Excelentissimo Presidente Filipe Jacinto Nyusi
Assunto: Luta contra a corrupção
A luta contra a corrupção não deve ser vista como uma moda que corre, é
necessidade imperiosa de sobrevivência do estado moçambicano.
Uma
ideia que me vem na cabeça Senhor Presidente, é como devemos combater a
corrupção de forma muito eficaz e responsável, porque sem combatermos
este mal que é uma ofensa moral á nossa sociedade, jamais teremos um
estado exitoso e viável, todos os nossos esforços irão atravancar no
entulho e nunca iremos levantar a cara com a consciência limpa perante o
povo e perante os eleitores, sabendo que a nossa polícia extorque os
motoristas nas ruas e os funcionários públicos estorquem o cidadão nos
gabinetes e desviam fundos do estado.
Portanto, proponho as
seguintes medidas a serem implementadas ainda este ano, para não
perdermos tempo e começarmos a demonstrar o nosso distanciamento com
esta vergonha malévola.
1. Cada funcionário do estado, deve assinar
um termo de compromisso com o estado moçambicano, onde se compromete que
nunca vai desviar fundos do estado, nunca vai dar, receber, nem
extorquir suborno aos cidadãos. Cada funcionário do estado, igualmente,
deve comprometer-se a denunciar os que desviam fundos do estado, os que
dão, recebem, e extorquem suborno aos cidadãos. Este termo de
compromisso com o estado moçambicano deve obrigar, de igual maneira, ao
funcionário do estado a promover a honradez e respeito pela sua
instituição. O funcionário do estado que violar este termo de
compromisso, deve ser expulso imediatamente do serviço e sem direito de
ser reabilitado, cada instituição do estado deve ter um livro de
reclamações numerado e selado pela Procuradoria Geral da República , e
por sua vez, a Procuradoria Geral da República deve revisar, uma vez por
mês, as reclamações feitas nos livros de reclamações e tomar
providências.
2.Mudar as leis, que são permissívas e suscetíveis a prática de corrupção
A legislação moçambicana não dificulta o combate à corrupção e, em
alguns casos, até a estimula. Os crimes praticados por corruptos e
corruptores têm punições leves. Quem frauda uma concorrência pública ou
desvia fundos do estado, por exemplo, pode ser multado e permanecer
preso, por curto tempo depois pode ser reenquadrado, isso só aumenta a
sensação de impunidade e diminui o receio de praticar actos ilícitos
Além disso, a lei prevê inúmeras possibilidades de recursos judiciais,
fazendo com que processos se arrastem ao longo dos anos. O recurso é um
mecanismo importante para se evitar possíveis injustiças, mas, utilizado
em excesso, coloca em xeque a eficácia do poder Judiciário.
Temos muitos conselhos superiores
a) Conselho Superior da Magistratura Judicial
b) Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público
c) Conselho Superior da Magistratura Administrativa
Proponho a redução destes conselhos para um único Conselho Supremo da Justica, que será auxiliado pela Ordem dos advogados
3. Melhorar o controle público e fortalecer os Conselheiros dos
Tribunais de Contas, melhorar a eficácia da actuação do Ministério da
Justiça.
Enquanto não for revista a maneira como ocorre a
distribuição de recursos na relação entre municípios, provincias e
Centro , a corrupção não vai diminuir, é preciso acabar com as emendas
individuais, partindo do princípio de que os deputados não têm
conhecimento técnico para definir qual a prioridade na aplicação dos
recursos; ou implantar um sistema de orçamento impositivo, no qual o
governo é obrigado a pagar os recursos estabelecidos na Lei
Orçamentária.
4. Aumentar a transparência no poder público
5. Dar mais transparência ao financiamento das campanhas eleitorais
6. Simplificar o sistema tributário
Um sistema tributário complexo estimula a corrupção e o pago de suborno
aos revisores, e quando as multas são elevadas, estimulam a corrupção.
A solução seria uma profunda reforma tributária que simplificasse as
regras.
7. Combater o “espirito de deixa andar"
O famoso
“deixa andar" surgiu de maneira quase inevitável, logo depois da guerra
dos 16 anos, como uma forma de o povo se adaptar às centenas de
situações adversas do país, e limar arestas entre os civis, militares do
governo e simpatizantes do regime com as forças rebeldes recém
reintegradas na sociedade, vindas do mato. Porém, o “espirito deixa
andar" passou a ser usado com outros fins, para se conseguir vantagens
pessoais, passando por cima das leis, fala-se que o país está a ser
carcomido pela corrupção generalizada, mas nunca prendem esses corruptos
e responsabilizá-los pelos danos causados ao estado, o outro aspecto é
que não existem corruptos sem corruptores e, portanto, parte da
sociedade também está envolvida em actos ilícitos. Portanto, investir na
educação – sobretudo das crianças. As amnistias sem fim que se concedem
aos criminosos são parte desse "espirito de deixa andar" e da
proliferação da corrupção.
Atentamente.
Sobre a corrupção, mais uma vez
O texto é bem longo e impróprio para moralistas.
Há assuntos que precisam de ser constantemente tratados até pelo menos as pessoas concluírem com toda a certeza que ou somos loucos mesmo, ou então saberem porque estamos profundamente equivocados. A corrupção é um deles. Sobre este assunto tenho uma opinião já feita e que nunca escondi, apesar de saber que me coloca em posição de fora do jogo. Não é a causa dos nossos problemas de desenvolvimento, não merece a prioridade que tem recebido de muitas instituições e o discurso em seu torno é um dos maiores obstáculos a uma abordagem intelectual mais útil dos problemas do país. A luta contra a corrupção é a outra maneira de fazer o trabalho de Marracuene, aquilo que noutras partes do mundo é conhecido por trabalho de Sísifo.
E como sempre nestes assuntos é preciso tornar certas coisas claras. Primeiro, não é correcto desviar fundos públicos. Segundo, não é correcto atribuir empreitadas públicas a quem paga melhor ou faz parte do círculo de amigos ou de apoiantes do partido no governo, e não a quem faz um trabalho bom. Terceiro, extorquir dinheiro ao público e aceitar subornos por um trabalho que deve ser prestado também não é correcto. Quarto, actos de corrupção precisam de ser punidos conforme previsto pela lei. Sei que alguém vai perguntar porque, então, estou contra as campanhas anti-corrupção se considero as suas práticas e manifestações incorrectas e merecedoras de punição. É assim, eu acho que tossir é mau, mas não considero que isso seja a razão da nossa má saúde. Uma coisa é manifestação dum mal, outra é a causa desse mal. A corrupção é uma das manifestações da ausência de desenvolvimento (ou se quiserem do subdesenvolvimento ou da pobreza), não a sua causa. Na verdade, a corrupção nem é um bom termo para descrever o problema.
É difícil entender isto por uma razão muito simples. O discurso do desenvolvimento opera ao nível de platitudes. Alguém imagina os biliões de dólares que autocratas africanos deposita(ra)m fora dos seus países, olha para o estado lastimável das estradas, da saúde, da educação, etc. e fica aí a pensar que é esse dinheiro que teria resolvido todos os problemas. O argumento parece imbatível. Mas não presta. Ninguém sabe o que teria acontecido com esse dinheiro se não tivesse sido “exportado”. As mesmas condições que tornaram possível que alguém roubasse esse dinheiro teriam, de certeza, contribuído para que esse dinheiro nao fosse usado para esses fins. Uma sociedade que não consegue impedir isso não vai poder colocar esse dinheiro ao serviço de seja o que for. É por isso que me rio com tristeza quando vejo aquele vídeo do Centro de Integridade Pública a mostrar o número de escolas, hospitais, kilómetros de estradas, etc. que o dinheiro das “dívidas ocultas” teria construído. Dá para agitar as pessoas, mas a correlação é duma simplicidade arrepiante porque não aborda o problema na base, isto é as condições sociais que tornam possível esse alheamento, se assim o quisermos chamar, de algumas pessoas e de alguns decisores políticos. É fogo de artifício.
Portanto, é necessário olhar para a morfologia deste problema e dela tirar ilações. Voltei a pensar neste assunto por causa de duas coisas, nomeadamente essa campanha para a presidência da Confederação das Associações Económicas (CTA) e os problemas políticos que abalam o Brasil, cujo denominador comum é a corrupção. A CTA é interessante porque a campanha é renhida, por vezes com jogo abaixo da cintura, e deixa muita gente curiosa em entender porque adultos com outras ocupações investem tanta energia em algo tão simbólico como aquilo? A resposta a esta questão contém alguns elementos que nos podem dar uma ideia dessa morfologia. Quanto ao Brasil, bom, o que a gente vê lá hoje é o que pode acontecer a um sistema “funcional” quando os seus alicerces são abalados por razões que põem em causa os seus princípios reguladores. Foi o que as políticas do PT fizeram ameaçando comprometer o status quo, exacerbadas pela reacção dos adversários do PT que ao invés de restabelecer o equilíbrio normal expuseram toda a base operacional do sistema político brasileiro. Mas não era inevitável que assim fosse. O sistema podia ter continuado e, como o PT mostrou, com benefício para o país.
Como sou sociólogo a abordagem tem que ser mesmo sociológica. E ela começa por uma distinção muito importante. Em qualquer sociedade existem regras sociais e normas sociais. Não são a mesma coisa. Normas sociais ditam o que deve ser feito. Regras sociais formulam o que significa fazer alguma coisa. Dito doutro modo, seguir regras, por mais curioso que possa parecer, é a coisa menos natural da vida social. A regularidade da vida social é que nos faz erroneamente pensar que está tudo bem porque seguimos regras. O mais normal é estarmos mais empenhados a produzir as condições em que regras podem, potencialmente, ser seguidas. E isso faz-se na informalidade. A informalidade é o que faz as sociedades funcionarem. As regras são apenas balizas que dão às pessoas uma ideia mais exacta do que é necessário contornar, e como, para que as coisas sejam feitas. É assim em Moçambique, no Japão, nos EUA, na Alemanha, no Ruanda e na Coreia do Norte. Não importa se país em desenvolvimento, industrializado, democrático, autoritário, etc. A informalidade é a cola que junta.
É, contudo, neste contexto de informalidade marcado pela produção das condições em que as regras podem ser seguidas que as normas emergem e podem ser seguidas, ou não. Neste sentido, essas normas não precisam de ser “boas” no sentido, digamos, cristão da ética. O que importa é que essa norma tenha um contexto bem específico dentro do qual ela consegue influenciar o comportamento das pessoas. É assim, por exemplo, que a norma de matar para proteger o grupo num contexto criminoso pode surgir e vingar. Há por detrás disso toda uma história comportamental que confere um significado bem específico ao que as pessoas fazem. Na Alemanha, por exemplo, durante anos a fio o governo liderado pela União Cristã Democrática recebeu aquilo que os brasileiros chamam de “propina” em violação da lei de financiamento de partidos em troca de favores às empresas benefactoras. Até tinha contas na Suíça para fugir ao fisco. Esse escândalo, quando explodiu, arrastou consigo Helmut Kohl, o qual até hoje se recusa a divulgar os nomes das empresas que lhe deram o dinheiro. E a justificação que ele dava no início era de que tinha dado a sua palavra a essas empresas que não iria divulgar os seus nomes (sente-se acima da lei, tal e qual a caricatura que se tem de líderes africanos). Agora diz que se esqueceu...
A informalidade é crucial para a estabilidade de qualquer sistema político. Não são as instituições que dão força aos sistemas políticos, mas sim a coerência e consistência da informalidade que lhes é subjacente porque é na sua base que as instituições se tornam viáveis. É por isso que insisto nesta ideia e me coloco do outro lado da trincheira daqueles que veneram os trabalhos de Robinson e Acemoglu: a força e estabilidade das instituições não é anterior ao desenvolvimento. É seu resultado. Já houve várias tentativas de entender melhor este assunto que culminaram em termos como “capital social” ou “confiança”. Até o FMI andou durante algum tempo nesta onda com os trabalhos de Vito Tanci. Em cada país a informalidade funciona ao seu próprio jeito e cria a sua própria história (o que inclui regras e normas sociais).
Essa informalidade não implica necessariamente que os sistemas políticos estejam nas mãos de bandidos, mas pode produzir bandidos assim como pessoas íntegras. Podem também ser capturados por bandidos, o que até me parece ser o caso no Brasil agora e foi durante muitos anos também o caso na Itália. Mas não é inevitável. O Japão é, talvez, o melhor exemplo de como a informalidade pode lubrificar a política e a economia sem grandes transtornos para o país. Na verdade, aquelas pressões de fora para a probidade, combate à corrupção, transparência, etc., tornam na maior parte dos casos o sistema de informalidade mais forte, mais fechado, mais criminoso e, por vezes, mais violento. Só. O desafio, portanto, consiste em entender a morfologia desta informalidade e ver o que pode ser feito não para que ela não degenere (que isso ninguém pode controlar; essa é a má nova!), mas sim garantir que ela produza resultados positivos do ponto de vista social (que é o que o PT no Brasil fez se pegarmos no exemplo dum país onde a informalidade é gritante).
A informalidade moçambicana tem duas características principais. Uma tem a ver com a existência dum partido, a Frelimo, que inaugurou o campo político nacional baseado numa ideia mais ou menos difusa do “interesse nacional”. É em torno desta ideia que gravitam vários actores – sectores económicos nacionais de origem asiática, sectores ideológicos dentro do próprio partido, sectores económicos nacionais de origem urbana e africana, interesses económicos estrangeiros, doadores, ONGs, etc., etc. – que fazem as coisas andar, bem ou mal. Na verdade, gerir o país é gerir essa teia de interesses, o que envolve co-optar este ou aquele grupo, calar a boca a este ou aquele, e “esfriar” aos que ameaçam a estabilidade dessa informalidade. Não há como alterar este cenário sem desestabilizar o sistema político moçambicano. Isto explica, por exemplo, porque o MDM que subiu ao poder em algumas autarquias também com o propósito de acabar com a “corrupção” é hoje vítima de acusações de corrupção. A informalidade é endémica e inevitável. E ainda bem que é assim. A questão nunca pode ser de saber como acabar com ela, mas sim como colocá-la ao serviço deste ou daquele ideal político.
A outra característica da informalidade moçambicana é a imprevisibilidade do cotidiano, normal num país como o nosso, que faz com que as coisas andem na base de acertos individuais e espontâneos. Esses acertos funcionam como nós gingatescos que dão uma certa estabilidade à vida social. Não há ninguém em Moçambique, mas ninguém mesmo, que não dependa disto para a sua sobrevivência ou conforto. Cada um de nós deve favores a alguém, isto é cada um de nós contribui ao seu jeito – os brasileiros, de novo, chamam a isto de “jeitinho” – para a corrupção... A imprevisibilidade exacerba a dependência da informalidade, não a produz. E mais uma vez: a dependência com maior ou menor grau da informalidade é característica de todas as sociedades, mesmo na Europa é assim.
Se eu usasse a terminologia da indústria do desenvolvimento para descrever o mundo universitário europeu que, entretanto, conheço muito bem a palavra “corrupção” não iria faltar, mas estaria na verdade a falar desta informalidade. Não é sempre o melhor académico que ganha um concurso para ocupar uma cátedra; ganhou aquele que tem melhores redes de influência. Coisas aparentemente “transparentes” como “revisão de pares”, “pareceres de terceiros”, etc., podem, e são, com muita facilidade instrumentalizadas a favor dessa informalidade. Sem esticar muito o pescoço para fora da janela, tenho dito a colegas em várias universidades públicas por aqui que são um excelente campo de estudo para quem queira entender o Estado africano. À semelhança desse Estado, vivem de dinheiros alheios, são geridas por pessoas sem nenhuma vocação para tal e mais preocupadas consigo próprias do que com a instituição (há excepções, claro) e são movidas por pessoas em todo o tipo de teias de relações que querem viver à grande à custa de alguém (pesquisa, conferências, etc.) e por aí fora. Por vezes tenho surpreendido colegas da UEM quando lhes digo que a diferença entre a sua universidade e universidades europeias não é a melhor gestão das últimas, mas a quantidade de dinheiro que estas últimas se podem permitir desperdiçar. Que é também a diferença entre, por exemplo, os EUA e Moçambique, no fundo. Um dia vou escrever um livro sobre as universidades por aqui...
Portanto, a luta pela presidência da CTA é, num certo sentido, a luta por um lugar de destaque no sistema informal que sustenta a política e economia do nosso país. Repito: tudo normal. É um sistema de troca de favores baseado no pagamento imediato ou deferido quase ao estilo dum mercado financeiro especulativo. As normas funcionam apenas quando aqueles que estão envolvidos nas teias desse mercado não conseguem ultrapassar as suas divergências e ao mesmo tempo não têm poder suficiente para se imporem. A carga ética tão predilecta dos combatentes contra a corrupção não impressiona ninguém porque ela é irrelevante. Ou melhor, para ela impressionar a seja quem for tem que sair de dentro do próprio sistema. Quem quiser chamar a isto de corrupção que o faça. Eu diria que isto é a verdadeira (e única possível) política no nosso país. Não é boa, nem má. É.
Agora, quando os famosos doadores se chateiam com a “corrupção”, exigem transparência e até financiam campanhas e instituições contra a corrupção não estão necessariamente a revelar maior integridade e probidade. Estão a fazer várias coisas. Uma, que é cínica, é recusar assumir responsabilidade pelas consequências das falácias da própria indústria do desenvolvimento. A corrupção ajuda a “explicar” melhor os desaires que esta indústria sofre apontando simplesmente para a má fé dos próprios africanos. A outra coisa que fazem, perfeitamente racional, é usar o discurso da corrupção para se integrarem na informalidade moçambicana. Sim. O exemplo claríssimo disto é a reacção às “dívidas ocultas”. Barafustaram, cortaram ajuda, nhõnhonhõ, mas agora com o pé lá dentro já estão a prometer isto mais aquilo. O empregado do povo viaja pelo mundo e fecha negócio impávido e sereno como Bruce Lee. Não admira. É assim que eles fazem as coisas nos seus próprios países, só malta CIP, Gabinete de Combate contra a Corrupção, Transparência Internacional, Fundação Mo Ibrahim, etc. é que acredita no conto de fadas da integridade pública como principal factor de sucesso político e económico.
Então, compatriotas, mais uma vez, vamos deixar esse assunto da corrupção para esses lá de fora. Não nos ajuda a pensar melhor o país. Distrai-nos apenas. Vamos pensar na produção local de política e como a sua morfologia nos pode ajudar a descortinar os caminhos que precisam de ser trilhados para que a política surta o tipo de efeitos que gostaríamos de ver. Temos que entender a informalidade e trabalhar com ela. E esquecer a corrupção que não é nosso assunto. Confesso: basta ouvir alguém a explicar os problemas africanos com recurso à corrupção perco logo respeito por essa pessoa.
O texto é bem longo e impróprio para moralistas.
Há assuntos que precisam de ser constantemente tratados até pelo menos as pessoas concluírem com toda a certeza que ou somos loucos mesmo, ou então saberem porque estamos profundamente equivocados. A corrupção é um deles. Sobre este assunto tenho uma opinião já feita e que nunca escondi, apesar de saber que me coloca em posição de fora do jogo. Não é a causa dos nossos problemas de desenvolvimento, não merece a prioridade que tem recebido de muitas instituições e o discurso em seu torno é um dos maiores obstáculos a uma abordagem intelectual mais útil dos problemas do país. A luta contra a corrupção é a outra maneira de fazer o trabalho de Marracuene, aquilo que noutras partes do mundo é conhecido por trabalho de Sísifo.
E como sempre nestes assuntos é preciso tornar certas coisas claras. Primeiro, não é correcto desviar fundos públicos. Segundo, não é correcto atribuir empreitadas públicas a quem paga melhor ou faz parte do círculo de amigos ou de apoiantes do partido no governo, e não a quem faz um trabalho bom. Terceiro, extorquir dinheiro ao público e aceitar subornos por um trabalho que deve ser prestado também não é correcto. Quarto, actos de corrupção precisam de ser punidos conforme previsto pela lei. Sei que alguém vai perguntar porque, então, estou contra as campanhas anti-corrupção se considero as suas práticas e manifestações incorrectas e merecedoras de punição. É assim, eu acho que tossir é mau, mas não considero que isso seja a razão da nossa má saúde. Uma coisa é manifestação dum mal, outra é a causa desse mal. A corrupção é uma das manifestações da ausência de desenvolvimento (ou se quiserem do subdesenvolvimento ou da pobreza), não a sua causa. Na verdade, a corrupção nem é um bom termo para descrever o problema.
É difícil entender isto por uma razão muito simples. O discurso do desenvolvimento opera ao nível de platitudes. Alguém imagina os biliões de dólares que autocratas africanos deposita(ra)m fora dos seus países, olha para o estado lastimável das estradas, da saúde, da educação, etc. e fica aí a pensar que é esse dinheiro que teria resolvido todos os problemas. O argumento parece imbatível. Mas não presta. Ninguém sabe o que teria acontecido com esse dinheiro se não tivesse sido “exportado”. As mesmas condições que tornaram possível que alguém roubasse esse dinheiro teriam, de certeza, contribuído para que esse dinheiro nao fosse usado para esses fins. Uma sociedade que não consegue impedir isso não vai poder colocar esse dinheiro ao serviço de seja o que for. É por isso que me rio com tristeza quando vejo aquele vídeo do Centro de Integridade Pública a mostrar o número de escolas, hospitais, kilómetros de estradas, etc. que o dinheiro das “dívidas ocultas” teria construído. Dá para agitar as pessoas, mas a correlação é duma simplicidade arrepiante porque não aborda o problema na base, isto é as condições sociais que tornam possível esse alheamento, se assim o quisermos chamar, de algumas pessoas e de alguns decisores políticos. É fogo de artifício.
Portanto, é necessário olhar para a morfologia deste problema e dela tirar ilações. Voltei a pensar neste assunto por causa de duas coisas, nomeadamente essa campanha para a presidência da Confederação das Associações Económicas (CTA) e os problemas políticos que abalam o Brasil, cujo denominador comum é a corrupção. A CTA é interessante porque a campanha é renhida, por vezes com jogo abaixo da cintura, e deixa muita gente curiosa em entender porque adultos com outras ocupações investem tanta energia em algo tão simbólico como aquilo? A resposta a esta questão contém alguns elementos que nos podem dar uma ideia dessa morfologia. Quanto ao Brasil, bom, o que a gente vê lá hoje é o que pode acontecer a um sistema “funcional” quando os seus alicerces são abalados por razões que põem em causa os seus princípios reguladores. Foi o que as políticas do PT fizeram ameaçando comprometer o status quo, exacerbadas pela reacção dos adversários do PT que ao invés de restabelecer o equilíbrio normal expuseram toda a base operacional do sistema político brasileiro. Mas não era inevitável que assim fosse. O sistema podia ter continuado e, como o PT mostrou, com benefício para o país.
Como sou sociólogo a abordagem tem que ser mesmo sociológica. E ela começa por uma distinção muito importante. Em qualquer sociedade existem regras sociais e normas sociais. Não são a mesma coisa. Normas sociais ditam o que deve ser feito. Regras sociais formulam o que significa fazer alguma coisa. Dito doutro modo, seguir regras, por mais curioso que possa parecer, é a coisa menos natural da vida social. A regularidade da vida social é que nos faz erroneamente pensar que está tudo bem porque seguimos regras. O mais normal é estarmos mais empenhados a produzir as condições em que regras podem, potencialmente, ser seguidas. E isso faz-se na informalidade. A informalidade é o que faz as sociedades funcionarem. As regras são apenas balizas que dão às pessoas uma ideia mais exacta do que é necessário contornar, e como, para que as coisas sejam feitas. É assim em Moçambique, no Japão, nos EUA, na Alemanha, no Ruanda e na Coreia do Norte. Não importa se país em desenvolvimento, industrializado, democrático, autoritário, etc. A informalidade é a cola que junta.
É, contudo, neste contexto de informalidade marcado pela produção das condições em que as regras podem ser seguidas que as normas emergem e podem ser seguidas, ou não. Neste sentido, essas normas não precisam de ser “boas” no sentido, digamos, cristão da ética. O que importa é que essa norma tenha um contexto bem específico dentro do qual ela consegue influenciar o comportamento das pessoas. É assim, por exemplo, que a norma de matar para proteger o grupo num contexto criminoso pode surgir e vingar. Há por detrás disso toda uma história comportamental que confere um significado bem específico ao que as pessoas fazem. Na Alemanha, por exemplo, durante anos a fio o governo liderado pela União Cristã Democrática recebeu aquilo que os brasileiros chamam de “propina” em violação da lei de financiamento de partidos em troca de favores às empresas benefactoras. Até tinha contas na Suíça para fugir ao fisco. Esse escândalo, quando explodiu, arrastou consigo Helmut Kohl, o qual até hoje se recusa a divulgar os nomes das empresas que lhe deram o dinheiro. E a justificação que ele dava no início era de que tinha dado a sua palavra a essas empresas que não iria divulgar os seus nomes (sente-se acima da lei, tal e qual a caricatura que se tem de líderes africanos). Agora diz que se esqueceu...
A informalidade é crucial para a estabilidade de qualquer sistema político. Não são as instituições que dão força aos sistemas políticos, mas sim a coerência e consistência da informalidade que lhes é subjacente porque é na sua base que as instituições se tornam viáveis. É por isso que insisto nesta ideia e me coloco do outro lado da trincheira daqueles que veneram os trabalhos de Robinson e Acemoglu: a força e estabilidade das instituições não é anterior ao desenvolvimento. É seu resultado. Já houve várias tentativas de entender melhor este assunto que culminaram em termos como “capital social” ou “confiança”. Até o FMI andou durante algum tempo nesta onda com os trabalhos de Vito Tanci. Em cada país a informalidade funciona ao seu próprio jeito e cria a sua própria história (o que inclui regras e normas sociais).
Essa informalidade não implica necessariamente que os sistemas políticos estejam nas mãos de bandidos, mas pode produzir bandidos assim como pessoas íntegras. Podem também ser capturados por bandidos, o que até me parece ser o caso no Brasil agora e foi durante muitos anos também o caso na Itália. Mas não é inevitável. O Japão é, talvez, o melhor exemplo de como a informalidade pode lubrificar a política e a economia sem grandes transtornos para o país. Na verdade, aquelas pressões de fora para a probidade, combate à corrupção, transparência, etc., tornam na maior parte dos casos o sistema de informalidade mais forte, mais fechado, mais criminoso e, por vezes, mais violento. Só. O desafio, portanto, consiste em entender a morfologia desta informalidade e ver o que pode ser feito não para que ela não degenere (que isso ninguém pode controlar; essa é a má nova!), mas sim garantir que ela produza resultados positivos do ponto de vista social (que é o que o PT no Brasil fez se pegarmos no exemplo dum país onde a informalidade é gritante).
A informalidade moçambicana tem duas características principais. Uma tem a ver com a existência dum partido, a Frelimo, que inaugurou o campo político nacional baseado numa ideia mais ou menos difusa do “interesse nacional”. É em torno desta ideia que gravitam vários actores – sectores económicos nacionais de origem asiática, sectores ideológicos dentro do próprio partido, sectores económicos nacionais de origem urbana e africana, interesses económicos estrangeiros, doadores, ONGs, etc., etc. – que fazem as coisas andar, bem ou mal. Na verdade, gerir o país é gerir essa teia de interesses, o que envolve co-optar este ou aquele grupo, calar a boca a este ou aquele, e “esfriar” aos que ameaçam a estabilidade dessa informalidade. Não há como alterar este cenário sem desestabilizar o sistema político moçambicano. Isto explica, por exemplo, porque o MDM que subiu ao poder em algumas autarquias também com o propósito de acabar com a “corrupção” é hoje vítima de acusações de corrupção. A informalidade é endémica e inevitável. E ainda bem que é assim. A questão nunca pode ser de saber como acabar com ela, mas sim como colocá-la ao serviço deste ou daquele ideal político.
A outra característica da informalidade moçambicana é a imprevisibilidade do cotidiano, normal num país como o nosso, que faz com que as coisas andem na base de acertos individuais e espontâneos. Esses acertos funcionam como nós gingatescos que dão uma certa estabilidade à vida social. Não há ninguém em Moçambique, mas ninguém mesmo, que não dependa disto para a sua sobrevivência ou conforto. Cada um de nós deve favores a alguém, isto é cada um de nós contribui ao seu jeito – os brasileiros, de novo, chamam a isto de “jeitinho” – para a corrupção... A imprevisibilidade exacerba a dependência da informalidade, não a produz. E mais uma vez: a dependência com maior ou menor grau da informalidade é característica de todas as sociedades, mesmo na Europa é assim.
Se eu usasse a terminologia da indústria do desenvolvimento para descrever o mundo universitário europeu que, entretanto, conheço muito bem a palavra “corrupção” não iria faltar, mas estaria na verdade a falar desta informalidade. Não é sempre o melhor académico que ganha um concurso para ocupar uma cátedra; ganhou aquele que tem melhores redes de influência. Coisas aparentemente “transparentes” como “revisão de pares”, “pareceres de terceiros”, etc., podem, e são, com muita facilidade instrumentalizadas a favor dessa informalidade. Sem esticar muito o pescoço para fora da janela, tenho dito a colegas em várias universidades públicas por aqui que são um excelente campo de estudo para quem queira entender o Estado africano. À semelhança desse Estado, vivem de dinheiros alheios, são geridas por pessoas sem nenhuma vocação para tal e mais preocupadas consigo próprias do que com a instituição (há excepções, claro) e são movidas por pessoas em todo o tipo de teias de relações que querem viver à grande à custa de alguém (pesquisa, conferências, etc.) e por aí fora. Por vezes tenho surpreendido colegas da UEM quando lhes digo que a diferença entre a sua universidade e universidades europeias não é a melhor gestão das últimas, mas a quantidade de dinheiro que estas últimas se podem permitir desperdiçar. Que é também a diferença entre, por exemplo, os EUA e Moçambique, no fundo. Um dia vou escrever um livro sobre as universidades por aqui...
Portanto, a luta pela presidência da CTA é, num certo sentido, a luta por um lugar de destaque no sistema informal que sustenta a política e economia do nosso país. Repito: tudo normal. É um sistema de troca de favores baseado no pagamento imediato ou deferido quase ao estilo dum mercado financeiro especulativo. As normas funcionam apenas quando aqueles que estão envolvidos nas teias desse mercado não conseguem ultrapassar as suas divergências e ao mesmo tempo não têm poder suficiente para se imporem. A carga ética tão predilecta dos combatentes contra a corrupção não impressiona ninguém porque ela é irrelevante. Ou melhor, para ela impressionar a seja quem for tem que sair de dentro do próprio sistema. Quem quiser chamar a isto de corrupção que o faça. Eu diria que isto é a verdadeira (e única possível) política no nosso país. Não é boa, nem má. É.
Agora, quando os famosos doadores se chateiam com a “corrupção”, exigem transparência e até financiam campanhas e instituições contra a corrupção não estão necessariamente a revelar maior integridade e probidade. Estão a fazer várias coisas. Uma, que é cínica, é recusar assumir responsabilidade pelas consequências das falácias da própria indústria do desenvolvimento. A corrupção ajuda a “explicar” melhor os desaires que esta indústria sofre apontando simplesmente para a má fé dos próprios africanos. A outra coisa que fazem, perfeitamente racional, é usar o discurso da corrupção para se integrarem na informalidade moçambicana. Sim. O exemplo claríssimo disto é a reacção às “dívidas ocultas”. Barafustaram, cortaram ajuda, nhõnhonhõ, mas agora com o pé lá dentro já estão a prometer isto mais aquilo. O empregado do povo viaja pelo mundo e fecha negócio impávido e sereno como Bruce Lee. Não admira. É assim que eles fazem as coisas nos seus próprios países, só malta CIP, Gabinete de Combate contra a Corrupção, Transparência Internacional, Fundação Mo Ibrahim, etc. é que acredita no conto de fadas da integridade pública como principal factor de sucesso político e económico.
Então, compatriotas, mais uma vez, vamos deixar esse assunto da corrupção para esses lá de fora. Não nos ajuda a pensar melhor o país. Distrai-nos apenas. Vamos pensar na produção local de política e como a sua morfologia nos pode ajudar a descortinar os caminhos que precisam de ser trilhados para que a política surta o tipo de efeitos que gostaríamos de ver. Temos que entender a informalidade e trabalhar com ela. E esquecer a corrupção que não é nosso assunto. Confesso: basta ouvir alguém a explicar os problemas africanos com recurso à corrupção perco logo respeito por essa pessoa.
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