OPINIÃO
A direita extrema que Le Pen representa é das mais perigosas da Europa, porque não só é mesmo aquilo que dizemos que ela é, como ganhou já bastante.
Macron e Le Pen passam à segunda volta com uma diferença mínima, ambos acima dos vinte por cento. Pelo caminho ficam, pesadamente derrotados, os socialistas e os gaulistas. O candidato da esquerda radical teve praticamente os mesmos votos que Fillon, o gaulista. Tudo isto era mais ou menos previsível, mas é no seu conjunto uma mudança importante na política francesa, tanto mais importante quanto vai no sentido de mudanças idênticas noutros países como a Holanda. A mudança principal é a que traduz em termos eleitorais a crise dos grandes partidos do centro-direita e do centro-esquerda e o ascenso de forças populistas e radicais de direita, claramente xenófobas e racistas.
Macron, que tudo indica vai ser o próximo Presidente da França, é o retrato do medo dos franceses, o candidato que não é carne nem peixe, e por isso mesmo o único obstáculo a Marine Le Pen. Verdade seja que Le Pen deve meter medo, muito medo, mas mesmo perdendo, ganha. O que é preocupante, não é o facto dos candidatos da Frente Nacional, Le Pen, pai e a filha, nunca ganharem na segunda volta das presidenciais, é que reforçam significativamente a sua posição. Hoje a Frente Nacional é o primeiro partido francês, e a sua candidatura presidencial tem um partido por trás, enquanto que a de Macron não tem. Ele fará arranjos a partir da presidência, mas esses arranjos não servem para as legislativas, nem para as eleições locais. Aí Le Pen está a conseguir um poder orgânico e territorial, que este resultado eleitoral vai reforçar.
Olhemos para Le Pen e o seu partido, que não é uma força marginal na França, mas o mais importante partido de extrema-direita da Europa. E eu não uso a expressão extrema-direita sem pensar que se trata mesmo de extrema-direita. Marine Le Pen foi às urnas em França com um apoio que pareceria impossível e bizarro, mas que retrata bem os dias políticos de hoje: Trump e Putin. Putin recebeu-a com honras no Kremlin, e Trump apoia-a nos seus tweets. Os dois têm muita coisa em comum, pensam muita coisa da mesma maneira e, mesmo que não possam materializar essa comunidade de pensamento tanto como queriam, principalmente Trump, não deixam de ser em muitas coisas “irmãos em armas”. E, uma das coisas que os une, é exactamente Marine Le Pen de que ambos são apoiantes sem disfarce.
A novidade da actual situação geoestratégica torna por isso as eleições francesas não só relevantes para a Europa, quer a geográfica, quer a institucional, mas também para o mundo. E a situação é tanto mais nova, quanto uma candidata da extrema-direita como Le Pen, vai ao Kremlin, sem temer pela sua reputação anticomunista que, quer se queira quer não, ainda está associada à Rússia e a Putin. E Trump, um Presidente da democracia americana, não tem pejo de apoiar a mais proeminente representante na política europeia do radicalismo de direita que seria pestífera para qualquer outro Presidente americano.
Le Pen é, como Trump, a face da mudança nas actuais eleições presidenciais e tem votos só por isso, pelo cansaço enorme do eleitorado em relação aos partidos tradicionais. Vai ser ela a ter o voto de protesto, que hoje a esquerda europeia parece incapaz de conseguir, pela combinação da decadência dos partidos socialistas, com o acantonamento da esquerda mais radical, embora esta tenha em França um candidato que sobrevive mais do que os socialistas à hecatombe da esquerda. Como aconteceu com o Partido Republicano nos EUA, o centro e o centro-direita, ou mesmo a direita um pouco mais moderada que Le Pen estão profundamente divididos e envolvidos em escândalos sucessivos. Como aconteceu com Trump, escândalos da mesma natureza não afectam Le Pen como afectam Fillon. O espírito tribal dos seus apoiantes, faz com que nada atinja o coração do seu eleitorado e esse coração tem crescido.
Mas Le Pen não é Trump, é a linha actual de uma das piores tradições políticas da França, fascista nos anos trinta, colaboracionista durante a guerra, virulentamente defensora da Argélia francesa, católica integrista, monárquica, e acima de tudo muito xenófoba, mesmo muito xenófoba. O seu momento de glória e traição foi a colaboração durante a guerra com o ocupante alemão, criando uma incomodidade na história francesa muito mais pegajosa do que a alemã. Na Alemanha, quase todos foram coniventes com nazis, para usar um eufemismo, cometeram com conhecimento generalizado, as maiores violências, mas a derrota da guerra de alguma maneira limpou mais o ar do que aconteceu em França. Claro que muitos alemães tiveram de ser “reciclados” para a nova Alemanha, quer de um lado quer do outro do Muro, mas não havia condições para esconder o que aconteceu, nem para haver muita nostalgia dos anos de Hitler. Houve sempre uma franja nazi na clandestinidade e uma franja neo-nazi gerada já nos anos do pós-guerra, mas não passou daí e mesmo hoje, cresce mas muito mais acantonada do que a Frente Nacional e fora do mainstream político. Mas em França a colaboração permaneceu sempre como uma doença geradora de vergonha, um tabu, no qual uma certa forma de fascismo francês, já sem a “Francisca” mas com o galo e a tricolor, continuou sempre com mais apoio do que os franceses querem admitir. Os herdeiros da Action Française e do Senhor Poujade, misturando senhoritos da nobreza rural, com os merceeiros, os pieds-noir e uma França “negra” que existe na Igreja e nas municipalidades, foi sempre uma parte indelével da paisagem política francesa. A guerra da Argélia revelou como os franceses foram capazes de cometer, com bastante apoio metropolitano, as maiores violências, incluindo o uso generalizado da tortura. De Gaulle travou o crescimento dessa França, como mais tarde Mitterrand, mas ela estava lá e está cá.
Como, na peste francesa, o nacionalismo mesmo em extremos ridículos de negação da realidade, tinha um papel crucial, ele iria desembocar num racismo e xenofobia que se tornou praticamente o programa da Frente Nacional e, mais do que no programa, a sua marca de identidade. Numa nação que tem historicamente uma importante população de origem argelina, negros das antigas colónias francesas em África, que foi a potência que administrou o Líbano e a Síria, depois da I Guerra, e que tem um número muito significativo de população muçulmana, a Frente Nacional é um perigo público. A crise económica, a marginalização de muitos franceses em comunidades que sentiam ser “suas”, por gente com hábitos e costumes que parecem afrontá-los (e às vezes os afrontam de facto, porque há muitas vezes dois lados neste tipo de conflitos, e ambos maus), uma juventude de origem árabe, nascida francesa, mas perdida nas periferias, sem emprego e com uma cultura de crime e violência, tudo isso fez e faz crescer a Frente Nacional.
A direita extrema que Le Pen representa é das mais perigosas da Europa, porque não só é mesmo aquilo que dizemos que ela é, como a verdade, por muito que nos custe, é que Le Pen ganhou já bastante e qualquer ganho para Le Pen é muito preocupante. Nem sequer me refiro à Europa porque esta está na situação de que ganhar é não perder, o que não é brilhante. Vai andar feliz uma semana ou duas e depois tudo começa na mesma.
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