TURQUIA
Resta-nos esperar que não se confirme o pior dos cenários: que esta revisão constitucional seja uma encenação, uma máscara diáfana que visa a perpetuação no poder de uma ideologia político-partidária.
O separatismo curdo, a crise dos refugiados sírios, a ameaça terrorista, a desvalorização da moeda, a instabilidade económico-financeira são apenas alguns dos problemas que o Estado turco tem enfrentado.
O sistema de governo turco é de cariz parlamentar, o que, em traços brevíssimos, significa que existe uma relação de confiança (fiducia) entre o poder legislativo e o poder executivo. O Governo necessita de uma investidura parlamentar para entrar em funções e está sob vigilância constante do Parlamento. No limite e se não concordar com a condução política do Governo, o Parlamento aprovará uma moção de censura ao Governo, que poderá (dependendo da maioria exigida) ter como consequência a sua demissão.
Num olhar de história constitucional turca, há três décadas que se debate a pertinência de um sistema parlamentar. Muitas vozes advogam que um sistema presidencial impediria bloqueios políticos, obstaria a alianças partidárias frágeis e voláteis, e tornaria o governo do país mais facilitado, consequentemente fomentando o desenvolvimento económico. Em 2007, foi dado o primeiro passo para cumprir este desiderato, tendo sido a Constituição revista para possibilitar a eleição por sufrágio direto e universal do Chefe de Estado. Sete anos mais tarde, Erdoğan foi eleito Presidente da Turquia.
Em meados de julho de 2016, o golpe de Estado falhado fundamentou a declaração presidencial do estado de emergência. Aproveitando o ambiente político de insegurança e incerteza, reintroduziu-se a questão da transição para um sistema de governo presidencial. Pouco depois, a lei de revisão constitucional, aprovada pelo Parlamento em janeiro deste ano, consagrou um aumento exponencial dos poderes presidenciais e a transição para um sistema de governo presidencial. Por exigência constitucional, as leis de revisão carecem de referendo. No dia 16 deste mês e após consulta popular, foi notificado um resultado positivo.
Os 18 artigos que integram a revisão constitucional (e que, por sua vez, alterarão/revogarão cerca de 76 artigos da Constituição turca) contemplam várias alterações, das quais destacamos: (a) o desaparecimento da figura do Primeiro-Ministro; (b) o Presidente designará o seu executivo, não existindo um Governo como órgão dotado de autonomia executiva; (c) o Presidente poderá cumular o exercício do seu cargo com funções políticas no seu partido, inclusivamente a liderança partidária (podendo, minha perspetiva, influenciar assim as eleições legislativas); (d) as eleições legislativas e do chefe de Estado ocorrerão ao mesmo tempo, o que a meu ver acaba por retirar protagonismo às eleições legislativas, funcionalizando-as às eleições presidenciais; (e) o Presidente escolhe, direta ou indiretamente, a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional e do Conselho Supremo de juízes e de procuradores, o que trará consigo sérios riscos de politização do poder judicial; (f) o Presidente poderá participar no procedimento legislativo parlamentar, sendo que esta interferência presidencial se agudiza na hipótese de a cor política do Presidente ser a mesma da maioria política parlamentar; (g) apesar de estar consagrada a possibilidade de impeachment, as restrições são tão gravosas que acabam por esvaziar o sentido útil desta figura.
O que dizer de tudo isto? Em primeiro lugar, o instituto da revisão constitucional não me causa nenhumas reservas. Nenhum texto constitucional é sacrossanto. A Constituição brasileira de 1988 foi já emendada 92 vezes. Em 2008, no ano em que se comemorava o seu quinquagésimo aniversário, a Constituição francesa foi revista em cerca de um terço. A atual Constituição portuguesa sofreu algumas revisões, tendo as revisões de 1982 e de 1989 sido absolutamente cruciais para a depuração ideológica do texto constitucional.
A figura da revisão constitucional visa impedir que o “constitutional design” de uma geração (os pais fundadores) se imponha, de uma vez para sempre, às gerações presentes e vindouras. Nesta medida e dentro dos limites materiais do poder constituinte, cada geração terá direito à sua Constituição. Se a comunidade política não se revê na Constituição, então esta será uma constituição nominal, uma “folha de papel” (Lassale), um mero exercício frívolo de erudição. Se o texto constitucional pretende permanecer em vigor, terá de acompanhar o devir dos tempos. Esta abertura constitucional é vital para a subsistência e atualização do texto constitucional.
Em segundo lugar, é preocupante o tempo em que decorreu a revisão constitucional turca. Não nos podemos esquecer que a Turquia está ainda em estado de emergência (foi prorrogado até ao dia 19 deste mês). Em Portugal, seria impossível rever a constituição, pois a própria Constituição portuguesa impede, no seu artigo 289.º, revisões constitucionais durante o estado de sítio ou de emergência. O intuito desta proibição é impedir que o processo de revisão constitucional se desenrole sem a vontade livre e esclarecida do legislador de revisão. É preciso não esquecer que, durante o estado de emergência, podem ser suspensos, em maior ou menor medida, vários direitos dos cidadãos. Na Turquia e desde a vigência do estado de exceção, foram suspensos de funções centenas de juízes e procuradores, tendo-se registado inclusivamente várias prisões de magistrados, justificadas com o argumento de “afiliações terroristas”. Por outro lado, um número preocupante de professores foi objeto de perseguição política, o que metamorfoseia a liberdade de ensino numa vã miragem. A este propósito, aconselho a leitura de um texto perturbador, escrito por Kelmar Gözler, um professor de Direito Constitucional reformado, que tenta explicar as razões que subjazem ao silêncio tumular dos constitucionalistas turcos. Segundo o professor, “o medo sufoca a vida académica e intelectual do país”.
Em terceiro lugar, tenho dúvidas em classificar o novo desenho constitucional turco como meramente “presidencial”. Os traços de forte presidencialismo executivo, a existência diminuída do poder judicial, o intermitente perigo da violação da separação de poderes, a restrição dos freios e contrapesos (checks and balances) democráticos, não auguram boas notícias. Concomitantemente, num cenário de grande polarização mundividencial e política, o risco de populismo é exacerbado.
Resta-nos esperar que não se confirme o pior dos cenários: que esta revisão constitucional seja uma encenação, uma máscara diáfana que visa a perpetuação no poder de uma ideologia político-partidária. Sem a espada de Dâmocles da separação dos poderes, a democracia nada mais é do que a negação do direito.
Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa