Elisio Macamo
O Manifesto Comunista usa uma frase de Jean Jacques Rousseau: “o homem nasce livre, mas em todo o lado vive acorrentado“ extraída do livro “Do contracto social”. Esse livro é interessante por nele o autor tentar aprofundar uma tese que havia levantado num ensaio, “discurso sobre a desigualdade”, segundo a qual o homem seria por natureza bom e se tornava mau por causa das instituições. O que acho curioso é que Rousseau ele próprio ficou “bom” graças às instituições, mais especificamente ao prémio que ele ganhou por um outro ensaio, “discurso sobre a ciência”, que fez uma grande reviravolta na sua vida. Deixou de assediar velhinhas (para viver à sua custa), deixou de mentir sobre a sua religião (para ter abrigo) e, acima de tudo, deixou de roubar e imputar isso a gente inocente como o fez quando acusou uma empregada da casa onde ele viveu, também às custas duma velhinha aristocrática, de lhe ter oferecido uma fita com uma medalha de prata que ele próprio havia roubado (a confissão é dele mesmo) e fez com que ela perdesse o seu emprego.
Faço este recuo para voltar à questão da miséria da crítica que levantei há algumas postagens atrás. A questão continua a incomodar-me, sobretudo a sensação de que ainda não expliquei muito bem o que me incomoda. O Centro de Integridade Pública proporciona-me uma oportunidade para ver se corrijo isso. É uma instituição também e, como tal, até pode justificar as dúvidas de Rousseau sobre o efeito nocivo de instituições no nosso carácter. Só que como prefiro entrar em desacordo com Rousseau – também em solidariedade com todas as empregadas domésticas do mundo (uni-vos, por favor!) – não vou insistir nessa tecla. No seu mais recente boletim o CIP publica os resultados preliminares duma peça de jornalismo investigativo sobre a importação ilegal de viaturas, fenómeno que é descrito como sendo uma “máfia que custa milhões ao estado”. O trabalho é da autoria de dois jornalistas, nomeadamente Lázaro Mabunda e Borges Nhamirre. É um trabalho bem documentado que revela os níveis de podridão das instituições que lidam com todo o processo de importação de viaturas. Muito grave mesmo. O aspecto desse trabalho que parece estar a merecer muita atenção por parte da esfera pública é, como não podia deixar de ser, o que diz respeito ao envolvimento de partidos políticos no abuso de isenções fiscais. É natural que os adversários políticos desses partidos façam uso dessas revelações para fazerem... política.
Não consigo encontrar nesta história do CIP razões suficientemente fortes para condenar o MDM. Repito: quem quer fazer discussão política tem matéria que basta para se fazer à luta. O meu problema é que essa discussão política vai apenas satisfazer o interesse político de colocar mal o adversário sem necessariamente elevar a qualidade do debate público. Pela informação proporcionada pelo trabalho em questão o problema da importação criminosa de viaturas é muito maior do que o abuso das isenções fiscais pelos partidos políticos. Mesmo quando os autores, indignados, falam dos milhões de Meticais que isso custa ao Estado vejo apenas uma hipérbole que tenta fazer uma montanha parir um rato. Não é obrigatório importar carros (de luxo) pelo que o dinheiro que não entra nos cofres do Estado não é necessariamente dinheiro cuja ausência dói. É verdade que os efeitos (negativos) da presença desses veículos no país podem implicar despesas da parte do Estado (estradas, serviços, etc.), mas essa é uma contabilidade que se faz sem muito moralismo, suponho.
A minha questão é a seguinte: que discussão é que um trabalho desta natureza deveria suscitar entre nós? Apenas a indignação moral politicamente fingida? Ou por outra, que assuntos de relevância política substancial podem ser descortinados por detrás do fenómeno desta “máfia que custa milhões ao Estado”? O próprio trabalho levanta algumas questões, quase todas elas relacionadas com o facto de haver funcionários corruptos, de as leis estarem desfasadas da realidade, problemas técnicos (falta de serviços informatizados, por exemplo) e, acima de tudo, conluios de toda a espécie entre gente que devia observar a ética da função pública e gente criminosa que vive da falta de integridade. Estas são questões importantes que, de certeza, desempenham um papel. Mas são elas suficientes para entender os problemas? São suficientes para estruturar um programa político? Será que servem para constarem dum manifesto eleitoral, tipo “o nosso partido é contra a importação ilegal de viaturas e se for eleito vai acabar com isso”? Entre nós tudo é possível e não ficaria admirado se isso aparecesse como programa político. Mas, lá está, é suficiente? O que dizem as pessoas mais abalizadas, os académicos que trabalham sobre os vários assuntos aflorados nesse trabalho?
Durante a leitura desse trabalho jornalístico o que me veio à cabeça não foi a podridão dos serviços ligados à importação de viaturas. Foi, sim, o facto de nessa área se repetir um fenómeno generalizado e que a imaginação popular resume no adágio segundo o qual o cabrito comeria onde está amarrado. Este parece-me o problema essencial, o primeiro, que precisa de ser reflectido para além do escândalo imediato sugerido pelo abuso de isenções por partidos políticos. Só que no nosso país é difícil abordar este tipo de questões porque a nossa imaginação foi colonizada por um vocabulário moralista proveniente da indústria do desenvolvimento que usa esse tipo de escândalos não para entender os nossos problemas, mas sim para justificar os seus próprios desaires. O próprio CIP, sem prejuízo de todo o trabalho notável de informação que tem feito, é refém dessa lógica, razão pela qual muita da sua produção tem mais o carácter de denúncia do que propriamente de análise crítica. Isto é, critica o que está mal, não analisa necessariamente o funcionamento das coisas. Há diferença. O olhar que ela lança às coisas não é o olhar de quem está directamente afectado apesar de toda a retórica dos “nossos impostos” ou do “nosso Estado” que enfeita as suas publicações. Não é o olhar das agências de importação de viaturas que são afectadas por essas práticas ilícitas, dos agentes aduaneiros contornados pelos traficantes de “bonecos”, dos agentes policiais honestos que vêem a sua imagem denegrida pelas ovelhas negras, enfim, de verdadeiras associações de contribuintes que exigem ao Estado maior cuidado na arrecadação e uso de receitas fiscais. É o olhar de consultores, um olhar necessário sem dúvidas, mas no final de todas as contas um olhar que atiça as chamas da indignação pelo simples prazer da própria indignação.
Eis, então, o segundo problema: como se faz a articulação de interesses no nosso país? Que mecanismos de co-optação impedem que pelo processo normal de concorrência no mercado económico e político se constitua um espaço político que produz, ele próprio, normas contra práticas ilícitas e interesse pela legalidade? Não tenho resposta para estas perguntas, mas penso que elas são cruciais para entender a extensão do problema da importação ilegal de viaturas. No fundo, estamos perante um problema político que ultrapassa o oportunismo fiscal de partidos políticos. Estamos perante um problema de cultura política que não se resolve apenas com apelos morais e cuja ignorância persistente só vai servir para produzir balões de ar úteis à campanha eleitoral, mas inúteis como contribuição para um melhor entendimento dos problemas que a política devia abordar. É complicado. E só para ver a extensão dessa complicação é interessante notar o que o líder do MDM diz em defesa do seu partido. Ele acha injusto que a Autoridade Tributária de Moçambique exija que o seu partido devolva os valores sonegados com recurso a um argumento legítimo, mas irrelevante: o seu partido informou à ATM sobre o assunto. Eu acredito que ele fez isso, mas tratando-se dum caso criminal não é à ATM que ele deve informar, mas sim à Polícia de Investigação Criminal. Se o princípio fosse o que ele enuncia, então, todo o ladrão (na iminência de ser apanhado) ia dizer ao dono dos bens que não sabe como eles foram parar em sua casa. Isso revela uma certa perplexidade em relação à forma como o sistema jurídico e judicial funciona, e isso também é parte do problema que, infelizmente, não vamos discutir.
Ou talvez sim. De qualquer maneira, só para voltar a Rousseau, esse grande apóstolo da incoerência, a análise que é feita pelo simples prazer de falar para a ética do momento, pode perdurar, mas é de pouca utilidade como guia da acção política eficaz. E esse é o problema com a miséria da crítica."
O Manifesto Comunista usa uma frase de Jean Jacques Rousseau: “o homem nasce livre, mas em todo o lado vive acorrentado“ extraída do livro “Do contracto social”. Esse livro é interessante por nele o autor tentar aprofundar uma tese que havia levantado num ensaio, “discurso sobre a desigualdade”, segundo a qual o homem seria por natureza bom e se tornava mau por causa das instituições. O que acho curioso é que Rousseau ele próprio ficou “bom” graças às instituições, mais especificamente ao prémio que ele ganhou por um outro ensaio, “discurso sobre a ciência”, que fez uma grande reviravolta na sua vida. Deixou de assediar velhinhas (para viver à sua custa), deixou de mentir sobre a sua religião (para ter abrigo) e, acima de tudo, deixou de roubar e imputar isso a gente inocente como o fez quando acusou uma empregada da casa onde ele viveu, também às custas duma velhinha aristocrática, de lhe ter oferecido uma fita com uma medalha de prata que ele próprio havia roubado (a confissão é dele mesmo) e fez com que ela perdesse o seu emprego.
Faço este recuo para voltar à questão da miséria da crítica que levantei há algumas postagens atrás. A questão continua a incomodar-me, sobretudo a sensação de que ainda não expliquei muito bem o que me incomoda. O Centro de Integridade Pública proporciona-me uma oportunidade para ver se corrijo isso. É uma instituição também e, como tal, até pode justificar as dúvidas de Rousseau sobre o efeito nocivo de instituições no nosso carácter. Só que como prefiro entrar em desacordo com Rousseau – também em solidariedade com todas as empregadas domésticas do mundo (uni-vos, por favor!) – não vou insistir nessa tecla. No seu mais recente boletim o CIP publica os resultados preliminares duma peça de jornalismo investigativo sobre a importação ilegal de viaturas, fenómeno que é descrito como sendo uma “máfia que custa milhões ao estado”. O trabalho é da autoria de dois jornalistas, nomeadamente Lázaro Mabunda e Borges Nhamirre. É um trabalho bem documentado que revela os níveis de podridão das instituições que lidam com todo o processo de importação de viaturas. Muito grave mesmo. O aspecto desse trabalho que parece estar a merecer muita atenção por parte da esfera pública é, como não podia deixar de ser, o que diz respeito ao envolvimento de partidos políticos no abuso de isenções fiscais. É natural que os adversários políticos desses partidos façam uso dessas revelações para fazerem... política.
Não consigo encontrar nesta história do CIP razões suficientemente fortes para condenar o MDM. Repito: quem quer fazer discussão política tem matéria que basta para se fazer à luta. O meu problema é que essa discussão política vai apenas satisfazer o interesse político de colocar mal o adversário sem necessariamente elevar a qualidade do debate público. Pela informação proporcionada pelo trabalho em questão o problema da importação criminosa de viaturas é muito maior do que o abuso das isenções fiscais pelos partidos políticos. Mesmo quando os autores, indignados, falam dos milhões de Meticais que isso custa ao Estado vejo apenas uma hipérbole que tenta fazer uma montanha parir um rato. Não é obrigatório importar carros (de luxo) pelo que o dinheiro que não entra nos cofres do Estado não é necessariamente dinheiro cuja ausência dói. É verdade que os efeitos (negativos) da presença desses veículos no país podem implicar despesas da parte do Estado (estradas, serviços, etc.), mas essa é uma contabilidade que se faz sem muito moralismo, suponho.
A minha questão é a seguinte: que discussão é que um trabalho desta natureza deveria suscitar entre nós? Apenas a indignação moral politicamente fingida? Ou por outra, que assuntos de relevância política substancial podem ser descortinados por detrás do fenómeno desta “máfia que custa milhões ao Estado”? O próprio trabalho levanta algumas questões, quase todas elas relacionadas com o facto de haver funcionários corruptos, de as leis estarem desfasadas da realidade, problemas técnicos (falta de serviços informatizados, por exemplo) e, acima de tudo, conluios de toda a espécie entre gente que devia observar a ética da função pública e gente criminosa que vive da falta de integridade. Estas são questões importantes que, de certeza, desempenham um papel. Mas são elas suficientes para entender os problemas? São suficientes para estruturar um programa político? Será que servem para constarem dum manifesto eleitoral, tipo “o nosso partido é contra a importação ilegal de viaturas e se for eleito vai acabar com isso”? Entre nós tudo é possível e não ficaria admirado se isso aparecesse como programa político. Mas, lá está, é suficiente? O que dizem as pessoas mais abalizadas, os académicos que trabalham sobre os vários assuntos aflorados nesse trabalho?
Durante a leitura desse trabalho jornalístico o que me veio à cabeça não foi a podridão dos serviços ligados à importação de viaturas. Foi, sim, o facto de nessa área se repetir um fenómeno generalizado e que a imaginação popular resume no adágio segundo o qual o cabrito comeria onde está amarrado. Este parece-me o problema essencial, o primeiro, que precisa de ser reflectido para além do escândalo imediato sugerido pelo abuso de isenções por partidos políticos. Só que no nosso país é difícil abordar este tipo de questões porque a nossa imaginação foi colonizada por um vocabulário moralista proveniente da indústria do desenvolvimento que usa esse tipo de escândalos não para entender os nossos problemas, mas sim para justificar os seus próprios desaires. O próprio CIP, sem prejuízo de todo o trabalho notável de informação que tem feito, é refém dessa lógica, razão pela qual muita da sua produção tem mais o carácter de denúncia do que propriamente de análise crítica. Isto é, critica o que está mal, não analisa necessariamente o funcionamento das coisas. Há diferença. O olhar que ela lança às coisas não é o olhar de quem está directamente afectado apesar de toda a retórica dos “nossos impostos” ou do “nosso Estado” que enfeita as suas publicações. Não é o olhar das agências de importação de viaturas que são afectadas por essas práticas ilícitas, dos agentes aduaneiros contornados pelos traficantes de “bonecos”, dos agentes policiais honestos que vêem a sua imagem denegrida pelas ovelhas negras, enfim, de verdadeiras associações de contribuintes que exigem ao Estado maior cuidado na arrecadação e uso de receitas fiscais. É o olhar de consultores, um olhar necessário sem dúvidas, mas no final de todas as contas um olhar que atiça as chamas da indignação pelo simples prazer da própria indignação.
Eis, então, o segundo problema: como se faz a articulação de interesses no nosso país? Que mecanismos de co-optação impedem que pelo processo normal de concorrência no mercado económico e político se constitua um espaço político que produz, ele próprio, normas contra práticas ilícitas e interesse pela legalidade? Não tenho resposta para estas perguntas, mas penso que elas são cruciais para entender a extensão do problema da importação ilegal de viaturas. No fundo, estamos perante um problema político que ultrapassa o oportunismo fiscal de partidos políticos. Estamos perante um problema de cultura política que não se resolve apenas com apelos morais e cuja ignorância persistente só vai servir para produzir balões de ar úteis à campanha eleitoral, mas inúteis como contribuição para um melhor entendimento dos problemas que a política devia abordar. É complicado. E só para ver a extensão dessa complicação é interessante notar o que o líder do MDM diz em defesa do seu partido. Ele acha injusto que a Autoridade Tributária de Moçambique exija que o seu partido devolva os valores sonegados com recurso a um argumento legítimo, mas irrelevante: o seu partido informou à ATM sobre o assunto. Eu acredito que ele fez isso, mas tratando-se dum caso criminal não é à ATM que ele deve informar, mas sim à Polícia de Investigação Criminal. Se o princípio fosse o que ele enuncia, então, todo o ladrão (na iminência de ser apanhado) ia dizer ao dono dos bens que não sabe como eles foram parar em sua casa. Isso revela uma certa perplexidade em relação à forma como o sistema jurídico e judicial funciona, e isso também é parte do problema que, infelizmente, não vamos discutir.
Ou talvez sim. De qualquer maneira, só para voltar a Rousseau, esse grande apóstolo da incoerência, a análise que é feita pelo simples prazer de falar para a ética do momento, pode perdurar, mas é de pouca utilidade como guia da acção política eficaz. E esse é o problema com a miséria da crítica."
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