Ailton Krenak, activista dos direitos dos indígenas, participou na elaboração da Constituição brasileira de 1988 e interpreta a actual situação política do país como uma crise de representação. Natural de Minas Gerais, lamenta o que considera ser a impunidade dos responsáveis pelo desastre ambiental
As manifestações pró e contra o Governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a divulgação das escutas telefónicas, a tomada de posse e quase imediata suspensão de Lula da Silva, o início do processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff. A vertigem com que as notícias chegam do Brasil contrasta com o discurso sereno e pausado do activista indígena Ailton Krenak, que pesa cada palavra antes de a proferir.
Serve-se das palavras do antropólogo e político brasileiro Darcy Ribeiro para dizer que aquele país “é um processo, uma longa jornada de fazer coisas”, mas considera que talvez essa seja apenas uma forma de tolerância, “uma maneira de desculpar os nossos defeitos, as nossas imperfeições no processo social”.
Aos 63 anos, Ailton Krenak é uma personagem destacada da defesa dos direitos dos indígenas no Brasil. Nasceu no estado de Minas Gerais, no seio da tribo que lhe deu o apelido, e foi eleito para o Congresso em 1986, onde participou na elaboração da Constituição de 1988, na qual foram inscritos os direitos dos índios brasileiros.
Com actividade política e de contestação há cerca de três décadas, observa o seu país e vê um limbo. Os partidos estão em crise – “não representam nada”, como disse várias vezes – e uma rápida saída da actual situação de crise política não se apresenta como o cenário mais óbvio.
Quando conversou com o PÚBLICO, estávamos a poucas horas da tomada de posse de Lula da Silva como chefe da Casa Civil e a previsão sobre o que aconteceria ao ex-Presidente brasileiro talvez tenha sido mais ajustada do que o próprio calculava. “Não acredito que isso vá acontecer. E se acontecer não vai durar”, comentava, embora com uma explicação diferente para o que veio a suceder. “Só vai tumultuar o resto do caminho, porque o Presidente Lula não é discreto. Estaria mostrando uma incapacidade absurda dele mesmo e da Dilma de se conduzir com alguma clareza num momento da vida política tão tumultuada no nosso país”. O tumulto acabou por acontecer, mas por outros motivos. Um juiz suspendeu a nomeação de Lula horas depois da tomada de posse no Palácio do Planalto, o discurso endureceu de parte a parte e a crise política agudizou-se.
“Quando a gente tem uma ausência de lideranças esclarecidas, que conseguem pautar o debate dentro da sociedade, você corre o risco de oportunistas aparecerem provocando crises e colocando a vida das pessoas em risco”, alerta.
Quando questionado sobre a polarização na sociedade brasileira e uma possível solução, Ailton Krenak olha para o início da década de 90 e para o processo de destituição de Fernando Collor de Melo em busca de um paralelismo. “Vivemos uma situação com alguma repetição desse limbo: tinha uma liderança política muito activa que meteu os pés pelas mãos [Collor de Mello], então o vice-presidente que era apagado, que não tinha nenhuma presença, ocupou o vazio”. Refere-se a Itamar Franco, que “conseguiu tirar o país do limbo da maneira mais discreta possível”, até à eleição de Fernando Henrique Cardoso, “sem conflito nem um desgaste muito grande na vida política do país”.
No entanto, não vê no Governo nenhum actor que possa agora desempenhar esse papel. Nem na oposição. “A crise se alastrou muito no sentido da representação dos partidos”, considera, “talvez essa seja a grande diferença para a década de 90, em que tinha lideranças políticas que estavam queimadas mas alguns partidos ainda tinham o respeito público. Hoje, se qualquer partido for a público ele é xingado”.
Esta situação, interpreta, pode ser entendida como um amadurecimento da compreensão política dos brasileiros, de que os partidos não são capazes de dar conta das necessidades das diferentes comunidades que constituem a sociedade brasileira. Mas pode igualmente ser sinal da corrupção endémica que tantas vezes é apontada ao sistema político do país: acontece “em todos os partidos, com sectores da actividade produtiva, das empresas de engenharia, dos operadores de sistemas de serviço e com a agravante de ter afectado a relação com cidadãos”. Quem exerce cargos públicos, entende, perdeu a percepção sobre a fronteira entre o público e o privado. Se a face mais visível desse entendimento é o suborno (“a propina”), as campanhas eleitorais são a sua mais corpulenta expressão.
O líder indígena brasileiro vê o financiamento das campanhas por parte das corporações como um “patrocínio”. E se o mandato “pode ser patrocinado, então ele virou um produto. É mercadoria. Não é mais um exercício legítimo da política”. Esta é uma situação que não será resolvida no curto prazo, lamenta. “Quem sabe se estamos vivendo a nossa experiência regional da exaustão dessa forma de representação?”, interroga, avançando que, no futuro, a questão mais importante será o debate sobre as formas de representação dos cidadãos.
Ailton Krenak “enxerga essa tragédia da representação defeituosa” das comunidades no sistema político. Nomeadamente com os povos indígenas, que “são tratados como sendo relativamente incapazes de exercer a sua cidadania plena, com o Estado a suprir essa incapacidade relativa com a sua tutela”.
Quanto a soluções para o impasse político, o activista não arrisca avançar com uma. “O que é bom na nossa História é que, em muitos países essas coisas terminam em tragédia e no Brasil pode terminar numa piada”.
O desastre do rio Doce
Watu – palavra que pode ser traduzida para português como “o nosso pai”. É este o nome que os Krenak dão ao rio Doce, no estado de Minas Gerais, cujas margens habitam, tratando-o como uma entidade.
Watu – palavra que pode ser traduzida para português como “o nosso pai”. É este o nome que os Krenak dão ao rio Doce, no estado de Minas Gerais, cujas margens habitam, tratando-o como uma entidade.
No início de Novembro, a ruptura de uma barragem de retenção de minério em Mariana, no mesmo estado, causou uma avalanche que, para além das vítimas mortais, lançou um manto de resíduos tóxicos sobre uma vasta área de território. Num dos maiores desastres ambientais que o Brasil já testemunhou, a aldeia de Bento Rodrigues foi a primeira de uma série de populações afectadas na bacia hidrográfica do rio Doce. A lama castanhaacabou por chegar ao estuário do rio, já no estado de Espírito Santo, dias depois.
“Foi um evento assustador para as mentalidades das pessoas que cantavam para ele como um avô, que reconhece ele como um provedor da vida quotidiana, mas também é simbólico para os seus cantos e rituais”, recorda. “Foi um trauma tão grande que as pessoas ficaram em choque”.
O activista que passou por Coimbra para falar sobre os efeitos da ruptura da barragem gerida pela Samarco (empresa resultante de uma parceria entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton) descreve a paisagem como desoladora: “A água do Watu virou plástico aderente. Formou um cenário que parece um filme de terror. É a cara de um desastre ambiental”.
Mesmo com operações de limpeza, Ailton estima que demorem dez anos até que volte a fluir algum líquido parecido com água. E até lá? Uns continuam em suspenso, dependentes de ajuda para ter acesso a água potável, outros já começaram a abandonar o local. “As pessoas vão fazer o quê? Tenho observado que muitas famílias estão indo embora, principalmente os vizinhos [da tribo Krenak], gente que vivia da actividade da pesca… como é que eles vão sobreviver?”, questiona, ao referir que a assistência dada às populações tem sido insuficiente.
Insuficiente considera também que é a responsabilização pela catástrofe. A Samarco poderá pagar a multa através de uma fundação, algo que vê como uma “malandragem”. Mostra-se incrédulo com a “ideia genial de criar uma fundação para pagar o valor da multa” e diz que a primeira vez que ouviu “essa história achei isso de imoral. Mas eles continuaram repetindo e todo o mundo aceitou”. “Eles [os executivos da empresa] estão saindo todos ilesos e ainda vão gerir uma fundação. Talvez daqui a alguns anos eles estejam a fazer propaganda da fundação falando como é bacana, e como ela salvou o rio Doce e as pessoas”, ironiza.
Do ponto vista do pensamento indígena, Krenak explica que é “escandalosa” a “apropriação da natureza” pelas corporações, e que estas “actuam de uma maneira soberana como se tivessem uma licença divina para cagar no planeta”. Não só no Brasil, mas nos vários continentes. O raciocínio que expõe é relativamente simples: quando uma catástrofe afecta as pessoas, elas podem ser retiradas e levadas para outro lugar e indemnizadas; quando acontece o mesmo com a natureza, “não tem como a indemnizar, você não tira um recife de um lugar e põe ele em outro”.
Mesmo do ponto de vista da actividade industrial, o activista refere que houve várias empresas da bacia hidrográfica do rio Doce afectadas pela poluição causada pela ruptura da barragem, que utilizavam a água do rio para a sua actividade, e lamenta que não tenha havido uma reacção mais vigorosa ao “crime escandaloso”.
Na cultura indígena, explica Ailton, a consciência de uso comum de um determinado recurso faz com que este tenha que perdurar no tempo e a sua continuidade deva ser assegurada no seio da tribo. Da mesma maneira que um indivíduo “não pode ao longo da vida dele querer exaurir os recursos que estão em torno dele, uma actividade empresarial não tem o direito de acabar com a paisagem em torno dela, destruir uma montanha, envenenar os rios, transformar os rios em esgotos, contaminar tudo o solo e o lençol freático”, tal como aconteceu com o rio Doce.
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