REPORTAGEM
PAULO MOURA (em Esmirna)
28/02/2016 - 07:01
Em Esmirna, entre a fronteira síria e as margens do Egeu, percebe-se que tudo é um grande negócio. Os refugiados vêm negociar com as máfias as suas passagens de barco para as ilhas gregas. Fabricam-se falsos coletes salva-vidas, explora-se o trabalho das crianças sírias.
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Ninguém levantou os olhos dos tabuleiros de xadrez quando os dois homens entraram. Só Sayid os cumprimentou, com um sorriso claramente forçado. Já tinham falado antes, só faltava esclarecer os pormenores. No essencial, os dois sírios haviam aceitado as condições. Mas vinham com alguma esperança de reduzir o preço, dadas as circunstâncias.
“A minha prima perdeu o marido, e ficou com dois filhos a seu cargo”, explicou um dos homens, Tarek. “Na Alemanha, tem família que a pode ajudar. Precisamos de a tirar daqui”.
Sayid, que também é sírio, gostaria de ser generoso, para mostrar uma certa faceta altruísta da sua tarefa, e a sua posição de algum poder dentro da estrutura. Mas como nem uma nem outra coisa é verdade, optou por uma argumentação de cariz mais empresarial: mais vale investir um pouco mais, e garantir uma viagem segura.
“Agora não se pode confiar em ninguém”, disse ele, detendo-se para traduzir cada frase em inglês. “Há por aí muita gente que anda louca por ganhar dinheiro, e não tem qualquer respeito pela vida humana”. A explicação destinava-se a Tarek e a mim, tentando assim ganhar credibilidade nas duas direcções. “Nós asseguramos que o passageiro chega ao seu destino. Só quando isso for confirmado pelo próprio, é que a cobrança é feita”.
O método apresenta muitas vantagens. Por um lado garante que o cliente não perde o dinheiro, porque, se a travessia para a Grécia não se concretizar, seja porque o traficante não conseguiu um barco, ou foi preso, seja porque o barco venha a ser interceptado pela Guarda Costeira, o passageiro pode levantar o seu dinheiro, num prazo de cinco dias a contar da data prevista para a viagem, ou pode voltar a registar-se, para nova viagem.
Por outro lado, se a cobrança só é efectuada após o êxito da travessia (confirmado com um telefonema feito da Grécia pelo próprio passageiro), o traficante fará os possíveis para que tudo corra bem.
Agora não se pode confiar em ninguém. Há por aí muita gente que anda louca por ganhar dinheiro, e não tem qualquer respeito pela vida humanaSayid, sírio
Noutra mesa do café, uma grande esplanada com janelas de plástico, discutiam-se transacções semelhantes, sem que isso perturbasse minimamente os circunspectos jogadores de xadrez. Os velhos turcos provavelmente não entendem nem uma palavra das conversas em árabe, embora saibam perfeitamente qual o tipo de negócio em que o bairro de Basmane nos últimos anos se especializou.
O emaranhado de ruas estreitas e pracetas à volta da estação de comboio de Basmane, em Esmirna, é o grande centro turco de tráfico de seres humanos. Alguns contratos são feitos em Istambul ou noutras cidades costeiras, mas Esmirna é a grande capital do tráfico. Os cerca de 3 milhões de refugiados sírios que vivem espalhados por todo o território da Turquia sabem que têm de vir aqui, se querem tratar da sua passagem para a Europa, através das ilhas gregas.
No bairro de Basmane, os traficantes estão em todo o lado. O largo em frente à estação é o portal das primeiras abordagens. Na esplanada do café Sindibad e do Ali Ulvi Kiraathanesi, ao longo do passeio e junto aos semáforos, nas esquinas dos becos cobertos com caniçados de heras e lonas, os angariadores aproximam-se de quem passa, oferecendo os seus serviços.
Andam por ali às voltas e tentam perceber quem são os recém-chegados, quem não é habituée do bairro, quem tem um ar confuso e desorientado, perscrutador ou desesperado. No seu afã de serem os primeiros a estabelecer o contacto com os potenciais clientes, nem pensam que um homem sozinho com ar de forasteiro poderia ser um polícia, ou um repórter estrangeiro. “Dear sir, estou à sua disposição para qualquer tipo de serviço de que ande à procura”, disse-me um deles, ao ver que o meu propósito não era embarcar num insuflável para Lesbos. Sugeriu restaurantes típicos, clubes nocturnos e, por fim, um encontro com uma jovem síria por 10 euros.
Não obstante a esquadra situada a poucos metros da estação, e os polícias que patrulham a zona de metralhadora ao ombro, as abordagens são feitas abertamente, tal como as negociações, nos pequenos cafés e restaurantes de kebabs, nos barbeiros, nas vielas entre as lojas de telemóveis, de ferramentas, de fruta e legumes, e as centenas de pequenos hotéis e pensões.
As lojas têm as montras atafulhadas com artigos que possam ser úteis a quem atravessa o mar Egeu numa embarcação precária: balões vazios, para envolver e proteger os telemóveis no caso de se cair à água, lanternas, barretes e toucas para o frio, e até blocos de notas feitos num papel especial à prova de água, para que não se percam os números de telefone, nomes e notas necessários para se prosseguir a viagem.
Nas grandes lojas do Bulevar Fevzipasa, uma larga e movimentada artéria que liga Basmane a Konak, um dos centros da cidade, e à elegante avenida marginal (Kordon), há, expostos em grandes quantidades nas mostras e nos passeios, câmaras de ar de camião insufladas, para servir de bóias, e muitas variedades de coletes salva-vidas, com preços desde 2 euros a 40 euros. Os primeiros, oriundos de fábricas improvisadas nos arredores da cidade, são claramente falsos, sem qualquer material flutuante na sua construção, e, como já foi demonstrado por várias organizações defensoras dos direitos humanos, tornam-se pesadíssimos quando molhados, arrastando facilmente os seus portadores para o fundo.
Quando pergunto porque vendem estes coletes, que na maioria dos casos têm tamanho de criança, os vendedores não respondem, mandam-me embora, tornam-se agressivos. Um acabou por resmungar, referindo-se a um colete de bebé, cor-de-rosa: “É um brinquedo”.
Já quando peço informação sobre os topo de gama, mostram-se simpáticos e explicam as características dos flutuadores de silicone, das lanternas e sinalizadores de luzes incorporados, das etiquetas impermeáveis para o nome e nacionalidade, úteis caso os corpos venham a ser encontrados inconscientes, ou sem vida.
Uma cadeia bem organizada
Caiu a noite no café dos jogadores de xadrez, e a temperatura também, bruscamente. O muezzinjá lançou o seu grito na mesquita situada do outro lado da pequena praça. De um café constituído apenas por um balcão virado para a rua, numa das esquinas, vem uma luz branca e uma canção roufenha, cantada em árabe. Uma camioneta de caixa aberta entrou na praça para vender legumes. Junto aos degradados bancos de jardim e a um monte de lixo, um grupo de homens acendeu uma fogueira e instalou-se com mantas e uma grande quantidade de sacos de plástico. São refugiados e estão ali a dormir, tal como os grupos e famílias à porta dos hotéis, junto à mesquita, encolhidos nos passeios, amontoados nos jardins.
Sayid acabou de explicar todo o esquema aos seus compatriotas sírios. Após o pagamento, quando chegar a altura, a sua prima e as duas crianças serão levados para um local perto da costa, onde ficarão à espera, com um grupo de outros refugiados, da saída, pela madrugada, do barco que os deixará na ilha grega de Lesbos. O local de espera será algures entre a praia de Dikili e Assos, quase 300 quilómetros a norte de Esmirna.
Sayid, que é apenas um dos elementos de uma cadeia bem organizada, guardará o pagamento dos três, Rima, Majd e Nour, até que a operação esteja concluída com êxito. Os cinco mil euros (dois mil por cada adulto, Rima e Majd, apesar de este só ter 10 anos, e mil por Nour, que tem pouco mais de um ano) serão entregues aos passadores turcos apenas quando Sayid receber um telefonema de Rima, a partir de Lesbos.
Se a chamada não for feita, o dinheiro não é entregue, e será devolvido a Rima, se ela o vier reclamar num prazo de cinco dias. Isto protegê-la-á de uma das fraudes mais comuns em Basmane: a dos traficantes que recebem o dinheiro e depois não organizam a viagem. O esquema protege também os traficantes, porque mesmo que Rima decida prosseguir a viagem para a Europa do Norte sem fazer o telefonema, não estará, no prazo de cinco dias, em Esmirna para vir reclamar o dinheiro, que será então entregue de qualquer forma ao mafioso. Parece perfeito. Só uma possibilidade não é contemplada, embora esteja incluída na lógica do negócio: se morrerem na travessia, não farão nenhum telefonema, nem virão reclamar o dinheiro. Cinco dias depois, será entregue ao traficante.
Tarek comprendeu e aceitou as condições do contrato, que será assinado numa babearia que Sayid usa como escritório. Outros colegas seus conseguiram já alugar verdadeiros escritórios, em minúsculos segundos andares de Basmane, a que chamam “companhias de seguros”.
Refugiados à espera da partida para a Grécia BULENT KILIC/AFP
Enquanto os velhos turcos moviam, imperturbáveis, mais uma torre ou um bispo nos seus tabuleiros gastos pelo tempo, Tarek e o amigo sairam para ir ter com a família de refugiados que os esperava noutra rua de Basmane.
Rima e os filhos chegaram a Esmirna há dois dias, e não encontraram alojamento. Todas as pensões estão cheias, muito para lá dos limites. Visitei uma onde três famílias dormiam num mesmo quarto, em mantas distribuídas pelo chão. Noutra, havia dezenas de crianças nos corredores, entre lixo e sacos com comida nauseabunda.
Rima e os filhos dormiam na esplanada de um café. Fui falar com eles no dia seguinte, com um tradutor. São de Alepo, mas entraram na Turquia há cerca de um ano, depois de o marido de Rima ter sido morto num bombardeamento das forças governamentais. “Ele nunca quis combater”, contou Rima. “Tinha escolhido ficar com a família. Mas obrigaram-no. Teve de juntar-se ao Exército Livre da Síria. Morreu pouco depois de eu ter engravidado”.
No bairro de Alepo onde vivíamos, Al Sajur, não resta nenhuma casa. Dois irmãos meus foram mortos também. E a nós aconteceria o mesmo, se ficássemos"Rima
Rima tem 31 anos, mas é igual a uma criança, com o seu metro e trinta, pouco mais. Ao pé dela, Majd, o filho de 10 anos, parece um homem. E é. Nos últimos oito meses, como Rima precisasse de ficar a tomar conta de Nour, a sua bebé, já nascida na Turquia, foi ele que trabalhou, numa fábrica de sapatos em Denizli, uma das regiões turcas cuja indústria mais cresceu nos últimos anos. Majid trabalhou a tempo inteiro, nessa cidade considerada um dos Tigres da Anatólia, com um salário de 70 euros por mês, juntando dinheiro para a travessia. Até ter magoado a mão numa máquina de cortar couro, e não poder trabalhar mais. A poupança que acumulou está longe de atingir o exigido pela máfia de Sayid. Se a família quer partir para a Europa, terá de se sujeitar a um dos esquemas mais baratos, muito mais perigosos.
“No bairro de Alepo onde vivíamos, Al Sajur, não resta nenhuma casa”, contou Rima. “Dois irmãos meus foram mortos também. E a nós aconteceria o mesmo, se ficássemos. Toda a gente fugiu. Quem tinha ficado, saiu agora, e está junto à fronteira turca, a tentar entrar. Nós estamos sozinhos. Apenas temos uns tios em Hamburgo, na Alemanha. Precisamos de chegar lá. É a nossa única esperança. Aqui vamos morrer à fome”.
Rima e a família ocupam uma mesa na esplanada de um café situado junto a uma escavação arqueológica. É ali que dormem, sob um toldo, rodeados de trouxas e sacos de plástico, quase encostados à rede que limita as ruínas gregas, juntamente com outras famílias recém-chegadas.
Durante o dia, Rima vai, com os filhos, pedir para o Bulevar. É mais uma das muitas mulheres que abordam os transeúntes com olhos suplicantes ou insinuantes. Algumas sentam-se nos degraus das portas, fixando o chão, outras vasculham no lixo, em concorrência com os cães vadios que enchem as ruas de Esmirna. Quase todas trazem crianças.
Mas nenhuma parece tão frágil como Rima, com o seu bebé ao colo, e mais pequena e franzina do que o seu filho de 10 anos.
É impossível vê-los como uma ameaça. São uma família em miniatura, cabem em qualquer lado, não incomodam ninguém. E no entanto sente-se que para eles o caminho será ainda mais longo e mais terrível.
As ruas de Esmirna estão cheias de sírios. Os negócios ligados à sua presença prosperam OSMAN ORSAL /REUTERS
Tortura e impunidade
Neste momento, há cerca de 2,62 milhões de refugiados sírios registados na Turquia, embora o número real, segundo as próprias autoridades, deva ultrapassar os 3 milhões. Destes, 273 mil vivem nos 25 campos criados, na sua maioria, na zona da fronteira síria. Mais de metade de todos os refugiados são crianças. Graças a um programa desenvolvido pelo governo turco, com a colaboração da UNICEF, 310 mil crianças sírias frequentam aulas nos estabelecimentos de ensino turcos, apoiadas por quase três mil professores com treino especial para ensino em situações de emergência. Dez mil voluntários sírios trabalham também nas escolas, ajudando na integração das crianças suas compatriotas.
Mas mais de 500 mil crianças sírias estão na Turquia há 5 anos e nunca foram à escola. Fazem parte, como me diria depois, em Ancara, o representante da UNICEF na Turquia, Philippe Duamelle, da geração perdida. “Estamos em risco de perder uma geração inteira de crianças sírias. Darmos-lhes acesso à Educação será a melhor forma de as protegermos. Mas muitas delas já não são capazes de se adaptar a uma educação formal”.
500 milcrianças sírias estão na Turquia há 5 anos e nunca foram à escola
Pelo menos 400 mil crianças trabalham, em fábricas, em oficinas, ou na agricultura, por salários irrisórios. É-lhes mais fácil a eles do que aos adultos encontrar emprego, e por isso são muitas vezes eles que sustentam as famílias.
Apesar dos programas governamentais resultantes da política de “portas abertas” e de Protecção Temporária dos refugiados, a maioria destes não tem condições mínimas de sobrevivência, e é vítima de abusos e exploração. Os programas de apoio alimentar e de acesso aos serviços de Saúde estão disponíveis essencialmente aos refugiados instalados nos campos, que representam pouco mais de 10 por cento do total. Para os outros, espalhados por cidades e aldeias de todo o país, os benefícios são praticamente nulos, dada a complicação burocrática que envolve os programas de “cartões de crédito” alimentar e os cartões de Saúde.
“Todas estas pessoas são vítimas permanentes de violência por parte de vários tipos de agentes, não ligados ao Estado. Muita gente se aproveita deles, em total impunidade”, disse Ela Gokalp Aras, professora da Universidade de Gediz e responsável por um estudo sobre a situação dos refugiados. “A sua condição de residente temporário coloca-os numa grande vulnerabilidade. Segundo as sondagens que fizemos, a maioria dos refugiados quer ficar na Turquia, e não avançar para a Europa, enquanto a guerra durar. Por isso é necessário criar verdadeirios programas de integração”.
Piril Erçoban, dirigente da Associação de Solidariedade para com os Refugiados - Multideci Der, explicou que a situação de residentes temporários não permite aos sírios “Fazerem planos para o futuro ou terem esperança. Milhões trabalham na economia informal. As crianças não vão à escola porque são obrigadas a trabalhar, pois o que os pais ganham não é suficiente. E as que vão à escola não aproveitam devidamente, porque não há um programa para aprender a língua”.
Os enormes campos de refugiados criados na zona fronteiriça, como o de Gaziantep, parecem ter condições exemplares, de higiene e organização. Alguns são aglomerados de tendas, outros de contentores, alinhados em extensões a perder de vista.
Mas apenas dois dos 25 campos têm sido abertos a jornalistas e a ONGs independentes. Segundo Volkan Gorendag, activista da Amnistia Internacional, os campos foram construídos para refugiados afegãos e de outras nacionalidades. “Só colocaram lá os sírios quando começaram as negociações com a União Europeia, para poderem mostrar trabalho. Mas são apenas sírios que já foram deportados, ou apanhados no mar e detidos. Nos campos, são obrigados a assinar um documento em que se comprometem a regressar à Síria, o que é uma forma de chantagem, obrigando-os a ficar ali, em condições deploráveis, sob pena de serem levados para a Síria. Nestes campos há maus-tratos, tratamento desumano, quase tortura. Temos relatórios de um sírio espancado até à morte pelos guardas do campo, vários casos de violações de direitos humanos. E total impunidade dos culpados”.
Confrontados com isto, os responsáveis da ONU pela monitorização de todos os campos relativizaram as acusações. “Há decerto casos de abuso, mas promovemos uma investigação, sempre que surjam queixas”, disse Selin Unal, da ACNUR. E o francês Jean-Yves Leguine, da UNICEF, equacionou assim o problema: “A Turquia recebeu 2,6 milhões de sírios, com uma grande hospitalidade. Se isto acontecesse em França, não sei se faríamos melhor”.
Vantagens da tragédia
A atitude dos turcos para com os sírios, dizem as sondagens, é benévola. Segundo um estudo conduzido por Murat Erdogan, director do Centro de Política e Migrações da Universidade de Hacettepe, mais de 50% da população aprova a política de “portas abertas” e de apoio aos refugiados da Síria. Uma percentagem sensivelmente idêntica, nota porém o investigador, à daqueles que apoiam o partido governamental, AKP. “O apoio à política do Presidente quanto aos refugiados pode confundir-se com o apoio ao próprio Presidente, uma vez que ele tem feito uma campanha pública intensa em favor da sua política para os refugiados e a guerra na Síria, enquanto que os partidos da oposição não colocaram o tema na sua agenda”.
Por outro lado, uma quantidade enorme de pessoas e empresas está a tirar vantagens da tragédia dos refugiados sírios, num contexto de exploração e abuso. Mas mantendo a sociedade numa estranha atitude de negação.
50%da população aprova a política de “portas abertas” e de apoio aos refugiados da Síria
O presidente da Câmara da Indústria para a região do Egeu, Ibrahim Gokçuoglu, garantiu-me que, nas empresas que a sua associação representa, não trabalham crianças, nem sírios com salários inferiores aos dos turcos. “As nossas empresas são todas legais, cumprem as leis, pagam os impostos. Essas crianças apenas trabalham na economia clandestina. Nas nossas empresas, aliás, que eu saiba, não trabalha nenhum refugiado. E é impossível saber quantos sírios trabalham, e quantas crianças, porque dessas empresas da economia informal não se consegue recolher informação fiável”.
O presidente da Câmara de Esmirna, Aziz Kocaoglu, foi absurdamente categórico: “Não há, em toda a nossa zona metropolitana, nenhuma criança a trabalhar. É proibido, segundo a lei turca. Nem há nenhuma pessoa a trabalhar com salários inferiores, por ser sírio, afegão, ou de qualquer outra nacionalidade”. Depois acabou por admitir: “Só se for na economia ilegal. Aí, talvez aconteça. Mas é ilegal, e o Ministério do Trabalho já está a controlar isso”.
Aziz foi igualmente rápido a negar a existência de máfias e traficantes, que, segundo os cálculos de várias ONG, é já um negócio de dois mil milhões de euros na Turquia, e tem o seu centro em Esmirna: “Nesta cidade não há máfia. As pessoas aqui pagam os seus impostos, e não aprovam essas actividades. Vivo aqui há 49 anos, fiz muitos negócios, mas nunca ouvi falar em traficantes em Esmirna. Se os há, são muito poucos, e vêm de fora. Até do estrangeiro. Porque o tecido humano desta cidade rejeita esses actos”.
Família síria na província de Esmirna, na Turquia. As antigas casas de praia são usadas como abrigos BULENT KILIC/AFP
Rana Kalkan tem 35 anos e é professora em Esmirna. As suas turmas têm hoje alunos sírios, o que, segundo ela, torna as aulas quase impossíveis. “Eles não falam turco, têm uma cultura muito diferente, mas estão integrados nas mesmas turmas. Como é possível dar aulas assim?”
Rana pertence a uma família laica, como grande parte da população de Esmirna, que vota maioritariamente no Partido Republicano do Povo, kemalista, na oposição, e é pouco dada a fundamentalismos religiosos. “Nós somos muito próximos da cultura europeia. Não gosto de sírios e desse tipo de pessoas”.
A avó de Rana foi imigrante sérvia depois da I Guerra Mundial, e o avô veio de Creta, pela mesma altura. Ele ainda é vivo, tem 88 anos e dedica-se ao negócio do petróleo, depois de uma vida a trabalhar na ONU.
No final da I Guerra, com a derrota do Império Otomano, o exército grego invadiu a região, perseguindo os turcos pelo interior da Anatólia. Mas acabaram por ser derrotados, e expulsos. Em Setembro de 1922, os turcos voltaram a apoderar-se da cidade. Pouco depois, um enorme incêndio deflagrou nos bairros grego e arménio de Esmirna. Durou 10 dias, destruiu tudo e matou 100 mil pessoas.
Os gregos que viviam e prosperavam em Esmirna desde há séculos foram obrigados a regressar à Grécia, e os muçulmanos de origem turca que viviam na Grécia regressaram a Esmirna, segundo um tratado assinado em Lausanne. O avô de Rana foi um desses “gregos” que aqui se instalaram na altura.
Esmirna existe como cidade há mais de cinco mil anos (alguns historiadores pensam que Homero nasceu aqui), mas quase não tem vestígios da sua existência anterior ao século XX. O incêndio de 1922 foi apenas um dos muitos episódios de destruição, conflitos, massacres e pilhagens na História da povoação, que sempre se reergueu e reconstruiu.
O Kordon, a enorme avenida marginal onde Rana vive, é uma longa serpentina de excitação e prosperidade, tal como já era nos tempos otomanos, quando lhe chamavam La Punta. Pelos vários quilómetros da corniche, há relvados e jardins junto ao mar, onde grupos de jovens fazem piqueniques, correm, andam de bicicleta ou de patins, e centenas de restaurantes de luxo, todos cheios, a qualquer dia da semana. Têm nomes como o Life Point, o Venezia, o Paradise, o Popcorn, o Charisma, o Atmosphere, o Bisquite ou o Big Boss, esplanadas decoradas com plantas e aquários, toldos coloridos, bandas de música ao vivo e centenas de pessoas no interior, os homens de fato e gravata e as mulheres de vestidos compridos e jóias. À porta, ao longo do passeio, estacionam filas de Porches e Maseratis, e nas janelas e varandas envidraçadas dos prédios de 9 ou 10 andares que formam uma parede refulgente acompanhando a baía, vêm-se grandes famílias a jantar ou a festejar, sem persianas nem cortinas.
Os ferrys atravessam a baía, recortados contra o horizonte de montanhas que escoltam a costa, jovens tocam guitarra e bebem cerveja sentados nos relvados à beira da água, raparigas de véu ou de mini-saia soltam gargalhadas e fumam narguilés nas varandas.
Esmirna é um dos expoentes da recente prosperidade turca. Um lugar onde ninguém parece disposto a deixar de saborear a vida, só porque a guerra está aqui ao lado e o futuro é incógnito e suspeito.
A felicidade está onde há planura e água, calor e beleza natural. Tudo o resto é ruído. Encontrar pretextos para a tristeza é próprio de países derrotados pelo cansaço. Aqui, na terceira maior cidade turca, nas magníficas margens do Egeu, sente-se a energia, a confiança de uma nação cheia de possibilidade, preparada para tudo. Até para a guerra.
O golfo de Esmirna GURCAN OZTURK/CORBIS
Um mar pequeno
As montanhas Kazdalere acompanham a linha da costa, em direcção a norte, quase até aos promontórios de Assos. São cobertas de oliveiras e neblinas suaves e róseas, e circunscrevem uma região de povoamento escasso, ar puro e algumas estâncias turísticas.
É de toda esta costa que têm saído os barcos cheios de imigrantes sírios em direcção às ilhas gregas. As distâncias são muito curtas (não mais de três ou quatro quilómetros de Kios ou Lesbos) fáceis de percorrer por um pequeno barco insuflável, desde que o mar esteja calmo e o barco não ultrapasse a sua lotação.
Assos foi fundada há mais de dois mil anos por colonos gregos vindos de Lesbos, a ilha que se vê perfeitamente daqui, como uma montanha incrivelmente próxima, das ruínas do templo de Atena. A natureza é doce e fulgurante, encorajadora da aventura. Aristóteles viveu aqui alguns anos, no século IV a.C., após ter deixado a escola de Platão, em Atenas. O lugar te-lo-á incitado ao estudo das Ciências Naturais, e também ao casamento com a filha adoptiva do rei da cidade.
Hoje, este mar deve parecer-nos mais pequeno e domesticado. É possível ver daqui qualquer embarcação que navegasse no Egeu rumo às costas de Lesbos. Os traficantes têm as suas bases em quintas e casas ocultas entre as oliveiras, e lançam os barcos a partir das pequenas praias de calhaus nas reentrâncias da costa.
“Nos últimos meses, tem havido menos barcos”, diz-me o empregado de um restaurante na aldeia turística de Assos. “Os jendarm andam a patrulhar as estradas e as praias”.
A aldeia de Kuçukdere, alguns quilómetros a sul de Assos, é um dos locais onde grupos de sírios esperam a oportunidade de embarcar. “Estão em várias casas abandonadas, ou em pequenos hotéis fechados, e só saem de lá para virem comprar comida”, conta Omer Bakan, um escritor que vive na aldeia com a família. Há três anos, em consequência de ter colocado um post no facebook chamando fascista ao Presidente Erdogan, perdeu o emprego de funcionário público e veio para aqui cultivar uma horta. “Vários sírios, incluindo crianças, estão a trabalhar na agricultura nesta região, com salários miseráveis, o que está a tirar o emprego aos camponeses turcos e a fazer baixar os preços dos produtos”.
Na praia de Dikili, famílias de sírios aglomeram-se junto aos pequenos restaurantes que vendem batatas recheadas na marginal. Estão alojados numa casa em obras aqui perto, esperando a ordem de partida. Dikili tem sido o ponto de embarque mais movimentado nas últimas semanas, devido às patrulhas policiais em Assos.
Mas também aqui tem havido problemas. A Guarda Fiscal deteve vários barcos, num total de mais de 300 refugiados. Trouxe-os para a praia e ali os manteve vários dias, sem comida nem roupas secas, conta o dono de um dos restaurantes das batatas. “Uma noite, eu e os meus vizinhos fomos lá levar-lhes comida e roupa, antes que morressem ali. Mais tarde, os guardas meteram-nos em camiões e levaram-nos todos. Não sei para onde os levaram”.
Murat Yilmazarslan, o comandante da Guarda Costeira para a região do Mar Egeu, explicaria que tem ordens para levar os sírios para os campos de refugiados, onde deixa de ter jurisdição sobre eles.
“Temos interceptado muitos, mas são sempre mais os que escapam”, disse ele. “São 3500 quilómetros de costa, e as ilhas são muito próximas. Para a de Sisam é apenas uma milha. Um barco leva 20 minutos para chegar a meio do caminho, onde deixam de estar ao nosso alcance. E os barcos podem largar de qualquer lugar. Tentei contar os pontos de partida, mas é impossível. E os traficantes estão sempre a mudá-los. As rotas mudam do dia para a noite. É muito difícil apanhar os barcos no mar, por isso estamos agora a tentar interceptá-los em terra, impedindo-os de partir. Mas não é fácil, porque as pessoas são livres de andarem na costa, por onde quiserem. E mesmo quando os apanhamos, eles voltam a tentar. A única solução é ir à raiz do problema, resolvendo a questão da guerra na Síria”.
Desde o início da crise, Murat e a Guarda Costeira não viram aumentar substancialmente os seus meios e recursos, claramente insuficientes para a missão que lhe é pedida. Há agora uma promessa de mais navios e um sofisticado sistema de radar, o que parece vir já na lógica das contrapartidas da negociação com a UE. Mas a opção de Ancara não é claramente apostar tudo no controlo da fronteira marítima, pelo menos sem ter garantido o prémio a receber por isso.
Provavelmente pelos mesmos motivos, a perseguição às máfias também não tem sido uma prioridade. “São muito bem organizadas”, diz Murat. “Incluem elementos sírios, para o primeiro contacto com os refugiados, elementos turcos em várias regiões, e também pessoas na Grécia e noutros países de destino. Não seria possível de outra forma. É crime internacional organizado. É uma quantidade enorme de gente, e a aumentar. Muitos traficantes de droga, ou pescadores ilegais estão a voltar-se para este ramo de negócio, que é muito mais rentável”.
Murat fala ainda do negócio dos barcos insufláveis, que são importados da China, ou fabricados na região (“uma vez desmantelámos uma fábrica aqui perto”), e o negócio dos coletes salva-vidas, também fabricados na zona de Esmirna ou de Istambul. “A maior parte dos coletes são falsos. É um dos nossos principais problemas. Se fossem coletes autênticos, conseguiríamos salvar praticamente 100% dos refugiados que naufragam. Quando estão aflitos, ele telefonam-nos, e vamos socorrê-los. Mas perdemos muitos, por causa dos coletes. Os nossos homens não estavam habituados a este tipo de situações. Estão esgotados, pedem-me uma folga, e eu não lha posso dar. Estão emocionalmente traumatizados. E eles são uns duros. Mas isto é demasiado. Temos deixado morrer tantas crianças. Os meus homens chegam a terra e sentam-se por aí a chorar”.
Um guarda costeiro junto do corpo de um náufrago, na ilha grega de Lesbos, onde afluem milhares de refugiados ARIS MESSINIS/AFP
Ajuda da UE recusada
Segundo os acordos já estabelecidos, a União Europeia vai financiar parte dos novos equipamentos da Guarda Costeira. E canalizar mais fundos para o apoio aos refugiados na Turquia, para além dos 3 mil milhões de euros já concedidos. Mas Ancara mostra-se relutante. Diz que não precisa de assistência.
“Não quer receber dinheiro, para não ser responsabilizada pela forma como trata os refugiados”, é a explicação de Baris Karacasu, representante da Human Rights Foundation na Turquia. Mas o ministro turco dos Assuntos da União Europeia, Volkan Bozkir, tem outra argumentação para o facto de o seu Governo não querer receber dinheiro da UE.
“Numa altura em que a Europa enfrenta uma grave crise económica, a Turquia triplicou todos os seus indicadores económicos”, explicou ele, num encontro com um grupo de jornalistas europeus. Para a seguir, com notável candura, expor os motivos pelos quais o processo de adesão da Turquia à UE deveria entrar numa nova fase.
“A Europa está mal, enquanto a Turquia tem a sua melhor performance de sempre”, é o primeiro motivo. O segundo é a “imigração ilegal. Há quatro anos que andamos a avisar a UE: houve o terramoto, a seguir vem o tsunami. E esse acabará por atingir a Europa. Coloquei isso na agenda desde o início”. O terceiro motivo é o “terrorismo. Não podemos distinguir entre terroristas bons e terroristas maus”, disse Volkan, referindo-se às milícias curdas que combatem o regime de Assad.
Após uma eloquente exposição sobre o dinheiro que a Turquia já gastou com os refugiados, e os vários projectos bilionários do orçamento de estado turco, Volkan concluiu: “Como estão a perceber, para nós, esses contributos da UE são insignificantes. Podem usar o vosso dinheiro para comprar o que quiserem, mas não aqui. Nós não precisamos do vosso dinheiro. O que pretendemos é ser tratados como se fôssemos da família. Temos prosperidade económica, uma população jovem e trabalhadora, um exército forte. A Europa não poderá dar-se ao luxo de dizer não à Turquia. O que eu digo é que dentro de poucos anos estaremos na UE. E não serão decerto dez anos”.
Mulheres e crianças curdas num campo de refugiados de Suruc, na província turca de Sanliurfa BULENT KILIC/AFP
O optimismo de Volcan encontra eco nas críticas de Murat Erdogan, o professor da Universidade de Hacettepe: na perspectiva da UE, “as prioridades mudaram no processo de negociação. Agora já não falam de democracia nem de liberdade de imprensa, mas de controlo do fluxo de refugiados. É triste”.
Murtaza Yetis, conselheiro principal do primeiro-ministro turco para os assuntos dos refugiados, disse que a ajuda necessária da UE é mais o apoio político às acções de Ancara do que o envio de dinheiro. “Não podem dizer: tomem lá 3 mil milhões e resolvam o problema. Porque o problema não é só nosso, é global”.
Pediu solidariedade no combate ao terrorismo, referindo os grupos curdos que, na sua opinião, estãopor trás do atentado de dia 17 em Ancara. “É preciso coerência. Não podemos dizer que o meu terrorista é bom, o teu terrorista é mau”.
Explicou que a Turquia está a criar campos de refugiados no lado sírio da fronteira, e pediu ajuda nessa tarefa, com a criação internacional de uma zona de segurança no Norte da Síria. Neste momento, as fronteiras estão fechadas. Só se passa com avultados subornos a guardas e a elementos das pseudo-ONG que organizam o campos. Os bombardeamentos não pararam e os refugiados continuam a chegar. Em breve a pressão será incomportável na zona.
“Milhares de pessoas estão à espera nessa fronteira”, disse Mohamed Salim Ali, líder da Associação dos Refugiados Sírios. “O seu objectivo não é ir para a Europa, porque são quase todos agricultores. Não pretendem ir para longe. Querem ficar ali até que a guerra acabe e possam regressar. Não querem que lhes abram as fronteiras. Só que ajudem a acabar com a guerra, para poderem regressar”.
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