Anti-corrupção l Boa governação l Transparência l Anti-corrupção l Boa governação
Em Matalane
e na ACIPOL
Edição No 10/2016 - Maio - Distribuição Gratuita
Crédito: pt.rfi.fr
2
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
Militarização da Formação
Policial É Preocupante
Afecta o exercício
de cidadania
Em Matalane e na ACIPOL
Por: Adriano Nuvunga, Borges Nhamirre, Jorge Matine, Tina Lorizzo1
2
“ Tina Lorizzo é fundadora de REFORMAR - Research for Mozambique. Doutoranda no Centro de Direito Comparado na África, na Universidade
da Cidade do Cabo, Tina Lorizzo tem colaborado como advogada estagiária no Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica em Maputo e no
âmbito da Iniciativa Artigo 5 para a prevenção e erradicação da tortura em Moçambique. As suas pesquisas abrangem matérias relacionadas ao
sistema de justiça criminal como Direito Internacional Criminal; Direitos Humanos; Direito Penitenciário; Victimologia e Acesso à Justiça Formal
e Informal e as suas relações com o Estado nos Países Africanos de Língua Portuguesa.
Crédito: ambicanos.blogspot.com
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l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
Com um efectivo de 20.000 membros
– considerando ainda verídicos os dados
de 2003 – a Polícia da República
de Moçambique (PRM) tem aproximadamente
1 agente para cada 1.250 cidadãos.
Um número pequeno para prevenir
e combater a criminalidade de um
país de mais de 25 milhões de pessoas.
Mas se o baixo efectivo é uma grande
fragilidade, a dimensão militarizada da
acção policial é que é motivo de grande
preocupação, na medida em que, em
muitas ocasiões, limita o exercício de
cidadania. ‘Reprimir’ tem sido a palavra
mais pronunciada pelos porta-vozes da
PRM a nível nacional.
O CIP foi atrás das origens desta atitude
na acção policial: a formação
policial. O CIP trabalhou nas duas entidades
que formam polícias em Mo-
çambique, nomeadamente a Escola de
Formação Básica de Matalane e a Academia
de Ciências Policiais (ACIPOL).
O CIP problematizou a formação policial
a partir da análise dos standards internacionais
que foram, nos anos, ratificados
pelo país, passando pela legisla-
ção doméstica em matéria policial até à
observação de alguns elementos-chave
da formação. E, de modo particular, a
duração da formação, a parte curricular,
o treino prático bem assim como as
características dos formadores.
A formação policial é um campo bastante
inexplorado em todo o continente
africano, marcado por falta de dados
oficiais, publicamente disponíveis, e dificuldade
de acesso directo às informa-
ções. Mesmo assim, o trabalho realizado
permite concluir que a formação
militar domina a preparação da polícia.
Na Escola de Matalane (e menos na
ACIPOL) verifica-se uma formação
gerida dentro de um panorama limitado
e secreto. Sob a máscara do conceito
de segurança do país, a formação
policial é deixada longe dos reais desafios
da sociedade, incluindo as novas
e complexas exigências de oferta de
serviços públicos de segurança. É esta
a origem da acção policial virada para
‘reprimir’, mesmo naqueles casos em
que o exercício da cidadnia esteja protegido
pela lei.
2. Contexto Internacional
Moçambique vem demonstrando, há
já mais de duas décadas, um concreto
compromisso internacional. Ratificou:
o direito de todas as pessoas a não ser
torturadas e não ser sujeitas a tratamentos
desumanos e degradantes; o
direito a ver os direitos civis e políticos
respeitados; o direito a não ser vítima
de discriminação racial e a ser respeitado
como criança.
Uma vez ratificados, os instrumentos
têm a mesma força de um acto normativo
infraconstitucional e o país
responsabiliza-se por respeitar os princípios
contidos nestes documentos e
a implementá-los nas próprias jurisdi-
ções domésticas.
A seguinte tabela mostra de forma resumida
a maior parte dos instrumentos
vinculativos e as datas em que Moçambique
os ratificou:
1. Introdução
INSTRUMENTO INTERNACIONAL DATA DA RATIFICAÇÃO
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à
abolição da pena de morte
Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis Desumanos ou Degradantes de Tratamento
ou Penas
Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura
Convenção para a Protecção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados
Convenção sobre os Direitos da Criança
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à participação de crianças
em conflitos armados
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à venda de crianças, prostituição
infantil e pornografia infantil
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos
Membros das Suas Famílias
21 de Julho de 1993
21 de Julho de 1993
Não ratificado
14 de Setembro de 1999
1 de Julho de 2014
24 de Dezembro de 20083
26 de Abril de 1994
19 Outubro de 2004
21 Abril de 1997
18 de Abril de 1983
06 de Março de 2003
30 de Janeiro 2012
19 de Agosto de 2013
Tabela 1 – Conformidade de Moçambique às Convenções Internacionais
2
Artigo 18 da Constituição da República de Moçambique (Direito internacional) 1. Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana
após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique. 2. As normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem
os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção. 3
O país comprometeu-se a ratificar a Convenção através da assinatura do tratado, mas ainda não ratificou.
4
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l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
A implementação passa também pela
formação de todos os actores-chave.
É um dever dos Estados-Membros
destas convenções treinar regularmente
o seu pessoal para a aplicação
das disposições. Em matéria policial,
os Princípios Básicos sobre o Uso da
Força e Armas de Fogo pelos Agentes
da Autoridade e o Código de Conduta
da ONU para os Agentes da Lei
e da Organização e Cooperação dos
Chefes de Polícia da África Austral
(Southern African Regional Police Chiefs
Co-operation Organisation, SARPCCO)4
,
assim como as Directrizes sobre o
Uso e Condições de Detenção, Custódia
Policial e Prisão Preventiva em
África (Directrizes de Luanda)5
, estas
últimas criadas em 2014, devem ser regularmente
objecto de estudo e aplicação
por parte da PRM.
No entanto, pesquisas mais aprofundadas
deveriam ser conduzidas para
aferir o grau de aplicação destes instrumentos
e se fazem parte do programa
curricular de formação da PRM6
.
Eventos reportados pela imprensa e
organizações internacionais e nacionais
demonstram como a PRM tem
sido autora de tratamentos desumanos
e degradantes, execuções sumá-
rias e assassinatos extrajudiciais7
.
Uma pesquisa do Forum de Policiamento
Africano e Fiscalização Civil
(African Policing and Civilian Oversight Forum,
APCOF) sobre a implementação
do Código de Conduta da SARPCCO
em Moçambique8
confirma o uso excessivo
da força, também durante a
captura, detenção e interrogatório de
pessoas, as execuções extrajudiciais,
as mortes de pessoas sob custódia, o
deplorável tratamento de detidos e as
próprias condições de detenção, a corrupção
e uma difusa cultura de impunidade
no seio da PRM como sendo
problemas-chave. A mesma pesquisa
identifica que escassas investigações
são realizadas, assim como são raros
os processos disciplinares ou criminais
contra oficiais da PRM9
.
Será que a PRM é regularmente formada
sobre estas matérias de forma
abrangente? Se isso acontece, será a
falta de uma formação regular e ampla
a causa destes eventos acima descritos?
3. Legislação Policial Doméstica
A legislação em matéria de polícia foi
promulgada a partir do final dos anos
80 com a Lei n. 5/79, que criou a Polícia
Popular de Moçambique (PPM), e
o respectivo Regulamento pelo Decreto-Lei
n. 6/79.
A tabela 2 elenca o progresso legislativo
em matéria policial a partir da cria-
ção da PPM até à nova Lei da PRM n.
16/2013, passando pelas duas Constituições
de 1990 e 2004:
Lei n. 5/79
Decreto-Lei n. 6/79
1990
Lei n. 19/1992
Decreto n. 22/93
Lei n. 17/97
Decreto n. 24/99
Decreto n. 27/99
Decreto n. 28/99
Decreto n. 29/99
Plano Estratégico 2003-2012
2004
Lei n. 16/2013
Decreto-Lei n. 93/2014
Decreto-Lei n. 84/2014
Polícia Popular de Moçambique (PPM)
Regulamento da PPM
I Constituição da República de Moçambique
Polícia da República de Moçambique
Estatuto Orgânico da PRM
Política de Defesa e Segurança
Academia de Ciências Policiais (ACIPOL)
Estatuto Orgânico da PRM
Estatuto da PRM
Estrutura tabela indiciária das remunerações da PRM
PEPRM
II Constituição da República de Moçambique
Lei da PRM que revoga a Lei n. 19/92
Altera o Estatuto do Decreto-Lei n. 28/99
Regulamento Disciplinar da PRM
Tabela 2 – Quadro Histórico da Legislação Policial
6
Entre os meses de Março e Abril de 2016, a UEM organizou capacitações sobre esta matéria. Veja-se em http://reforma-researchformozambique.blogspot.sn (20/04/2016).
7 Amnesty International. I can’t believe in justice any more: Obstacles to justice for unlawful killings by the police in Mozambique (AFR 41/004/2009). Amnesty International. (2008). Licence to Kill:
Police accountability in Mozambique (AFR 41/001/2008). 8 Amanda Dissel and Sean Tait. (2011). Implementing the Southern African Regional Police Chiefs Cooperation Organisation (SARPCCO) Code of Conduct. APCOF.
9 Nota 4 supra
Durante as últimas três décadas, o quadro
legislativo policial vem respeitando o desenvolvimento
jurídico-constitucional do
país, dando origem a uma proliferação
de leis. A passagem do período socialista
para o Estado de Direito Democrático
foi uma virada importante, com a cria-
ção da PRM, que substituiu a PPM, através
da Lei n. 19/1992, e o seu Estatuto,
através dos Decretos-Leis n. 22/1993 e
28/1999.
Até aos meados dos anos 90 o recrutamento
na polícia era feito seguindo três
princípios básicos (porte físico, disciplina
militar e militância político-militar) com a
promulgação da Política de Defesa e Segurança
(Lei n. 17/1997). Depois houve
a necessidade de mudar estes princípios,
porque a imagem dada pelo Primeiro
Presidente, Samora Machel, sobre a PPM
não podia mais reflectir o novo status quo:
5
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
Os membros da polícia [devem] ser
seleccionados entre os melhores
soldados, entre os jovens que tendo
ingressado as fileiras das Forças
Armadas de Moçambique [...] se
revelem com qualidades de disciplina
e aprumo, cortesia e civismo.
Os membros da Polícia Popular
de Moçambique – PPM, devem
ter um comportamento exemplar
a fim de poderem ter autoridade
moral que lhes permitam agir pela
persuasão [...]10.
A necessidade de eliminar o dualismo
entre polícias que vinham de uma educação
ideológico-militar e dos novos
recrutas era iminente; também se revelou
uma prioridade que resultou de
alguma pressão externa que encontrou
um ambiente interno favorável e praticamente
possível.
O apoio chegou através do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e da ajuda de países
como Suíça, Espanha, Portugal e Holanda,
entre 1997 e 2007. Foi no âmbito
deste panorama que, pelo Decreto-Lei
n. 24/99, foi criada a ACIPOL,
instituição de ensino superior em ciências
policiais encarregada de formar
oficiais de nível superior como forma
de profissionalizar o trabalho policial e
melhorar o desempenho da organiza-
ção em enfrentar a criminalidade.
O Estatuto da PRM, através do Decreto
n. 28/99, de 24 de Maio, estabelecia
os requisitos e pressupostos para se
ingressar na carreira policial, baseando-se,
essencialmente, no nível de escolaridade.
Enquanto se tentava afastar
a natureza da formação político-militar
que caracteriza a primeira geração da
PRM, a Constituição de 2004 foi promulgada11
e o primeiro Plano Estraté-
gico da PRM 2003-2012 (PEPRM) foi
elaborado.
Não se podendo negar o imenso trabalho
que o documento produziu,
o mesmo tem sido criticado por ter
respeitado mais uma agenda externa
e também por não ter incluído questões
importantes como a mobilização
de recursos, a sustentabilidade, o HIV/
SIDA na organização policial, igualdade
e mecanismos para abordar a corrupção
e a má conduta12. Lalá sublinha
o problema de fundo:
Apesar da melhoria notória na legislação
existente existe uma desconexão
entre o processo formal de
formulação da lei com a formula-
ção de políticas e a implementação
das mesmas. ...[A] legislação acima
mencionada não foi o resultado de
um processo abrangente [e] global
de repensar o nível estratégico através
de uma análise completa de revisão
de segurança ou, pelo menos,
a elaboração de documentos técnicos
para estas áreas. Pelo contrário,
era o resultado da necessidade de
ter uma legislação que permitisse
ao aparelho de funcionar num quadro
democrático, através de requisitos
legais mínimos.13
10 Exortação do presidente da Frelimo às Forças de Defesa e Segurança: Ofensiva Legalidade. In Revista Tempo 579, Maputo, 15 de Novembro de 1981.
11 Veja-se os Artigos 254 e 255. 12 SFrancisco Inácio Alar (2010). O Plano Estratégico da Polícia e sua Implementação. No ‘A Dinâmica do Pluralismo Jurídico em Moçambique. CESAB.
13 http://www.idn.gov.pt/publicacoes/nacaodefesa/textointegral/NeD114.pdf pg.45.
É um dever
dos EstadosMembros
destas
convenções
treinar
regularmente o
seu pessoal para
a aplicação das
disposições
Crédito: noticias.sapo.mz
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ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
Depois do PEPRM 2003-2012 não ter
alcançado todos os objectivos, alguns
distantes da própria real implementa-
ção, não foram ainda elaborados outros
planos estratégicos que lhe dessem
continuidade.
Entretanto, uma noSva Lei, n. 16/2013,
foi recentemente aprovada. Revogando
a primeira Lei da PRM de 1992, o
novo dispositivo vem sublinhar algumas
profundas e contínuas divergências
e uma nova falta de clareza sobre
que PRM o legislador quer ver estabelecido
ou funcionando.
No âmbito da natureza da PRM, o
Artigo 1 da nova lei introduz o termo
serviço público que vem substituir aquele
de organismo público e força paramilitar,
trazendo, à primeira face, a escolha
legislativa de querer aproximar a PRM
à população, como um conjunto de actividades
e serviços ligados à administração
estatal através dos seus agentes
e representantes. O Artigo afirma ‘1...a
PRM é um serviço público, apartidário,
de natureza paramilitar, integrado no
Ministério que superintende a área da
ordem e segurança pública’. Na mesma
linha de pensamento do policiamento
comunitário, introduzido no início dos
anos 2000, o legislador afasta-se de
conceitos como aparato, organismo e
força, abandonando a definição orgânica
ou formal da PRM, preferindo aproximar
a PRM a uma ‘actividade social,
...visando ao bem-estar e ao progresso
social, mediante o fornecimento de
serviços aos particulare’14. Entretanto,
logo depois, o legislador volta a usar o
conjunto natureza paramilitar, deixando
o leitor na confusão sobre a verdadeira
PRM que o país quer: um serviço pú-
blico, porém, de natureza paramilitar?
Quer o termo paramilitar ser somente
um eufemismo que esconde ainda a real e
contínua militarização da PRM?
É bem-vinda a eliminação da velha letra
que afirmava que ‘a qualquer resistência
ilegítima aos membros da PRM,
no exercício das suas funções...[é permitido]
o uso da força estritamente
necessária, se outros meios de persuasão
não forem suficientes’ (Artigo 8(2)
da Lei 19/1992). O legislador actual
prefere sublinhar que: ‘4. No uso dos
meios ofensivos para a garantia da ordem,
segurança e tranquilidade pública,
a PRM observa os limites de necessidade,
razoabilidade, proporcionalidade
e adequabilidade’. Como estes limites
são acolhedores, o legislador deveria
tê-los detalhado. Infelizmente, nota-se
que não há nenhuma referência ao trabalho
de prevenção da criminalidade
que deveria fazer parte do trabalho da
PRM. O foco está ainda no combate e
repressão da criminalidade.
Enquanto o quadro legislativo existente
em matéria policial levanta algumas
questões críticas, o mesmo Artigo 2
afirma que: ‘1. A PRM, no seu funcionamento
e actuação, observa os princí-
pios do respeito pela Constituição, leis
e demais normas vigentes na República
de Moçambique.’
É uma Constituição que defende o
direito à vida e a não ser torturado15
(Artigo 40); a ser capturado por uma
ordem judicial e ser informado das
razões da captura (Artigo 64) e o direito
a recorrer à providência do habeas
corpus em caso de prisão ou detenção
ilegal (Artigo 66). Neste contexto,
será preciso questionar até que ponto
a PRM é treinada nestas matérias. São
os novos cadetes formados a praticar
acções necessárias, razoáveis, proporcionais
e adequadas ao perigo que eles
deverão combater? São eles formados
sobre o quadro jurídico policial e os
direitos humanos que protegem a população
e são eles treinados a proteger
estes direitos?
A Escola Básica de Matalane e a ACIPOL
são actualmente os únicos centros
de formação do país.
16 A Escola
de Matalane foi fundada em 197417,
enquanto o Decreto 24/99, de 18 de
Maio, criava a ACIPOL. Visando a
modernização da Polícia, a ACIPOL
foi oficialmente criada para a forma-
ção de quadros, mas antes de 1999 a
sede já funcionava para o treino básico.
A Escola de Matalane, que funcionou
com intermitências até à construção
da ACIPOL, começou a ser reabilitada
para melhorar a qualidade de vida e os
padrões de formação básica da Polícia,
entre os anos 2010 e 2013, no âmbito
do ‘Projecto de Apoio ao Desenvolvimento
Institucional do Ministério do
Interior (MINT) da República de Mo-
çambique’ da Comissão Europeia (CE)
e Portugal18.
A Escola de Matalane treina a classe
básica da PRM, enquanto a formação
de nível superior tem lugar na ACIPOL.
A ACIPOL também oferece
cursos para polícias que ocupam posi-
ções de liderança nos vários níveis da
organização. Além disso, a ACIPOL
executa programas de formação especializados,
tais como técnicas de investigação,
polícia de trânsito, patrulha de
fronteira e unidades de protecção de
altas individualidades.
4. A Formação Policial em Matalane e na ACIPOL
5.1 Requisitos de entrada
A nova lei n. 13/2013, no Artigo 37,
elenca oito requisitos gerais para o
ingresso na PRM: a) ser cidadão mo-
çambicano de nacionalidade originá-
ria; b) idade não inferior a 18 anos e
não superior a 30 anos; c) voluntário;
d) condição física e psíquica compatí-
vel com a função; e) compleição física
adequada; f) formação académica
adequada; g) aprovado nos procedimentos
de selecção para o curso de
ingresso19 e h) aprovado no curso de
ingresso.
Há três diferentes escalas no âmbito
da PRM: básica (Guarda), média (Sargento)
e superior (Oficial). Entra-se
na escala básica com os requisitos delineados
no Artigo 21 (1). Uma vez
concluídos com aproveitamento o
curso básico policial e os dois anos de
estágio, acede-se à carreira de Guarda,
desempenhando funções operacionais
e serviços internos (Artigo 50 do
Decreto n. 93/2014).
14 Caio Tacito (2003). A Configuração Jurídica do Serviço Público. Revista de Direito Administrativo. Julho/Setembro. Rio de Janeiro 233: 374.
15 O novo Código Penal criminaliza a tortura como crime hediondo. Veja-se Artigo 160 (i) Código Penal.
16 Até 1992 funcionavam também os Centros de Formação de Dondo e Natikiri (Nampula).
17 http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/primeiro-plano/16088-escola-pratica-da-policia-em-matalane-de-mata-densa-a-pequena-cidadela (1/11/2015).
18 Veja-se http://www.grupolena.pt/comunicacao-noticias/pag6 (12/10/2015).
19 Provas escritas de Português, História e Matemática.
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ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
Não existindo uma escola para a formação
média, na carreira de Sargento
entra-se através da aprovação no curso
de promoção (oferecido em Matalane,
não regularmente) e da satisfação dos
requisitos de promoção. A carreira de
Sargento destina-se ao exercício de
funções de comando de natureza executiva
com carácter técnico, administrativo,
logístico e instrução (Artigo 49
do Decreto n. 93/2014).
A carreira de Oficial exige formação
superior em ciências policiais ou licenciatura
e formação técnico-policial ou
satisfação dos requisitos de ingresso
do Estatuto (Artigo 48 do Decreto n.
93/2014).
O Artigo 21 do novo Decreto-Lei
elenca os requisitos especiais para o
ingresso na escala superior da PRM
como resumido na tabela 3:
- Moçambicano de nacionalidade
originária
- Idade entre 18 e 30 anos
- Voluntário
- Condição física e psíquica compatível
- Compleição física adequada
- Formação académica adequada
- Aprovado nos procedimentos de
selecção para o curso de ingresso
- Aprovado no curso de ingresso
- 10° Classe ou equivalente;
- Idade entre 19 e 30 anos
- Serviço militar regularizado
- Conclusão, com aprovação da
Escola de Matalane
- Conclusão com aproveitamento
do período de dois anos de está-
gio
- Aprovação no curso de promoção
- Satisfação dos requisitos de promoção
- 12ª Classe ou equivalente
- Idade entre 18 e 22 anos para
os civis
- Idade entre 18 e 26 anos para
PRM e ex-militares
- Licenciatura, complementada
por formação técnico-policial adequada
(até a 35 anos)
- Conclusão, com aproveitamento,
do curso da ACIPOL ou
equivalentes
REQUISITOS DE INGRESSO NA PRM
GERAIS CLASSE BÁSICA CLASSE MEDIA CLASSE SUPERIOR
Tabela 3 – Requisitos de Ingresso na PRM
Sendo positivos os novos requisitos de
ingresso, que sublinham a importância
da preparação escolar, nota-se, porém,
que na escala básica o(a) candidato(a) é
admitido(a) com a 10ª classe, enquanto,
por exemplo, na África do Sul, em
geral, acede-se ao Serviço de Polícia
Sul-Africana (South African Police Service,
SAPS) com a 12ª classe20.
A referência à possível entrada na ACIPOL
de ex-militares (na classe de Oficiais)
é um elemento que traz aquele
dualismo que ainda caracteriza a PRM
em Moçambique.
Uma formação paramilitar, com enfoque
no treino prático, terá um impacto
diferente ao de uma aprendizagem
curricular baseada em disciplinas
abrangentes, entre elas as relacionadas
aos direitos humanos e as de base sociocultural.
20 South African Act n. 68/1995.
Crédito:noticias.mmo.co.mz
8
ANTI-CORRUPÇÃO
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l TRANSPARÊNCIA
5.2 Orçamento
A restruturação da Escola de Matalane,
para melhorar a qualidade de vida e os
padrões de formação básica da Polícia,
abrangeu a reabilitação do edifício das
camaratas masculinas e femininas e das
salas de aula bem como a construção de
enfermaria, incluindo a aquisição dos
respectivos equipamentos e materiais.21
Como outros sectores no sistema de
justiça criminal, a formação depende
fortemente de doadores externos. E,
como aconteceu no passado, em rela-
ção ao PEPRM, muitas vezes, os progressos
também aconteceram graças a
orçamentos externos e/ou respeitando
agendas externas, circunstâncias que
nem sempre foram internamente e
completamente aceites dentro da corporação
policial.
A tabela 4 mostra o orçamento anual
do governo para despesas de funcionamento
e investimento na Escola de Matalane
e na ACIPOL. Também notamos
que as despesas para o investimento
foram previstas, nos últimos três anos,
somente para a ACIPOL. É visível o
magro montante destes valores, particularmente
para o funcionamento da
Escola de Matalane que gradua anualmente
cerca de mil pessoas.
Estes valores deixam-nos preocupados,
pensando na qualidade da formação
dada na escola.
Será este valor suficiente para investir
na formação dos Guardas que patrulham
as nossas ruas?
2013
2014
2015
4.428,36
4.520,79
4.452,76
96.554,85
108.157,90
145.217,61
-
-
-
18.000,00
19.000,00
4.255,10
Ano Matalane ACIPOL Matalane ACIPOL
Despesas para o funcionamento (milhões MT) Despesas para o investimento (milhões MT)
Tabela 4 – Orçamento do Governo – Escola de Matalane e ACIPOL
O Ministério do Interior é um parceiro privilegiado de Portugal. Entre 2011 e 2014, por
exemplo, um orçamento indicativo de 62 milhões de Euros22 foi desembolsado. A cooperação
portuguesa tem apoiado a criação da ACIPOL e a elaboração do PEPRM, desde o início
de 2000. Até 2007, Portugal apoiou com a formação de quadros policiais nas diferentes
especialidades e na formação de oficiais da Polícia na ACIPOL, depois com a formação de
formadores e apoio a outras áreas como a criação das unidades de atendimento às mulheres
vítimas de violência.
5.3 Dados estatísticos
Se ainda considerarmos verídicos os
dados de 2003, a PRM é constituída
por 20.000 membros23, tendo aproximadamente
1 agente por cada 1.250 cidadãos24
contra um rácio médio internacional
de 1 para 330/35025. Cientes
de que estes dados não são recentes, é
notória a informação de que o recrutamento
de novos funcionários não tem
sido regular, tendo também em consideração
a perda constante de membros
devido ao HIV/SIDA26 e outras doen-
ças. Enquanto a Open Society Foundation27
afirma que o vírus da SIDA
tem matado 1.000 agentes por ano, na
maior parte das vezes estes dados não
são publicados, também por questões
de segurança, como aliás acontece em
muitos países28.
Entretanto, para fazer frente a este e
outros desafios, Moçambique continua
a recrutar novos polícias nos centros
de formação das Forças Armadas
(FADM)29.
21 http://www.oecd.org/derec/portugal/Projeto-de-apoio-ao-ministerio-do-interior-de-Mocambique.pdf pg 55. (1/10/2015).
22 Veja-se em http://www.oecd.org/derec/portugal/Projeto-de-apoio-ao-ministerio-do-interior-de-Mocambique.pdf (1/11/2015).
23 Este dado é de 2003. Veja-se Plano Estratégico da PRM (PEPRM), 2003-2012; Bruce Baker, ‘Policing and the rule of law in Mozambique’ (2003) 13 (2) Policing and Society 145. Liga dos Direitos
Humanos, unpublished report, 2007. 24 Com uma população de 25 milhões de pessoas (Banco Mundial, 2013).
25 Veja-se em http://www.unodc.org/pdf/criminal_justice/State_of_crime_and_criminal_justice_worldwide_2010.pdf pg. 19. (12/11/2015).
26 UNDP, Support to the Police of the Republic of Mozambique. Outcome Evaluation Mission Report – October 2007. Pg 9.
27 Open Society Foundations (2006). “Moçambique. O Sector da Justiça e o Estado de Direito”.
http://www.afrimap.org/english/images/report/Moz%20Discussion%20Paper%20(porto).pdf
28 Laurie Garrett. (2005). HIV and National Security: Where are the Links? A Council on Foreign Relations Report.
29 Veja-se http://www.panapress.com/Mozambique-to-recruit-police-personnel-from-armed-forces--13-580889-17-lang4-index.html (28/11/2015).
9
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
2009
2011
2013
2014
10032
10034
21535
15037
1602 31
190033
-
307836
ANO MATALANE ACIPOL
Tabela 5 – Graduados – Escola de Matalane e ACIPOL
Os dados do âmbito de formação policial
não são, como já dito anteriormente,
de fácil acesso ao público. Este
artigo recolheu dados na imprensa que
reflectem o número de pessoas que se
graduaram em Matalane e na ACIPOL,
entre 2009 e 2014. Cientes de que estes
não são dados completamente fiá-
veis, pensamos que são importantes
para informar e ajudar a perceber o
número de cadetes que são graduados
anualmente por estas instituições. No
futuro, as pesquisas deveriam aprofundar
o número de pessoas que entram
por ano em cada instituição e quantos
se graduam anualmente, o número de
mulheres e a percentagem em relação
aos homens (considerando a sub-representação
das mulheres na PRM que
em 2003 era estimada em apenas 7%)30.
De acordo com os dados lançados pela
imprensa (Tabela 5), a Escola Prática
de Matalane e a ACIPOL graduaram
os seguintes números:
O curso básico da Escola de Matalane
dura nove (9) meses38 e está dividido
em três fases: 1) inserção e ambienta-
ção e treino virado para a disciplina paramilitar
e cultura de espírito de corpo;
2) multi-disciplinar, direccionada para
as áreas de ciência e tecnologia policial
para instruir o formando sobre maté-
rias específicas para a profissão de polícia
e 3) disciplinas gerais, conduzidas
para a competência de saber ser e saber
estar como polícia no seu contacto
com a sociedade.
39
A ACIPOL oferece um programa académico
regular de quatro anos, Bacharelado
e Licenciatura em Ciências
Policiais. Há também cursos de treinamento
de executivos de breve duração
(entre 5 e 180 dias) para os polícias que
detêm posições de liderança e programas
de treinamento especializados.
Um mestrado em Ciências Policiais é
também oferecido desde 2012.40
A ACIPOL prepara os quadros no
lapso de quatro (4) anos. Ora, considerando
que os futuros Guardas formados
em Matalane serão enviados a
patrulhar as ruas e a ter um contacto
directo com a população, será o curso
de nove (9) meses em Matalane suficiente
para que os cadetes obtenham o
conhecimento necessário para servir e
proteger a população?
Em média graduaram-se anualmente
mil pessoas (1.000) em Matalane e cem
pessoas (100) na ACIPOL. O número
permanece insuficiente em relação ao
número de perdas dos membros da
PRM (devido a doenças, abandonos,
expulsão, reforma) tendo em conta o
crescimento da população moçambicana
que tocou os 25 milhões de pessoas
(Banco Mundial 2013) e o desenvolvimento
jurídico e económico do país e
as suas exigências de segurança.
5.4 Formação
Tanto em Matalane assim como na
ACIPOL, a formação é dividida em
duas partes: prática e curricular.
A parte curricular consiste na aprendizagem
teórica de disciplinas específicas,
enquanto a parte prática consiste
em actividades físicas, treino militar e
uso de armas.
5.4.1 Duração
30 Nota 27 supra.
31 http://www.verdade.co.mz/nacional/7617-escola-de-matalane-gradua-1602-agentes-da-policia (27/11/2015).
32 http://aeu-uem.blogspot.com/2009/03/acipol-gradua-cerca-de-uma-centana-de.html (27/11/2015).
33 http://www.jornaldigital.com/noticias.php?noticia=28659 (27/11/2015).
34 http://videos.sapo.pt/gwcIeWjrntlauS4wpN7N (27/11/2015).
35 http://opais.sapo.mz/index.php/sociedade/45-sociedade/24755-acipol-gradua-215-agentes.html (27/11/2015).
36 PP, da polícia de protecção de recursos naturais e meio ambiente e de agentes de Serviço Nacional de Migração SENAMI http://noticias.sapo.mz/aim/artigo/10465417122014221526.html
(27/11/2015). 37 http://opais.sapo.mz/index.php/sociedade/45-sociedade/24755-acipol-gradua-215-agentes.html
38 Segundo a nossa investigação há informações de que esta duração pode ser ainda mais curta, às vezes até de 3 (três) meses.
39 (http://www.verdade.co.mz/index.php/opiniao/arquivo/7617-escola-de-matalane-gradua-1602-agentes-da-policia) e http://noticias.mmo.co.mz/2014/07/graduados-novos-membros-da-prm-naescola-pratica-de-matalane.html#ixzz3jiIoXXuf
(27/11/2015). 40 Fernando Francisco Tsucana. Evolução da Polícia da República de Moçambique nos Períodos Pós- Independência Nacional – Sinopse Histórica: do CPM à PRM.
10
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
O plano curricular de Matalane prevê o
leccionamento das seguintes cadeiras:
1) Direitos Humanos; 2) Defesa Pessoal;
3) Preparação Física; 4) Ordem
Unida; 5) Táctica das Forças de Segurança
(TFS); 6) Organização Policial;
7) Ética e Deontologia Profissional; 8)
Polícia Administrativa Aplicada; 9) Investigação
Criminal; 10) Direito Constitucional;
11) Direito Penal e Processual
Penal; 12) Direito Civil e Administrativo;
12) Técnica de Expressão; 13)
Psicologia; 14) Topografia e 15) Violência
Doméstica e HIV/SIDA41. Durante
os meses lectivos, as disciplinas
relacionadas aos Direitos Humanos
têm 30 horas; Defesa Pessoal tem 126
horas; Ordem Unida tem 200 horas e
as TFS têm 60 horas42. Podemos considerar
esta formação como sendo bastante
orientada para a vertente militar,
já que 286 horas das 316 horas totais
são dedicadas ao treino paramilitar.
Tsucana afirma43 que a carga horária do
curso de Bachelarado e Licenciatura da
ACIPOL é de 5.040 horas divididas
em 8 semestres: 1.260 horas anuais e
630 horas por semestre. Destas, 50%
são reservadas às Ciências e Tecnologia
Policiais; 25% às Ciências Jurídicas;
20% às Ciências Sociais e Humanidades,
enquanto as restantes (0,5%) às
Ciências Exactas e de Gestão. As últimas
5% são para o Estágio Curricular
e Práticas Pré-Profissionais no fim do
curso44. Entre as matérias, há cursos de:
1) Antropologia; 2) Filosofia; 3) Psicologia;
4) Sociologia; 5) Criminologia; 6)
Ciências Políticas; 7) Estatística; 8) Topografia;
9) Comunicações; 10) Economia;
11) Noções Fundamentais de
Direito; 12) Relações Internacionais;
13) Direito Constitucional; 14) Direito
Criminal e Processo Penal; 15) Administração
Pública; 16) Inglês/Francês;
17) Direito Civil; 18) Direito Fiscal;
19) Direito Administrativo; 20) Informática;
21) Ordem Unida; 22) Defesa
Pessoal; 23) Armas e Explosivos; 24)
Técnica de Expressão e 25) Direitos
Humanos. Diferentemente de Matalane,
a formação da ACIPOL tem um
foco mais académico, não esquecendo,
aliás, que a ACIPOL é um instituto de
ensino superior.
Uma pesquisa aprofundada deveria ser
conduzida para analisar a metodologia
e o material usado no ensino destas disciplinas,
seja em Matalane seja na ACIPOL.
No âmbito de Direitos Humanos,
dever-se-ia entender se matérias como
o uso da força, a prevenção da tortura
e outros tratamentos desumanos, a revista
de pessoas e lugares, a captura de
pessoas e a gestão da custódia policial,
assim como lidar com as vítimas de crimes
(crianças, mulheres, pessoas com
perturbações mentais e outras pessoas
vulneráveis) são tratadas, assim como
a corrupção e o Código de Conduta
da SARPCCO. E de modo particular,
o Manual do Formador em Direitos
Humanos para a Polícia do Alto Comissariado
das Nações Unidas para os
Direitos Humanos, publicado em 2002,
aconselha que grupos de trabalho, palestras-debates,
estudos de casos, painéis
de discussão, mesas-redondas, chuva
de ideias (brainstorming), simulação e
representação (role-playing), trabalho de
campo, prática (incluindo a elaboração
de códigos de conduta, relatórios etc.)
e uso de recursos visuais durante a formação.
45
5.4.2 Parte Curricular
A disciplina de Ordem Unida, que em
Matalane abrange 200 horas nos nove
(9) meses, é aprendizagem de marcha,
postura, regras de cortesia na cultura
policial e, em especial, exige-se a
coordenação de movimentos físicos
repetitivos e principalmente a disciplina
militar e o respeito pela cadeia de
comando.
46
Em relação ao início da formação policial
na ACIPOL, Borges47 afirma:
[Inicia-se] com o rito de passagem
designado “rethemo”
o qual é realizado com todos
os ingressantes… A obediência
é imposta sob a voz de comando
de um instrutor... Em
duas filas e ao tom do apito
seguem em corrida entoando
canções de instrução militar
para dar encorajamento
à actividade física que irá ser
posta em prática. No entanto,
esses jovens ingressam apenas
com a ideia de que irão
participar de um curso universitário
como qualquer outro
sem carácter militar. Esta
etapa se encerra...junto a um
local onde lhes é fornecido
o fardamento militar. Posteriormente,
são conduzidos às
casernas onde lhes será atribuído
um número de identificação
no uniforme, local de
dormir, espaços a percorrer, a
forma da caminhada para que
eles assumam a dimensão de
grupo em suas opiniões e ignorem
as individuais.
Enquanto o início da formação na
ACIPOL é descrito como bastante
militarizado, assim como os primeiros
anos, somente a partir do segundo
ano começa a ser dada maior atenção
às disciplinas teóricas. É de salientar
que nestas disciplinas teóricas, no entanto,
há um mero conhecimento das
normas; em Direitos Humanos, por
exemplo, a disciplina não é suficiente
para habilitar os formandos a traduzir
as regras em apropriados comportamentos
profissionais. A aquisição de
competências deve ser vista como um
41 Idem.
42 http://noticias.mmo.co.mz/2014/07/graduados-novos-membros-da-prm-na-escola-pratica-de-matalane.html#ixzz3jiJGpEl8 (25/10/2015).
43 Nota 40 supra.
44 Idem, pg.11.
45 Manual do Formador em Direitos Humanos para a Polícia do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pg. 10.
46 Note 3 supra.
47 Egor Vasco Borges (2012). A Formação Profissional de Policiais e o Enfrentamento a Delinquência nos Marcos da Edificação do Estado Moçambicano (1975-1990), pg. 114.
5.4.3 Treino prático
11
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
processo, uma vez que são habilidades
que precisam de prática e aplicação48.
Uma pesquisa mais exaustiva deveria
analisar o quanto o treino prático, o uso
de uniformes e as práticas tipicamente
militares influenciam a formação, em
geral, e a aprendizagem académica simultaneamente
oferecida no instituto.
O uso da AKM 47
Nas duas escolas, no âmbito da disciplina
Armas e Explosivos, é inegável
pensar que os cadetes não sejam também
treinados a usar a AKM 47, arma
oficial da PRM, assim como outras armas
e explosivos. Uma questão preliminar
seria sobre o que uma PRM com
a AKM 47 pode representar para uma
polícia de serviço público. Esta arma,
de origem russa, hoje fabricada também
por outros países, é a arma mais
usada no mundo, por parte de forças
militares, grupos terroristas e pela polí-
cia em Moçambique e Myanmar49. Foi
usada pela polícia russa no combate
ao aumento da criminalidade durante
os anos 90, uma polícia paramilitar de
agentes mal treinados que patrulhavam
as ruas nervosos e que viam a popula-
ção mais como ameaça ao invés de alvo
a proteger50.
Não teria chegado o tempo de reflectir
sobre a real necessidade da PRM
na rua ter uma arma como a AKM 47,
uma PRM que queremos como serviço
público?
Existem ainda as exigências para os
Guardas que patrulham as ruas caminharem
com uma AKM 47?
sA formação policial deve ser fornecida
por instrutores preparados, conhecedores
da cultura que envolve o pessoal
de aplicação da lei e que saibam
transmitir saberes e práticas, ensinar a
discernir entre as acções necessárias,
proporcionais e adequadas e acções
incertas, desproporcionais e inadequadas.
Os treinadores devem buscam
criar uma atmosfera colegial que facilita
o intercâmbio de conhecimentos,
experiências e práticas, reconhecendo
o conhecimento profissional e incentivando
o orgulho profissional51. É um
tipo de relação que não está a acontecer.
A este propósito, Borges declara
que na ACIPOL,
as relações entre os cadetes e o
instrutor são maioritariamente autoritárias
e coercitivas colocando o
formando numa posição subalterna
e sem reclamações, ou seja, o
culto à obediência é ensinado desde
o primeiro dia para inculcar no
futuro policial a ideia de que a ordem
deve ser executada sem contestações
e só depois de realizada a
tarefa é que se reclama52.
Esta abordagem afecta as relações entre
os cadetes e os formadores, também
considerando o peculiar complexo de
inferioridade dos mesmos formadores
que, não tendo, na maior parte das
vezes, uma formação superior, sabem
que estão formando os seus próprios
e futuros chefes53. Isto deveria ser gradualmente
eliminado, formando constantemente
os formadores e reconhecendo
esta categoria como importante
e independente de uma cultura militar.
A academia deveria ser incólume nestas
características.
Não excluindo a importância de os formadores
serem polícias, é importante
salientar como, muitas vezes, os formadores-polícias
não são especialistas
em Direitos Humanos e, por isso, precisa-se
de formadores com especialidade
nestas matérias. A este propósito,
numa entrevista publicada no Jornal
Notícias, em 2014, o então Director
da Escola de Matalane, o Comandante
Feliciano Chongo, deixa algumas preocupações.
Ele afirma:
Só o polícia é que pode formar outro
polícia, daí que há esta necessidade
de termos um corpo docente
próprio. É uma questão lógica.
E temos vários quadros a serem
formados fora do país que ao regressar
prioritariamente estarão
afectos nas escolas da Polícia para
poderem transmitir a experiência
que têm de outros países54.
Esta posição é contrária ao desenvolvimento
de uma corporação aberta.
Com efeito, o PNUD afirma que
durante o projecto, em 2007, tinham
sido recrutados cerca de 30 formadores
civis para ensinar disciplinas
socioculturais e ligadas aos Direitos
Humanos55.
Pensamos que o governo deveria aprofundar
mais sobre a qualidade e quantidade
dos formadores civis nas duas
instituições de formação56.
5.4.4 Os Formadores
Os elementos-chave da Escola de Matalane
e da ACIPOL, tais como requisitos
de entrada, o magro orçamento,
a curta duração da formação com a
sua parte curricular e treino prático,
demonstram que a formação militar
domina a preparacão da polícia. Na
Escola de Matalane, mais que na ACIPOL,
a análise destes factores, ainda
que muito descritiva, revela uma formação
gerida dentro de um panorama
limitado e secreto. Sob a máscara do
conceito de segurança do país, a formação
policial é deixada longe dos
reais desafios da sociedade, incluindo
as novas e complexas exigências de
oferta de serviços públicos de segurança.
Esta é a origem da acção policial
48 Nota 48 supra, pg.14.
49 http://worldmilitaryintel.blogspot.co.za/2013/05/blog-post_2803.html (12/10/2015).
50 https://inmoscowsshadows.wordpress.com/2008/10/23/new-guns-for-russias-cops-so-what/ (12/10/2015).
51 Nota 48 supra, pg.14.
52 Nota 50 supra, pg.114
53 Nota 50 supra, pg. 116.
54 http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/primeiro-plano/16088-escola-pratica-da-policia-em-matalane-de-mata-densa-a-pequena-cidadela (12/10/2015).
55 Nota 40 supra, pg 37.
56 O Prof. Alexandre Timbana ensina Linguística Forense na ACIPOL. Veja-se http://www.linguisticaforense.ufsc.br/tiki-index.php?page=Prof.+Dr.+Alexandre+António+Timbane (1/11/2015).
6. Conclusão
12
ANTI-CORRUPÇÃO
l BOA GOVERNAÇÃO
l TRANSPARÊNCIA
virada para ‘reprimir’, mesmo naqueles
casos em que o exercício da cidadnia
esteja protegido pela lei.
Entretanto, enquanto estes factos deveriam
ser aprofundados através de
uma pesquisa aplicada, poderíamos
concordar que o novo legislador (Lei n.
16/2013) concorde com a desmilitarização
da PRM, dando-lhe a conotação
de serviço público. Se este elemento for
realmente aceite, um novo plano estratégico
do sector deve repensar na formação
policial como elemento importante
para materializar o princípio do
legislador. O desafio estaria em compreender
como este novo elemento,
de serviço público, poderia traduzir-se
na prática durante a formação policial.
Também fica por compreender como
a formação policial respeitaria os novos
objectivos, de prestador de serviço
público. Como, nas formações de reciclagem
de antigos membros da PRM, o
novo programa seria introduzido?
Fora a necessidade de formar sempre
mais pessoas, os crimes informáticos,
os raptos, o tráfico de seres humanos
e o tráfico de droga precisam de uma
polícia melhor preparada e regularmente
treinada para enfrentar estes
novos crimes e as novas necessidades
da sociedade em contínua evolução.
Os curricula deveriam responder a estas
novas exigências, preparando Guardas
que patrulhem as ruas do país para prevenir
a criminalidade, proteger a população
e combater o crime de maneira
eficaz e eficiente, preparando quadros
que, conhecedores das dinâmicas internacionais
e de Moçambique, estejam
prontos a criar adequados planos de
acção e estratégias.
Editorial Information
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Edson Cortez, Egídio Rego, Fátima Mimbire,
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