Juiz Carlos Alexandre decidiu levar a julgamento presidente do FC Porto e o seu número dois, num processo que envolve uma mafia da segurança de bares e discotecas sobretudo na região Norte do país.
O presidente do Futebol Clube do Porto, Jorge Nuno Pinto da Costa, vai responder no Tribunal de Braga por ter contratado os serviços de uma empresa de segurança privada que, além de recorrer a práticas violentas, não tinha licença para fazer protecção pessoal. Ao seu lado, no banco dos réus, irá sentar-se meia centena de outros arguidos da chamada Operação Fénix — incluindo uma mão cheia de homens habituados a actuar em bares e discotecas do Norte e cuja reputação lhes granjeia há vários anos a alcunha de “ninjas”.
Além do exercício ilícito de segurança privada, estão em causa os métodos usados pela firma SPDE – Segurança Privada e Vigilância em Eventos nos estabelecimentos de diversão nocturna em que actuava. Segundo o Ministério Público, o zelo com que mantinha a ordem na noite descambou, pelo menos num caso, em morte. Foi em 2015 em Famalicão, à saída do Chic Bar, que um rapaz que tinha causado desacatos lá dentro acabou estendido no meio da rua, depois de ter sido espancado por dois “ninjas” ligados à SPDE. Um soco na boca desferido com luvas especiais, com saliências nos nós dos dedos, fez o jovem embriagado bater com a cabeça no chão. Sofreu um traumatismo craniano ao qual não escapou com vida. Ainda segundo a acusação, o grupo de criminosos, que estendeu as suas actividades a vários pontos do país — Lisboa, Coimbra, Braga, Vila Real e Lamego —, praticava também a extorsão, ao obrigar empresários da noite a contratá-los por preços muito acima do habitual, sob pena de sofrerem represálias. “Ou assinas este contrato ou parto-te já o focinho”, ouviu dizerem-lhe o proprietário de um bar de Valença. Assinou logo.
No despacho de pronúncia divulgado esta sexta-feira, em que determina a ida a julgamento da meia centena de arguidos por suspeita de crimes que vão da associação criminosa ao tráfico e posse de armas proibidas, o juiz de instrução criminal Carlos Alexandre diz-se convencido dos indícios recolhidos pelo Ministério Público. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se surpreendido: “Há, de facto, algo de inexplicável no mundo da segurança privada em Portugal […]. Vários actores confundem claramente os seus papéis com os das instâncias formais de controlo [as autoridades policiais] em moldes que congregam retrocessos civilizacionais”, escreve.
O magistrado não tem dúvidas de que há quem recorra a estes serviços ilícitos, que designa como sendo de justiça privada, “sabendo que vão para além do permitido pelos alvarás” das firmas que os prestam. Será o caso não só de Pinto da Costa como do seu número dois, o administrador da SAD portista Antero Henrique. Enquanto o primeiro é acusado de sete crimes por ter recorrido, noutras tantas ocasiões, aos serviços de protecção da SPDE, que era gerida por um homem próximo de Pinto da Costa, Eduardo Santos Silva, ao segundo são assacados pela justiça seis destes crimes.
Não há, na acusação, relato de actuação violenta dos seguranças da SPDE nas alturas em que estiveram ao serviço do FC Porto ou dos seus dirigentes. Esses relatos surgem ligados à sua actuação em bares e discotecas. Os salários de quem estava no terreno à noite podiam não chegar aos 700 euros, mas não era por isso que o seu empenho era menor. “Tive de espancar aqui um grosso… Depois esteve cá fora para aí uns dez minutos a dormir no chão”, conta, ao telefone, um vigilante da SPDE ao seu chefe numa noite de Dezembro de 2014, em Paços de Ferreira. “Houve aqui um que teve de levar na tromba e ficou assim um bocado pisado”, relata outro, poucos dias depois. O superior hierárquico avisa-o: “Ele, se se mandar, vocês já sabem. Mas não há ambulâncias nem coisas do género.” E há até seguranças que se queixam da dureza da missão, que amiúde redunda, para as vítimas, em inesperadas viagens até aos hospitais mais próximos: “Tenho as canelas todas fodidas das biqueiradas que lhe dei”, lamenta um deles certa noite.
As cobranças difíceis seriam outra das actividades a que se dedicavam os homens de Edu, o patrão da firma. Quem não pagava a bem pagava a mal, mas, muitas vezes, as ameaças eram suficientes. Houve uma vítima que chegou a andar vários dias com um penso na cara, por sugestão dos seguranças, para simular que tinha sido agredida. Objectivo: manter intacto o prestígio da SPDE.
No Porto, a sociedade contava com a colaboração de um agente da PSP, que os informava antecipadamente das operações que as autoridades estavam a preparar. Mas as coisas nem sempre corriam da melhor forma entre a polícia e os seguranças. “Um dia destes vou ter de partir os cornos a um polícia”, ouve a Judiciária a certa altura dizer Edu, numa conversa telefónica precisamente com aquele agente da autoridade.
O facto de Pinto da Costa e Antero Henrique nunca terem rescindido o contrato que tinham com a firma, mesmo depois de saberem que ela não estava legalmente habilitada a fornecer-lhes os serviços de escolta e protecção que lhes prestava é, para o Ministério Público, prova suficiente de que sabiam perfeitamente da situação: “Se o FCP se tivesse sentido enganado, então por que é que depois da detenção do arguido Eduardo Silva não rescindiu contrato com a SPDE?”
O julgamento terá lugar em Braga por o crime mais grave de todo o processo, aquele que levou à morte do cliente do Chic Bar, ter tido lugar em Famalicão.
Vigilância, protecção ou simples acompanhamento?
Em que qualidade agiam os seguranças que acompanhavam Jorge Nuno Pinto da Costa e respectiva família aos jogos de futebol dentro e fora do Porto? Protegiam-no de eventuais atacantes ou limitavam-se a fazer figura de corpo presente? É na destrinça dos diferentes conceitos de vigilância que joga a defesa do dirigente do FCP — que argumenta ainda que Pinto da Costa não podia adivinhar que a empresa que contratara não estava, afinal, legalmente credenciada para lhe prestar determinado tipo de serviços.
Os homens da SPDE acompanharam-no, por exemplo, a um jogo no Estádio de Alvalade, em Lisboa, em Setembro de 2014. “Aqui, o que estava em causa não era um serviço de protecção pessoal, mas antes uma função típica de assistente de recinto desportivo”, alega o advogado de Pinto da Costa, explicando que se tratou apenas de acompanhar grupos de adeptos.
Numa outra ocasião, quando a casa de uma familiar de Pinto da Costa foi assaltada, em Cedofeita, no Porto, foram também os homens de Edu quem acorreu ao local. O Ministério Público diz que tentaram localizar os intrusos, mas o representante do dirigente desportivo nega-o: “Limitaram-se a permanecer no exterior da habitação, para ver se divisavam a aproximação de estranhos.”
A defesa deste arguido usa um derradeiro argumento: “Em todos os momentos em que Eduardo Silva esteve a acompanhar Pinto da Costa — como outros administradores da SAD do FCP —, era claro que esses movimentos eram concertados com a PSP!”.
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