo. O meu pai, quando soube, ficou furioso", conta Manuel Frade. O mais normal, no entanto, é que os clientes fossem homens à procura de prostitutas – quase todas mulatas. Em Luanda, soldados, homens solteiros e casados enchiam os bares americanos – o nome que se dava às casas de alterne – como o Veleiro e o Tamar. Muitos viviam ou alugavam quartos num edifício que ficou com a alcunha de Treme-Treme por causa da frequência com que ali se passavam encontros sexuais fortuitos. Para dançar havia as boîtes Calhambeque, 4 e Flamingo.

Depois do 25 de Abril, a vida leve e despreocupada de África chegou ao fim. Os confrontos entre os movimentos políticos locais tornou o dia-a-dia das cidades insuportável para os portugueses. O dia 11 de Novembrode1975 não marcou apenas a independência de Angola: foi o fim de uma era (Moçambique era independente desde 25 de Junho). Manuel Vinhas fugiu de um mandado de captura emitido em Luanda em nome do pai, no primeiro avião que apanhou para Lisboa. José Quental continuou em Moçambique até 1979, como piloto da DETA. Manuel Frade foi ferido em combate e regressou em Agosto de 1972. Emídio Rangel escapou às tropas da UNITA que o queriam capturar, numa viagem alucinante em direcção à Namíbia. António Cardoso e Cunha passou pelas patrulhas do Galo Negro, num Alfa Romeo, a grande velocidade, com os filhos a deitar pela janela notas tiradas de um saco de serapilheira. João e Zezinha van Zeller deixaram para trás tudo o que tinham depois de ela ter ficado presa com a filha bebé no meio de fogo cruzado. Vieram viver para casa dos pais dele. Daniel Perdigão mandou construir, em 1973, a casa onde vive até hoje, em Carnaxide. Nunca acreditou que Portugal conseguisse manter as colónias.
Dois países diferentes PARA QUEM VIVIA EM ANGOLA OU MOÇAMBIQUE, VIR À METRÓPOLE ERA UM CHOQUE. SAIBA PORQUÊ

NAMORO
Metrópole. As restrições eram grandes. Os pais vigiavam os encontros que, muitas vezes, aconteciam à janela. Por norma, as raparigas casavam virgens.

África. Podia até não se namorar às claras, mas havia mais espaço para viver os romances.
Os jovens aproveitavam as idas à praia e ao cinema para trocar abraços e beijos. Nalguns casos havia sexo antes do casamento.

FESTAS
Metrópole. A primeira dificuldade era ter autorização para ir. As solteiras eram acompanhadas pela mãe, pelo pai ou por alguém de confiança.

África. Dezenas de rapazes e raparigas encontravam-se em casa uns dos outros ou noutro local para dançar até de madrugada. Os pais do anfitrião costumavam aparecer e cumprimentar.
Depois recolhiam-se e deixavam o filho e os amigos à vontade.

CRIADOS
Metrópole. Um privilégio das famílias mais ricas.

África. Todos tinham pelo menos ume por norma havia três: o cozinheiro, a lavadeira e um empregado para cuidar da casa.

ÁLCOOL
Metrópole. O consumo era moderado.

África. Bebia-se muito, sobretudo cerveja. Ao fim da tarde tomava-se um gin tónico ou um whisky com soda.

VESTUÁRIO
Metrópole. Uma senhora não usava decotes nem saias curtas, e um homem ia sempre para o escritório de gravata.

África. A roupa era mais leve e ousada: a moda da minissaia pegou e os decotes eram permitidos. Os homens não andavam de gravata no dia-a-dia.
Os dias mais longos NO ULTRAMAR, O TEMPO PARECIA INFINITO. UM SÓ DIA DAVA PARA FAZER DE TUDO

5h00 NASCER DO SOL
As pessoas só se levantavam às 7h. Tomavam o pequeno-almoço às 7h30.

8h00 INÍCIO DO DIA ACTIVO
Era a hora de entrada nos escritórios, fábricas e liceus.

12h30 ALMOÇO
Toda a gente ia comer a casa, tanto os estudantes como os trabalhadores.

18h00 HORA DE SAÍDA 
A tarde nunca acabava sem um copo em casa ou numa esplanada.

21h00 JANTAR
Grande parte das famílias comia a última refeição do dia a esta hora.

24h00 DEITAR 
O serão era quase sempre de conversa. Muitas vezes ouvia-se rádio. Era raro ir-se para a cama antes da meia-noite, 1h.
Palavras de África CONHEÇA ALGUNS TERMOS QUE OS PORTUGUESES USAVAM NAS COLÓNIAS

PUTO Era assim que se chamava à Metrópole por ser um território muito mais pequeno do que Angola e Moçambique.

CUCA (Ang.) Cerveja.

CUCA (Moç.) Cozinheiro.

BALEIZÃO (Ang.) Gelado.

MAINATO(Moç.) Criado que lavava e engomava a roupa.

PEQUENINO (Moç.) Começava por ser o empregado mais novo (ia trabalhar ainda miúdo). Ajudava os outros criados da casa e tomava conta das crianças.

ASSALTOS (Ang.) Festas surpresa. Os convidados apareciam sem avisar os donos da casa.

MACONGINO(Ang.) Elemento do reino imaginário de Maconge, criado pelos estudantes do Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira.
Exclusivo das colónias ALGUNS PRODUTOS ERAM NOVIDADES ABSOLUTAS PARA QUEM CHEGAVA A ÁFRICA

COCA-COLA. Proibida na Metrópole, de venda livre em Angola e Moçambique.

MOAMBA. Dos poucos pratos que os portugueses incluíram nas suas refeições enquanto estiveram em Angola.

VINHO DE ABACAXI. O sabor tornava-se ainda mais agradável no Verão, quando servido fresco.

SADZA. Os negros faziam bolas de massa com farinha e acompanhavam com um molho a que chamavam caril, embora nem sempre fosse mesmo caril.

FRUTOS TROPICAIS. O coco apanhava-se e comia-se no momento, as mangas cresciam no quintal e o sabor das papaias era inesquecível.

Este artigo foi publicado na SÁBADO a 28 de Outubro de 2010. 

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