Duas
investigadoras concluíram que os manuais escolares obliteram o racismo
no colonialismo português e trivializam a escravatura
"Os
Portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas -
produtos de grande valor." A frase está num manual atual do 6.º ano. É
mesmo assim, como "produtos", sem qualquer referência adicional, e sem
se tratar de uma citação de época, que as pessoas escravizadas são
descritas num livro para crianças de 10 anos. No mesmo manual, há duas
imagens com escravos, reproduções de gravuras. Numa vê-se um homem
negro, de nádegas e pernas nuas, a ser chicoteado perante uma multidão;
noutra estão outros negros, nus, com os pés presos entre duas tábuas. A
legenda é: "Maus-tratos aos escravos".
Será
a este tipo de conteúdos que as investigadoras Marta Araújo e Sílvia
Maeso, do Centro de Estudos Sociais, se referem, na sua análise dos
manuais escolares, quando falam da "institucionalização do silêncio", da
"naturalização das relações de poder e violência" e da "trivialização"
no que se refere à escravatura no ensino da história em Portugal.
A
ideia de investigar na área do ensino da história, conta Marta Araújo, a
coordenadora do projeto, foi -se impondo e acabou por lhe parecer
fundamental quando no Brasil se impôs, por lei de 2003, o ensino da
história e cultura indígenas. "Começou-me a parecer que a história e o
ensino da história são palcos fulcrais das lutas políticas e em 2006
submeti um projeto à Fundação para a Ciência e Tecnologia que não foi
aprovado. O que se pretendia na altura era perceber que narrativas estão
condensadas nos manuais." Já não era a primeira vez que uma
investigação relacionada com estes temas era chumbada: "Em 1997
disseram-me explicitamente , na FCT, o racismo não é um problema em
Portugal e portanto não teria financiamento. E ainda em 2011 o júri
disse que olhar tão para trás na história não não é uma forma sensata de
trazer o progresso." Mas em 2007 acabaram por conseguir o financiamento
necessário. A ideia inicial era perceber como a questão racial era
tratada nos manuais, mas depois evoluímos para a análise da abordagem da
escravatura."
A conclusão a que
chegaram é de que há "uma obliteração da ideia de racismo no que
respeita ao colonialismo português. Pode estar-se a falar dos impérios
belgas, britânicos, etc. e caracterizá-los como racistas, mas muda-se de
assunto quando se passa para Portugal. Quando se fala de escravatura
nunca se fala sobre Portugal ser racista. A ideia é sempre que a
escravatura foi uma tragédia da humanidade. No 9.º ano, por exemplo,
fala--se de racismo mas a propósito do holocausto, do apartheid na
África do Sul, da segregação racial nos EUA. O paradigma do entendimento
do racismo é o holocausto, nunca há nenhuma referência ao colonial.
Persiste a narrativa de que fomos bons colonizadores e que os nossos
colonizados têm uma grande gratidão." Uma narrativa que, descobriu
Marta, contaminou também os PALOP: "Em Cabo Verde fomos a uma escola e
percebemos que os livros eram iguais aos que tínhamos analisado."
A
desconstrução destas ideias tem ocorrido na academia,
internacionalmente e em Portugal - trabalhos como o de Marta e Sílvia
são disso testemunho. Mas, ao contrário do que seria de esperar, apesar
das novas correntes da investigação histórica, há coisas que têm piorado
nos manuais escolares. Dá um exemplo: "Em 2003, lia-se num manual que
"escravos africanos negros eram levados à força para o território
americano"; na versão de 2008 do mesmo manual, a frase passou para
"ocorreram movimentações de povos - de emigrantes europeus e de escravos
africanos sobretudo para a América"."
Isto
sucede porquê? Quem decide? As investigadoras tentaram falar com os
autores dos manuais, mas esbarraram na proteção das editoras. Com os
autores dos programas também não falaram, como o DN não logrou fazê--lo:
o contacto com a Associação dos Professores de História, entidade à
qual é uso os governos entregarem a tarefa de rever os programas - que
depois os ministros se limitam a homologar - não obteve retorno.
Maria
de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação, certifica que o processo
ocorre "muito afastado do poder político; não podem ser os governantes a
decidir o que se ensina na escola. E reflete: "Antes do 25 de Abril a
investigação histórica sobre a Primeira República e o Estado Novo era
proibida. A história acabava no fim do século XIX. É normal que tenhamos
chegado à democracia sem informação nenhuma e que um programa de 2002
não reflita as novas correntes da investigação histórica. O ensino da
história é o da formação da identidade nacional, e esta é uma reflexão
que vale a pena ter - como ensinar os aspetos menos positivos da nossa
história."
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