Meu artigo na quinta edicao da revista "Negocios"
“Tsima” é um mecanismo de cooperação agrícola muito em voga na minha aldeia natal, Madzukane. Os camponeses juntam-se, ocasionalmente, para destroncar, lavrar, sachar ou fazer a colheita na propriedade agrícola de um deles. Para além de preparar comida e bebida para os participantes, na “Tsima” o beneficiário deve, com a formalidade requerida, enviar convites verbais às pessoas que deseja que participem nesse evento que, na verdade, prefigura uma forma de associação agrícola informal.
Florentino, um emérito trovador lá da minha aldeia, não pode ser considerado, em rigor, um grande trabalhador, no que às lides agrícolas se refere. Não é incomum que durante a jornada de trabalho, entremeada de cânticos e gritos de incentivos mútuos, Florentino não consiga lavrar metade do que outros associados fizeram. Isso, todavia, não impede que seja convidado para as “Tsimas” com bastante frequência. Na verdade, ele funciona como o principal animador das cantigas e dos ditos jocosos que animam os participantes.
Apesar de não estar taxativamente prescrito, entende-se que as “Tsimas” são, por natureza, rotativas. Isto é, todos os que forem convidados podem, em teoria e rotativamente, convidar os outros. Por isso não é de bom-tom não comparecer quando intimado por outros, sob risco de que ninguém se faça presente quando chegar a sua vez de convidar. Sem embargo, a regra da rotatividade é muitas vezes quebrada, visto que convidar uma “Tsima” depende da capacidade de providenciar comida e bebida, finda a jornada de trabalho. Para além da comparência, o empenho no trabalho e a produtividade são essenciais. O caso do Florentino deve ser visto como uma excepção.
O tipo de associativismo que aqui descrevi é muito diferente das experiências de trabalho cooperativo patrocinadas pelo Estado ou por ONGs, que Moçambique e outros países africanos viram desenvolver-se nas últimas décadas. O que me foi dado a assistir no desempenho das diversas funções que tive pode ser descrito como deplorável. Sempre que oiço alguém recomendar a formação de associações para, por exemplo, receber os chamados “sete milhões”, fico literalmente com o estômago embrulhado.
Não que não reconheça as associações e as cooperativas como formas de organização superior. É um facto indesmentível que o ambiente em que a agricultura se desenvolve está a mudar profundamente em todo o mundo, devido à integração de novos participantes e à afirmação de novos desafios, riscos e alianças. Para além de alimentar uma população em constante aumento, espera-se, hoje, que a agricultura atenda a um conjunto de objectivos globais, como proporcionar meios de subsistência decentes aos agricultores de hoje e do futuro, administrar recursos naturais em constante redução e ajudar a restaurar um meio ambiente e um ecossistema frágeis. À medida que os mercados agrícolas sofrem profundas transformações, fazendo surgir novas entidades, novas configurações e novas oportunidades, torna-se imprescindível encontrar novas e melhores formas de associar-se, muito para além do que descrevi nas “Tsimas” da minha aldeia. As associações e as cooperativas parecem ser o caminho. Mas não basta um governante ou um activista de ONG dizer que é preciso que os camponeses as formem. Será, porventura, essencial ter em atenção (i) o estigma que se criou à volta destas formas organizativas, derivado de associações e cooperativas que, num passado recente, se formaram de forma muito estatizada; (ii) a ligação que os aldeões estabelecem entre formar associação e/ou cooperativa com a possibilidade de receber um donativo que pudesse ser partilhado entre os membros “associados”, sem que essa partilha tenha em vista o desenvolvimento da tal associação. Este vício terá sido desenvolvido por concurso de ONGs que desejavam mostrar serviço e desembolsos, sem curar de fazer um trabalho em profundidade, para conferir sustentabilidade a longo prazo às formas de cooperação estabelecidas.
Não conheço nenhuma associação agrícola ou rural verdadeiramente sustentável em Moçambique. Digo, com muita tristeza, que nem as muito celebradas cooperativas do entusiasta e falecido Padre Prosperino o foram. Estas últimas desmoronaram-se com o falecimento do seu promotor que, provavelmente, interrompeu o fluxo de donativos que lhes dava uma vitalidade fictícia.
Conheci, há um 7 anos, um arremedo de associação que aprofundou a minha desconfiança em relação à ligeireza com que promovemos estas formas de cooperação no mundo rural. As autoridades distritais levaram-me a visitar uma associação que, a seu ver, era modelo no território. Encontrei 20 associados que, orgulhosamente, me mostraram a sua farma constituída por 18 hectares de arroz! Sim, disse 18 hectares, para 20 associados! Menos de 1 hectare por cada um deles! Quando lhes perguntei se para além da associação cada um deles teria alguma machamba familiar, foi-me dito que não! Era óbvio que aqueles camponeses estavam a envolver-se numa espiral de fome e de miséria. Cada um deles era pior que o bardo Florentino da minha aldeia natal, na sua relação com o trabalho associativo. Quando lhes disse que aquele tipo de associação era inadmissível, pois eles passariam fome, informaram-me, com sorriso nos lábios, que também tinham gado. Fiquei animado a ir ver a criação. Eram 3 cabeças de bovinos, que estavam a ser guardadas por dois homens robustos! A minha indignação atingiu os limites e tratei de lhes dizer que, em Madzukane, um menino de 10 anos guardava dezenas de cabeças de bovinos sozinho. Sugeri que dissolvessem a “associação” e que cada um regressasse às respectivas herdades familiares.
Insisto, tenho consciência do potencial que estas formas organizativas têm. Mas, para estabelecer associações e cooperativas, é necessário abandonar a abordagem e modelos verticais. Associações e cooperativas são um acordo de cooperação destinado a promover interesses mútuos, aproveitando as fortalezas e recursos de cada um, de maneira transparente e equitativa. Para que os pequenos agricultores possam desenvolver-se, eles devem unir forças com outros pequenos produtores, contemplando, ainda, a possibilidade de estabelecer associações com outras entidades do sector privado.
As associações e cooperativas, se promovidas com método e critério, permitiriam aos agricultores pobres ampliar as suas operações de maneira eficaz e entrarem em mercados e cadeias de valor que, de outro modo, seriam inacessíveis. Permitiriam, também, acesso aos conhecimentos, à investigação e a tecnologias. As associações e cooperativas ajudariam a superar os obstáculos que afectam os pequenos produtores no momento de ampliar as suas actividades como, por exemplo, os elevados custos de transacção e a falta de informação. Através destas formas organizativas, os pequenos agricultores podem aceder a recursos e mercados que não estão disponíveis individualmente a produtores que trabalham de forma isolada.
Porém, e isto é essencial, todos os actores, estatais e não estatais, devem definir com antecedência que tipos de associações e de cooperativas têm em mente. Para não multiplicar por este vasto Moçambique os Florentinos da minha aldeia natal. Nem todos podemos ser bardos ou trovadores.
“Tsima” é um mecanismo de cooperação agrícola muito em voga na minha aldeia natal, Madzukane. Os camponeses juntam-se, ocasionalmente, para destroncar, lavrar, sachar ou fazer a colheita na propriedade agrícola de um deles. Para além de preparar comida e bebida para os participantes, na “Tsima” o beneficiário deve, com a formalidade requerida, enviar convites verbais às pessoas que deseja que participem nesse evento que, na verdade, prefigura uma forma de associação agrícola informal.
Florentino, um emérito trovador lá da minha aldeia, não pode ser considerado, em rigor, um grande trabalhador, no que às lides agrícolas se refere. Não é incomum que durante a jornada de trabalho, entremeada de cânticos e gritos de incentivos mútuos, Florentino não consiga lavrar metade do que outros associados fizeram. Isso, todavia, não impede que seja convidado para as “Tsimas” com bastante frequência. Na verdade, ele funciona como o principal animador das cantigas e dos ditos jocosos que animam os participantes.
Apesar de não estar taxativamente prescrito, entende-se que as “Tsimas” são, por natureza, rotativas. Isto é, todos os que forem convidados podem, em teoria e rotativamente, convidar os outros. Por isso não é de bom-tom não comparecer quando intimado por outros, sob risco de que ninguém se faça presente quando chegar a sua vez de convidar. Sem embargo, a regra da rotatividade é muitas vezes quebrada, visto que convidar uma “Tsima” depende da capacidade de providenciar comida e bebida, finda a jornada de trabalho. Para além da comparência, o empenho no trabalho e a produtividade são essenciais. O caso do Florentino deve ser visto como uma excepção.
O tipo de associativismo que aqui descrevi é muito diferente das experiências de trabalho cooperativo patrocinadas pelo Estado ou por ONGs, que Moçambique e outros países africanos viram desenvolver-se nas últimas décadas. O que me foi dado a assistir no desempenho das diversas funções que tive pode ser descrito como deplorável. Sempre que oiço alguém recomendar a formação de associações para, por exemplo, receber os chamados “sete milhões”, fico literalmente com o estômago embrulhado.
Não que não reconheça as associações e as cooperativas como formas de organização superior. É um facto indesmentível que o ambiente em que a agricultura se desenvolve está a mudar profundamente em todo o mundo, devido à integração de novos participantes e à afirmação de novos desafios, riscos e alianças. Para além de alimentar uma população em constante aumento, espera-se, hoje, que a agricultura atenda a um conjunto de objectivos globais, como proporcionar meios de subsistência decentes aos agricultores de hoje e do futuro, administrar recursos naturais em constante redução e ajudar a restaurar um meio ambiente e um ecossistema frágeis. À medida que os mercados agrícolas sofrem profundas transformações, fazendo surgir novas entidades, novas configurações e novas oportunidades, torna-se imprescindível encontrar novas e melhores formas de associar-se, muito para além do que descrevi nas “Tsimas” da minha aldeia. As associações e as cooperativas parecem ser o caminho. Mas não basta um governante ou um activista de ONG dizer que é preciso que os camponeses as formem. Será, porventura, essencial ter em atenção (i) o estigma que se criou à volta destas formas organizativas, derivado de associações e cooperativas que, num passado recente, se formaram de forma muito estatizada; (ii) a ligação que os aldeões estabelecem entre formar associação e/ou cooperativa com a possibilidade de receber um donativo que pudesse ser partilhado entre os membros “associados”, sem que essa partilha tenha em vista o desenvolvimento da tal associação. Este vício terá sido desenvolvido por concurso de ONGs que desejavam mostrar serviço e desembolsos, sem curar de fazer um trabalho em profundidade, para conferir sustentabilidade a longo prazo às formas de cooperação estabelecidas.
Não conheço nenhuma associação agrícola ou rural verdadeiramente sustentável em Moçambique. Digo, com muita tristeza, que nem as muito celebradas cooperativas do entusiasta e falecido Padre Prosperino o foram. Estas últimas desmoronaram-se com o falecimento do seu promotor que, provavelmente, interrompeu o fluxo de donativos que lhes dava uma vitalidade fictícia.
Conheci, há um 7 anos, um arremedo de associação que aprofundou a minha desconfiança em relação à ligeireza com que promovemos estas formas de cooperação no mundo rural. As autoridades distritais levaram-me a visitar uma associação que, a seu ver, era modelo no território. Encontrei 20 associados que, orgulhosamente, me mostraram a sua farma constituída por 18 hectares de arroz! Sim, disse 18 hectares, para 20 associados! Menos de 1 hectare por cada um deles! Quando lhes perguntei se para além da associação cada um deles teria alguma machamba familiar, foi-me dito que não! Era óbvio que aqueles camponeses estavam a envolver-se numa espiral de fome e de miséria. Cada um deles era pior que o bardo Florentino da minha aldeia natal, na sua relação com o trabalho associativo. Quando lhes disse que aquele tipo de associação era inadmissível, pois eles passariam fome, informaram-me, com sorriso nos lábios, que também tinham gado. Fiquei animado a ir ver a criação. Eram 3 cabeças de bovinos, que estavam a ser guardadas por dois homens robustos! A minha indignação atingiu os limites e tratei de lhes dizer que, em Madzukane, um menino de 10 anos guardava dezenas de cabeças de bovinos sozinho. Sugeri que dissolvessem a “associação” e que cada um regressasse às respectivas herdades familiares.
Insisto, tenho consciência do potencial que estas formas organizativas têm. Mas, para estabelecer associações e cooperativas, é necessário abandonar a abordagem e modelos verticais. Associações e cooperativas são um acordo de cooperação destinado a promover interesses mútuos, aproveitando as fortalezas e recursos de cada um, de maneira transparente e equitativa. Para que os pequenos agricultores possam desenvolver-se, eles devem unir forças com outros pequenos produtores, contemplando, ainda, a possibilidade de estabelecer associações com outras entidades do sector privado.
As associações e cooperativas, se promovidas com método e critério, permitiriam aos agricultores pobres ampliar as suas operações de maneira eficaz e entrarem em mercados e cadeias de valor que, de outro modo, seriam inacessíveis. Permitiriam, também, acesso aos conhecimentos, à investigação e a tecnologias. As associações e cooperativas ajudariam a superar os obstáculos que afectam os pequenos produtores no momento de ampliar as suas actividades como, por exemplo, os elevados custos de transacção e a falta de informação. Através destas formas organizativas, os pequenos agricultores podem aceder a recursos e mercados que não estão disponíveis individualmente a produtores que trabalham de forma isolada.
Porém, e isto é essencial, todos os actores, estatais e não estatais, devem definir com antecedência que tipos de associações e de cooperativas têm em mente. Para não multiplicar por este vasto Moçambique os Florentinos da minha aldeia natal. Nem todos podemos ser bardos ou trovadores.
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