Vergílio Ferreira: um mestre sem discípulos
Autor de uma das obras ficcionais mais importantes e singulares do século XX português, mas também notável ensaísta e diarista, Vergílio Ferreira completaria na próxima quinta-feira, dia 28 de Janeiro, cem anos. Pretexto para dois colóquios internacionais, o primeiro organizado pela Universidade de Évora (29 de Fevereiro a 2 de Março), e o segundo pela Faculdade de Letras do Porto e pela Câmara de Gouveia (18 a 21 de Maio), que irão retomar a discussão de uma obra que continua a ser bastante lida, a julgar pelas razoáveis vendas das reedições dos seus títulos, mas que anda um pouco desaparecida desse espaço público no qual o homenageado, que foi também um polemista temível, sempre fez questão de intervir.
A assinalar o dia do centenário, na quinta-feira, a Quetzal, do grupo Porto Editora, lança na Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, em Gouveia, terra natal do escritor, reedições de dois romances há muito esgotados: O Caminho Fica Longe (1943), seu livro de estreia, e Rápida, a Sombra (1964). Do primeiro será ainda apresentada uma edição crítico-genética em e-book, organizada por Ana Isabel Turíbio e prefaciada por Helder Godinho, membros da equipa que tem vindo a trabalhar o gigantesco espólio do autor conservado na Biblioteca Nacional (BN). Na mesma sessão, adianta o editor Francisco José Viegas, a Quetzal lançará uma edição digital reunindo os cinco volumes de ensaiosEspaço do Invisível.
As comemorações em Gouveia incluem ainda, no dia 29, a reposição do busto de Vergílio Ferreira na Praça de São Pedro, o lançamento de um selo evocativo do centenário e a inauguração, no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, da exposição Vergílio Ferreira: Os caminhos da escrita ou o fascínio da arte, organizada com a colaboração da Biblioteca Nacional.
Para o final da Primavera, Viegas prevê reeditar o romance Cântico Final (1960) e o ensaio Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (1943), este último apenas em e-book. E quer fechar o ano com a reedição do segundo romance do autor, Onde Tudo Foi Morrendo (1944), cuja edição crítica está também a ser preparada pela equipa do espólio, à qual se deve já a publicação de várias obras que Vergílio Ferreira deixara na gaveta, como um Diário Inédito dos anos 40, um romance de 1947, A Promessa, e a primeira novela que escreveu, em 1938: A Curva de Uma Vida.
O objectivo “é procurar que toda a obra esteja disponível”, diz o editor, que já fez acordos com as livrarias Bertrand e Fnac para tentar assegurar que, pelo menos ao longo de 2016, terão nas estantes todos os livros de Vergílio Ferreira. E não são poucos: 19 romances, vários livros de contos, uma dúzia de obras ensaísticas, o diário Conta-Corrente, cujas duas séries somam nove volumes, e alguns livros de catalogação menos óbvia, como Pensar (1992) ou o póstumo Escrever (2001).
Para Sempre é a obra-prima
Enquanto ficcionista, Vergílio Ferreira estreou-se com romances ainda enquadrados num neo-realismo então dominante na ficção portuguesa, mas a partir do início dos anos 50 rompe com essa sua primeira família, e obras como Manhã Submersa (1954), adaptada ao cinema por Lauro António, ou Aparição (1959) assumem já uma perspectiva existencialista, bebida em Dostoievski, Sartre ou Malraux — o próprio Vergílio Ferreira dizia que Eça de Queirós o ensinou a escrever e o autor de A Condição Humana o ensinou a pensar —, mas também em filósofos como Karl Jaspers ou Martin Heidegger.
Se os seus romances de ideias — com personagens que discutem a missão da arte, a função do intelectual ou as grandes questões com que se debate uma condição humana desapossada de Deus — o tornam um caso à parte na ficção portuguesa, é ainda mais invulgar o modo como essa dimensão reflexiva, pensante, se cruza com uma escrita de forte dimensão poética. Helder Godinho acha que é essa “prosa ao mesmo tempo lírica e filosófica, difícil de se encontrar num escritor”, que torna Vergílio Ferreira “um caso único no panorama português”. E Jorge Costa Lopes, autor de vários estudos sobre o escritor, embora reconhecendo a originalidade da dimensão reflexiva da sua ficção, que “interroga um destino sem Deus e as crises que se abriram na condição humana por vivermos numa sociedade agnóstica”, tende, ainda assim, a privilegiar o outro termo da simbiose de que fala Godinho, considerando que “a essência” desta escrita está na sua dimensão “emotiva e poética”, que compara a “uma música que nos emociona e nos faz ficar em pele de galinha”.
Para Jorge Lopes, que recebeu uma bolsa da Gulbenkian para preparar uma tese de doutoramento centrada na abundante marginalia que o romancista deixou nos milhares de volumes da sua biblioteca, conservada na Biblioteca de Gouveia, a obra que mais exemplarmente ilustra essa espessura lírica da ficção vergiliana é Para Sempre (1983). “Aquilo é, quase linha a linha, prosa poética”, diz, acrescentando que o livro confirma a “circularidade” do percurso literário de Vergílio Ferreira. “No seu primeiro romance há uma personagem, Luísa, que depois vai recuperar na Sandra de Para Sempre e noutras que se vão desdobrando nessa Sandra, a Mónica de Em Nome da Terra ou a Bárbara de Na Tua Face”. E não é por acaso, argumenta, que Para Sempre volta a Coimbra, que é também o cenário de O Caminho Mora Longe, onde se introduz essa rapariga que depois atravessará a sua obra sob vários nomes.
Também Francisco José Viegas acha que Para Sempre é “o mais canónico de todos os livros” de Vergílio Ferreira. E num artigo escrito para a Colóquio Letras em 1986, o lusitanista Georg Rudolf Lind, criticando embora romances como Nítido Nulo (1971) ou Rápida, a Sombra (1974), já considerava Para Sempre “uma verdadeira obra-prima” e “nem mais nem menos do que uma soma da arte narrativa do escritor”.
O próprio Vergílio Ferreira tinha um fraco por Alegria Breve (1965), e Helder Godinho acha que Estrela Polar (1962) “é um grande livro, e um dos mais importantes para dar a conhecer o universo de significação” do seu autor. Já Jorge Lopes confessa um particular apreço por Nítido Nulo. Ao contrário de Lind, que critica neste romance a trama “inacreditável” e personagens que são “meros portadores de ideias”, Lopes vê nele a entrada em cena, na obra de Vergílio Ferreira, “da sátira, do cómico, da ironia, do humor negro”. E está convencido de que o romance é em parte uma resposta ao estruturalismo e à “morte do autor” sentenciada por autores como Roland Barthes ou Michel Foucault. “Para ele, isso era inconcebível, e em Nítido Nulo chega a pôr o narrador a dialogar com o autor”, diz o ensaísta, que também gosta, por razões bastante semelhantes, e novamente em desacordo com Lind, de Signo Sinal (1979), cuja “descrição carnavalesca da festa do PREC” lhe lembra o cinema de Fellini.
A propósito desses anos 70 que vê como um período de “impasse” na obra do romancista, Lind diz que “é de lamentar que o suave desprezo dos intelectuais portugueses pelos grandes autores latino-americanos o tenha impedido de se inspirar na força criadora dum García Márquez, dum Vargas Llosa ou dum Guimarães Rosa”. As descobertas que Jorge Lopes vem fazendo nas muito anotadas margens dos livros da biblioteca de Vergílio Ferreira sugerem que, no que toca ao colombiano, Lind é capaz de ter acertado na mouche. No seu exemplar de Amor em Tempos de Cólera, o escritor ajuiza: “O esquema é o d’A Educação Sentimental de Flaubert, mas com remate positivo”. E acrescenta o desabafo: “Folhetinesco, piroso, arbitrário, inverosímil”.
O gosto da polémica
Para se surpreender as admirações e aversões mais espontâneas do autor, a sua biblioteca é preciosa. Os livros mais profusamente anotados e sublinhados são por regra os de Filosofia, dos clássicos gregos, passando por Espinosa ou Pascal, até Hegel, Husserl ou Heidegger. Nos livros de romancistas os comentários são menos frequentes, explica Jorge Lopes, mas há excepções, e a mais óbvia é Clarice Lispector. "Provocou uma empatia quase única em Vergílio Ferreira, que não tem o hábito de elogiar confrades de escrita, mas para ela tem sempre uma palavra de deslumbramento”. Outra excepção, mas negativa, é uma obra hoje muito prezada pela crítica, Nome de Guerra, de Almada Negreiros: “Faz logo uma crítica na folha de rosto a dizer que não gosta nada daquilo”.
Vergílio Ferreira nem sempre acertava no alvo, e às vezes até acabava por reconhecê-lo, como aconteceu quando entrou numa conspiração com Luís Albuquerque e Mário Sacramento, no início dos anos 50, para tentar travar a crescente consagração de Fernando Pessoa. Escreveu um texto para a Vértice que mereceria uma réplica aguerrida de Adolfo Casais Monteiro. Vergílio Ferreira chega a redigir uma extensa e violenta resposta, mas acaba por não a publicar. “O meu combate era injusto e amochei”, admitirá mais tarde no diário.
Pouco depois envolver-se-á noutra polémica com um cónego de Évora, que lhe criticara Manhã Submersa, ainda hoje provavelmente o seu romance mais lido, com cerca de 30 edições, popularidade para a qual decerto contribuiu o filme de Lauro António, no qual Vergílio Ferreira interpreta o reitor do seminário. No seu já referido artigo de 1986, Lind detecta como “ponto fraco” da obra “a falta de um único verdadeiro cristão entre os habitantes do seminário”, instituição que o autor descreve a partir das suas próprias memórias do Seminário Menor do Fundão, onde esteve seis anos, dos dez aos 16. Lind não tinha meio de o saber, mas a sua reserva já fora formulada e extensamente argumentada por Eduardo Lourenço em 1955, na primeira carta que este enviou ao seu futuro amigo Vergílio Ferreira, divulgada agora no Jornal de Letras. “Já viu a minha lata em mandar-lhe, não digo uma crítica, mas uma leitura do livro? Eu não o conhecia”, diz o ensaísta ao PÚBLICO. E observa, divertido, que o autor de Manhã Submersa descreve a condição de padre “como uma experiência absolutamente negativa”, mas “quando mais tarde se faz o filme, quem vai envergar as vestes do bispo é ele”.
Outra célebre polémica de Vergílio Ferreira foi travada em 1963 com o então neo-realista Alexandre Pinheiro Torres, que aproveitou a sua recensão a Rumor Branco, de Almeida Faria, para zurzir no prefaciador do romance, enviando-lhe algumas farpas divertidas, como a de censurar o facto de emEstrela Polar, passado em Penalva (na verdade, a Guarda), todas as personagens se entregarem às mais sofisticadas reflexões: “Toda a gente filosofa em Penalva, transformada em cave existencialista da serra da Estrela”. Vergílio Ferreira responde à letra, mas acaba por encerrar o debate com um texto em que se mostra consciente de que ele e o seu adversário são apenas os instrumentos ocasionais de uma discussão que vem de trás e os ultrapassa: a polémica em torno do neo-realismo. É um pouco o que voltará a acontecer em 1968, quando trava um duro debate com Eduardo Prado Coelho, defendendo o existencialismo contra o estruturalismo que este professava.
Um continuador improvável
Se a obra literária de Vergílio Ferreira continua hoje a suscitar diferentes leituras, o que parece reunir consenso é a ideia de que não teve nem precursores óbvios nem verdadeiros continuadores na ficção portuguesa, não obstante a sua confessada admiração por Eça de Queirós e Raul Brandão. Num texto de 1978, Eduardo Lourenço sugere que o romancista se vai afastando de Eça “sem o perder de vista” e se vai aproximando do expressionismo de Raul Brandão “sem jamais aceitar a sua caoticidade visionária”. Jorge Lopes acrescenta a este curto rol o Mário de Sá-Carneiro de A Confissão de Lúcio, cuja presença detecta em Estrela Polar.
Professor durante quase toda a vida, dotado de uma invejável bagagem literária e filosófica — “disse-me uma vez que tinha lido tudo o que valia a pena na filosofia ocidental”, conta Helder Godinho —, autor recorrente de máximas, aforismos e reflexões que muitas vezes assumiam a forma de recomendações pedagógicas, Vergílio Ferreira tinha todas as características de um mestre, mas um mestre que, enquanto artista, não teve discípulos. Muitos autores mais novos o admiraram, e ele próprio apadrinhou alguns, como Lídia Jorge ou Almeida Faria, mas todos acabaram por seguir caminhos muito diversos do seu. O mais que Jorge Lopes detecta são algumas “homenagens”, como a que Valter Hugo Mãe parece querer prestar, no seu romance A Máquina de Fazer Espanhóis, a Em Nome da Terra.
A excepção (que talvez não o seja) a este consenso vem do ensaísta Luís Mourão, que admite que Vergílio Ferreira possa mesmo ter um improvável continuador num romancista cujo registo não podia, aliás, estar mais distante do seu. Num texto intitulado O romance-reflexão segundo Gonçalo M. Tavares, Mourão reconhece que a “frieza e impassibilidade” dessa “espécie de escrita pós-humanista” que é a do autor de Jerusalém pouco ou nada tem que ver com o “pathos (lírico, metafísico e irónico) que definiu o modo vergiliano”, mas vê na sua obra ainda em construção uma procura de novas formas de actualizar o romance-reflexão, nos moldes em que ele é hoje possível. “Pode-se argumentar que Gonçalo M. Tavares teve outros modelos, mas em Portugal a única aproximação possível seria com Vergílio Ferreira”, afirmou Mourão ao PÚBLICO.
E o próprio Gonçalo M. Tavares, o que é que acha? “Já não leio há algum tempo o Vergílio Ferreira, mas é um autor que respeito muito”, diz. Cita-o, aliás, no seu Atlas do Corpo e da Imaginação. Gostou de Em Nome da Terra, mas admite que às vezes o “entusiasmam mais os ensaios do que os próprios romances” e declara uma particular predilecção pelo volume póstumo Escrever. E nota que Vergílio Ferreira, “sendo ficcionista, consegue nos seus ensaios imagens muito fortes, que acrescentam ao pensamento uma força da metáfora que muitas vezes os filósofos e pensadores não alcançam”. Não se assumindo a si próprio como possível continuador de Vergílio Ferreira, intui alguma afinidade com a obra do autor de Conta-Corrente em Agustina Bessa-Luís, “ainda que nela”, precisa, “o pensamento seja mais veloz”.
Notícia alterada às 14h28: legenda identificava errradamente a mulher de Vergílio Ferreira como refugiada polaca
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