Tese de Doutoramento de
JOÃO ALBERTO DE SÁ E BONNET
ETHOS LOCAL E CURRÍCULO OFICIAL.
A educação autóctone tradicional Macua e o Ensino Básico em Moçambique.
Doutorado em Educação/Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2002
JOÃO ALBERTO DE SÁ E BONNET
ETHOS LOCAL E CURRÍCULO OFICIAL.
A educação autóctone tradicional Macua e o Ensino Básico em Moçambique.
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação/Currículo, sob a orientação do Prof. Dr. Alípio Márcio Dias Casali e co-orientação do Prof. Dr. Luís George Pouw.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2002
Banca Examinadora
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Notas Prévias
1- A presente tese foi produzida no âmbito do Convénio Institucional entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação/Currículo, e a Universidade Pedagógica, Moçambique.
2- A presente tese encontra-se escrita de acordo com a norma-padrão da língua portuguesa usada em Moçambique.
AGRADECIMENTOS
Esta tese é o resultado da interacção e esforço de muitas pessoas e instituições, sem as quais a sua realização seria quase impossível.
Quero, por isso, agradecer a todas elas, pelo apoio multiforme manifestado.
Agradeço de todo o coração ao Professor Doutor Carlos Machili, Reitor da Universidade Pedagógica, pelo seu empenho pessoal neste projecto, pelos conselhos e pelo encorajamento, de quem tomo "emprestado" o sentido que dou nesta tese, ao termo ethos.
Ao Gabinete de Pós-Graduação da Universidade Pedagógica, pelo esforço para a realização do "Projecto São Paulo" que, até a sua concretização, parecia um sonho.
À Embaixada do Reino dos Países Baixos/Projecto NISSOMÉ - Fundo de Bolsas de Estudo para Nampula, através da Universidade Pedagógica - Delegação de Nampula, pela bolsa de estudo, durante os três anos de Doutorado na PUC/ SP.
Agradeço, de forma singular, ao Professor Doutor Alípio Casali, meu orientador, que foi tudo: pai, professor, conselheiro e, acima de tudo, pela amizade e confiança que sempre me transmitiu; que com paciência criou as condições necessárias a uma interacção dialógica e me ajudou a encontrar o caminho certo para a construção deste nosso objecto de conhecimento, no meio de tantas dúvidas (a dúvida universal como ponto de partida para bem me conduzir a razão na investigação da verdade) e questionamentos.
Ao incansável conselheiro e dedicado mestre, o Professor Doutor Luís George Pouw, meu co-orientador nesta tese, pela sua valiosa e indispensável contribuição, visando minha autonomia, durante todo o processo da concepção e execução deste trabalho.
Ao Professor Doutor António Chizzotti, pelos subsídios metodológicos e pelas valiosas contribuições, principalmente no exame de qualificação.
À Professora Doutora Carmen Junqueira, pela riquíssima fonte bibliográfica fornecida, pelas correcções sugeridas no projecto da tese, encorajamento, solidariedade e amizade.
Ao Professor Doutor Fernando Almeida, pelos conselhos, encorajamento e amizade.
À Professora Doutora Rachael Thompson, pela sua presença discreta e instigante, e sobretudo pela solidariedade.
Aos meus colegas do curso Adelino Ivala, Hildizina Dias, Marisa Mendonça, Jó Capece, Stela Duarte, Adriano Niquice, pela tolerância e paciência, pelos conselhos, pela partilha e amizade.
Aos professores e colegas do Programa Pós-Graduação em Educação/Currículo e de Ciências Sociais da PUC/São Paulo, pelo acolhimento, partilha, solidariedade.
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese ao ethos MACUA,
À mãe ÀFRICA...
por tudo isto que sou ...
Pelo HOMEM que sou!
À memória de meu pai, Alberto de Sá e Bonnet, meu pedagogo.
Pela educação autóctone que nos deu, a mim e aos meus irmãos!
À memória da minha avó, Zena Mpiza, pela clarividência!
Pelo seu contributo na gestação da necessidade de também ir à escola oficial para, um dia, poder contribuir para o resgate da nossa cultura, dos valores do ethos.
À minha mãe Aquiliala Levia, minhas filhas Nárcia Yolanda, Ada Ivana e Denise Mirela,
pelo sacrifício e privações consentidos e suportados durante as minhas inúmeras ausências.
Pelo amor e sentido de vida que me dão!
Aos meus professores e mestres, aos da educação oficial e autóctone tradicional!
A todos quantos partilham comigo a ânsia e a luta pelo resgate das nossas identidades.
SUMÁRIO
3.1 O sentido educativo da educação autóctone tradicional Macua, na percepção dos entrevistados. 142
3.2.1 O processo de educação autóctone tradicional Macua, da 1ª à 2ª infâncias.................. 154
4.2.3 Os conteúdos, métodos e meios no Ensino Primário do 1º grau do SNE........................ 278
LISTA DE SIGLAS, ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS
BM Banco Mundial.
CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
EP1 Ensino primário do 1º grau.
FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique.
Frelimo Partido Frelimo
EBI Ensino Básica Integrado
INDE Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação.
INE Instituto Nacional de Estatística.
MINED Ministério da Educação.
NELIMO Núcleo de Estudos das Línguas Moçambicanas.
PEA Processo de Ensino-Aprendizagem.
PCEB Plano Curricular do Ensino Básico.
PEBIMO Projecto de Escolarização Bilingue em Moçambique.
RDA República Democrática Alemã
RENAMO Resistência Nacional Moçambicana.
SNE Sistema Nacional de Educação.
CFPPs Centros de Formação de Professores Primários.
RESUMO
O objecto de estudo é o ethos local e o currículo oficial do Ensino Básico em Moçambique. O objectivo é analisar a prática da Educação Autóctone Tradicional Macua e a Educação Oficial. Propõe-se a identificar, descrever e explicitar práticas pedagógicas inerentes aos saberes locais, utilizados na mediação dos conteúdos da Educação Autóctone Tradicional Macua, incluindo os ritos de iniciação de puberdade dos rapazes e das raparigas. Pretende-se comparar os conteúdos, métodos e meios do Ensino Básico do primeiro grau, com os da Educação Autóctone Tradicional Macua. A discussão centra-se nas razões do desperdício escolar, evidenciado pelo abandono e repetência no ensino oficial. Considera-se que, paralelamente, em sentido oposto, os ritos de iniciação de puberdade arrastam mais jovens, do que a escola oficial consegue reter no sistema educacional. Adoptou-se a abordagem qualitativa no seu eixo etnometodológico. Optou-se por um quadro teórico que privilegia a análise critica do currículo como conhecimento oficial de um processo de ensino-aprendizagem visto como produto do desenvolvimento histórico e contextual. O trabalho de campo ocorreu na Província de Nampula, na Cidade de Nampula e nos Distritos de Murrupula e Ilha de Moçambique. As entrevistas foram feitas a professores, pais ou encarregados de educação e mestres dos ritos de iniciação. Os resultados da pesquisa concluem que: a) existe uma educação autóctone tradicional na sociedade Macua que inclui os ritos de iniciação de puberdade e que funciona como socialização do Homem, pela relevância dos seus conteúdos, métodos e meios, na resolução de problemas concretos da vida; b) o PCEB (como currículo oficial) gera o seu próprio esvaziamento e fracasso ao desprezar a cultura e as formas locais de construção de conhecimento dos seus destinatários; c) em Moçambique é possível desenvolver um currículo escolar que integre valores do ethos local para tornar o Ensino Básico mais próximo da realidade, cultural e política, i e. um ensino para a libertação.
Palavras-chave: Educação Autóctone Tradicional Macua, currículo oficial, ritos de iniciação,Moçambique, ethos.
ABSTRACT
This research studies local ethos and the official curriculum of Basic Education in Mozambique. It aims to establish a comparative study between Autochthonous Traditional Macua Education and Official Education. It tries to identify, describe and explain the pedagogical practice inherent to local knowledge used to transfer knowledge in Autonomous Macua Education which includes the initiation rites for boys and girls during puberty. The study also compares the contents, methods and ways of delivery between lower basic education and Traditional Macua Education. The paper discusses the reason for school drop outs and school failures. On the other hand, however, it is a fact that the initiation rites attract and retain more young people than the Official Educational System. This work has chosen the ethnomethodological approach in order to provide a critical analysis of the curriculum as official knowledge within the teaching-learning process which results from historical and contextual development. The research took place in Nampula Province in Nampula City and in the Districts of Murrupula and Ilha de Moçambique and it consisted of fieldwork through interviews with teachers, parents or guardians and Traditional Education Masters. The research concluded that: a) Autochthonous Traditional Education exists in the Macua society whereby initiation rites during puberty function as a way of socializing Man. This is due to the relevance to its contents, methods and ways of delivery and daily problem solving; b) The PCEB (as official curriculum) fails by ignoring the traditional curriculum and local people's culture; c) It is possible to design a school curriculum which integrates values of local culture in order to bring basic education closer to cultural and political reality, i.e., education as a form of liberation.
Key words: Autochthonous Traditional Macua Education, official curriculum, Initiation Rites, Mozambique, ethos.
INTRODUÇÃO
...e assim me fiz(eram) HOMEM
Recordo-me perfeitamente - como se fosse hoje! - que eu era o terceiro (depois do meu irmãozinho) da "fila indiana" que se formara a caminho do desconhecido. À entrada da orla florestal, olhei para trás, para ver a minha mãe e vi-a, bastante comovida, apoiada por uma tia minha, ao lado de outras tantas mães entristecidas. Incontidamente, lágrimas saltaram-me dos olhos, e chorei copiosamente. Foi um acto irreflectido porque, logo a seguir, apesar de não ter sido o único, fui fortemente xingado: disseram-me que, se quisesse, podia voltar para o colo da mamã, porque aquela era viagem só para machos e não para choramingas. Creio ter sido a última vez em que chorei. Tudo o que passei a seguir foi enfrentado com estoicismo e muita obstinação. Que menino não quer ser HOMEM?
João Bonnet, 1999
Constitui tema da presente tese O ETHOS LOCAL E O CURRÍCULO OFICIAL DO ENSINO BÁSICO EM MOÇAMBIQUE. Segundo o Dicionário electrónico AURÉLIO-SÉCULO XXI, o termo ethos (do grego éthos, 'costume', 'uso', 'característica') significa, em Sociologia e Antropologia, "aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou manifestações culturais".
Portanto, o termo ethos, também, de acordo com o Dicionário de Etnologia de PANOFF & PERRIN (1979:66), é definido como "a característica habitual possuída em comum pelos membros de uma determinada sociedade. O ethos corresponde a um conjunto de valores sociais que dão a cada cultura o seu carácter próprio". No nosso país, este importantíssimo factor de identidade cultural está sendo ignorado no currículo da educação oficial, como conhecimento oficial proposto pelo Estado, o que origina um grande desperdício na aprendizagem para a formação integral e harmoniosa dos jovens, num país multiétnico e multicultural.
A tese é uma pesquisa e uma reflexão sobre a relevância do ethos e do currículo da educação autóctone tradicional (como experiência cultural acumulada no processo do ensino-aprendizagem autóctone) e a construção do currículo do Ensino Básico, para propor soluções complementares e alternativas que ajudem a encontrar vias para estancar a violência cultural, o desprezo pela cultura autóctone tradicional que caracteriza a escola oficial moçambicana, como resultado da imposição de currículos irrelevantes para a vida real das crianças. Os conteúdos, métodos e meios de ensino adoptados nesses currículos nada têm a ver com as matrizes culturais do país, da realidade sócio-cultural em que essas crianças vivem, o que contribui para a fragilização da participação zonal[1] na educação, (MACHILI, 1998:121) e, consequentemente, concorre também para a exclusão.
A participação local seria a contribuição das comunidades para a melhor inserção sócio-cultural da escola oficial. Por exemplo, actualmente os pais e a comunidade participam na (re)construção das escolas nas regiões rurais, zonas periféricas das urbes e mesmo nas cidades. Também poderiam apoiar a escola na identificação de aspectos da cultura local para o enriquecimento do processo do ensino-aprendizagem como danças, canções, a história local, aspectos da educação tradicional relevantes para o enriquecimento e melhoria do currículo oficial, tornado-o mais próximo da realidade. Se o Ensino Básico tivesse a componente línguas moçambicanas como língua de ensino, os meninos teriam um grande apoio dos pais em casa, uma vez que muitos deles mal falam o Português o que limita grandemente a sua participação na aprendizagem de seus filhos.
A educação em Moçambique tem sido pensada de cima para baixo, o que não ajuda na construção de uma nova atitude nas relações entre o executivo e o ethos. Deveria ser o inverso daquilo que é a prática hoje. Não se parte da base para o topo, como era prática nos postulados políticos da FRELIMO de 1975, partido político no poder desde esse ano.
Os tecnoburocratas no e do Ministério da Educação, responsáveis pela concepção e desenho dos currículos, principalmente os do Ensino Básico, não tomam em consideração, nesta construção, os saberes locais através dos quais o ethos se reproduz e garante a sua existência ao longo da história. Como indica MACHILI (op. cit.), não se tem em conta
"o conhecimento dos valores culturais mais determinantes que interferem na aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades nos destinatários do processo de ensino-aprendizagem. (...) sob a capa da modernidade, se cometem erros graves de percepção e de apreciação dos factores culturais na liderança africana, na qual a moçambicana não é excepção" (ibidem).
A pesquisa resulta de vários momentos e condições da minha existência. Nasci, cresci e estudei em Nampula, até concluir o nível médio. Filho de pais Macua, passei por todos os rituais inerentes à socialização específica da sociedade Macua, incluindo os ritos de iniciação, um importante caminho de educação no ethos local.
Comecei os primeiros passos de leccionação na terra que me viu nascer. Notei que muitas dificuldades de aprendizagem das crianças provinham da inadequação do que se ensina(va) e dos procedimentos para a transmissão dos conhecimentos.
Na escola era proibido o uso das línguas nacionais[2], porque as autoridades educacionais achavam que isso era mau para a aprendizagem da e na língua portuguesa. Em relação às línguas nacionais, ainda hoje, os apologistas da "modernidade" são relutantes em usá-las, pois, na sua óptica, isso é uma manifestação de retrocesso na "evolução" assimilacionista das atitudes, sentimentos, língua e outros valores ocidentais ditos padrões da modernidade. Acerca da língua, MACHILI (op. cit.), afirma que
"um dos valores culturais que interferem no desenvolvimento da participação no domínio da educação é a utilização das línguas [moçambicanas]. Os estudos existentes indicam que a maior parte das justificações adoptadas [por esses modernistas e] pelos governos acerca da incidência negativa na aprendizagem das ciências é fictícia ou suspeita" (132).
A maior parte dos conteúdos do currículo do ensino oficial evoca(va)m saberes distantes da realidade vivencial dos alunos. Os exemplos de que os professores se socorriam eram e são distantes das experiências do quotidiano da maioria das crianças. Tudo isto conduz a um silêncio dos alunos, quase sepulcral na sala de aula. O professor fala e o aluno escuta. Escuta? A passividade que este sistema impõe na escola, faz com que eu duvide da eficiência do meu trabalho de professor, como um dos actores transformadores, em estreita colaboração com os alunos, do processo de construção do conhecimento, um conhecimento virado para a realização plena dos ideais educacionais do moçambicano.
O contacto com teorias de aprendizagem e teorias sociológicas e políticas da educação confirmaram que, afinal, eu era um agente alienador da juventude. Segundo essas teorias, eu fazia dos meus alunos pessoas desenraizadas culturalmente, uma vez que percebia os meus alunos como tábuas rasas. Portanto, na escola, ao ignorar a socialização inicial das crianças, eu mutilava-os.
Tudo isto aliado às minhas experiências na infância e como artista plástico (sou pintor) e aliado ainda aos contactos com as vastas e diferenciadas realidades culturais regionais do país (imenso e lindo mosaico cultural) levou a que a tese de licenciatura, resultante da minha prática em sala de aula, me conduzisse à reflexão sobre o meu papel em todo esse processo.
A totalidade desta acumulação de experiências levou a que eu desembocasse na necessidade urgente da presente abordagem porque, na realidade, impomos uma educação que quase nada tem a ver com a concepção de educação dos nossos povos e que não tem em conta as diferenças sócio-culturais regionais, dos vários ecossistemas que constituem o ethos moçambicano.
Perante este quadro, há motivos mais que suficientes para dar razão ao chefe índio, descrito por PILETTI (1991), que disse:
“… aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa" (10-13).
Esta foi a resposta dos índios à oferta de educação dos brancos, por ocasião do tratado de Lancaster, na Pensilvânia (EUA)[3], quando os representantes de Virgínia informaram aos índios que em Williansburg havia um colégio dotado de fundos para a educação de jovens índios. O problema de impor aos colonizados uma educação sem ter em conta os seus reais anseios e o seu passado foi prática em todos os continentes e a todos os povos colonizados e Moçambique não foi excepção.
No evoluir do meu projecto de tese inicial, o título ETHOS LOCAL E CURRÍCULO DO ENSINO BÁSICO EM MOÇAMBIQUE resulta de reflexões compartilhadas com o meu orientador e co-orientador, além das contribuições dos meus colegas Adelino Ivala, Ildizina Dias, Jó Capece, Marisa Mendonça, Adriano Niquice e Stela Duarte, todos docentes da Universidade Pedagógica. Estes docentes fizeram, comigo, parte do primeiro grupo de estudantes Moçambicanos no Programa de Pós-Graduação em EDUCAÇÃO/CURRICULO na PUC-SP, à luz de um convénio firmado entre as duas universidades.
Tive o privilégio de ter dois orientadores. E como resultado de discussões enriquecedoras e reflexões amadurecidas, em vez do título "A EDUCAÇÃO TRADICIONAL E O ENSINO OFICIAL", título inicial do projecto, achei que o mesmo era ambíguo e sobretudo redutor pois, na universidade onde este projecto se desenrolava, PUC-São Paulo, falar apenas de educação tradicional era como evocar a educação autoritária, inflexível, bancária, o que entrava em contradição com a minha intenção de falar de uma educação com raízes na tradição do ethos, que é necessário resgatar para construir, em Moçambique, uma educação libertária, a partir da pedagogia autóctone secular, educação que foi espezinhada pelo estrangeiro colonizador e remetida ao submundo dos "usos e costumes dos indígenas" ultrapassados pela "evolução da modernidade".
Portanto, tudo fiz no sentido de mostrar de que a tradição, afinal, não é o "atrasado". Ela é o que se faz hoje, o que os nossos avós fizeram ontem e o que os nossos filhos farão amanhã na sua vida, como resultado do processo de ensino-aprendizagem autóctone, do ethos, embora não ponha de parte o valor da aculturação neste processo.
A tradição acompanha, em todo o mundo, o desenvolvimento das sociedades e reflecte sempre a cultura de um povo (FERNANDO, 1996:38).
O ethos refere-se às características predominantes, às atitudes e sentimentos de um povo, ou etnia, que marcam a totalidade - usando a expressão de MAZULA (1995:36) quando se refere ao conhecimento da realidade social e cultural na sua totalidade - das suas manifestações culturais, ou seja, as "marcas" que fazem de um povo único, irrepetível e diferente. São traços que dão qualidade de idêntico a um povo, no presente caso, o ethos Macua.
A pedagogia autóctone, tradicional e secular, foi estranhada pelo colono que impôs ao autóctone uma outra, pertencente a outros, que nada tinha ou tem a ver com a realidade dos naturais daquele território, das suas manifestações culturais. É essa pedagogia autóctone tradicional, este currículo, como conjunto de práticas educativas autóctones, que esta tese pretende resgatar, não para ofuscar o que os portugueses fizeram, mas para enriquecer o conhecimento oficial para a formação integral e harmoniosa do moçambicano, tendo em conta os saberes locais, o processo (e os métodos) da construção desses saberes e os meios locais que facilitam a construção desses saberes.
A razão do tema "ethos local e currículo", ou seja, o focus central desta tese está no facto de ter tomado consciência de que uma das lacunas do sistema de ensino em Moçambique, está no relacionamento entre o conhecimento que se pretende oficial e o processo da construção do conhecimento local, baseados na cultura do povo. Porque, como indica GRUNDY (1987:5), o currículo não deve ser entendido como um conceito abstracto, mas sim, como uma construção cultural. O currículo não é algo que tenha existência fora e seja prévia à experiência humana. É, antes, um modo de organizar uma série de práticas educativas. Sendo assim, falar do currículo é algo que mexe com a existência das pessoas, de um grupo social e do seu ethos.
A globalização da educação dentro dos grandes e novos desafios que a história está colocando à humanidade, em que o povo moçambicano não está à margem, precisa de ser enfrentada, como fenómeno de dominação e não só como ameaça externa, mas também como violência e alienação cultural interna.
Tomar consciência desse facto conduz-nos ao conhecimento de que, em todas as épocas, como afirma ROSÁRIO[4],
"...a um fenómeno de dominação sempre se seguiu uma tomada de consciência para com o fenómeno provocando, por sua vez, tomada de posições que redunda em revoltas (...). A educação global precisa (...) de um desiderato que lhe proporcione fôlego. E esse desiderato é a cultura, que (...) constitui a tábua de salvação dos povos, das soberanias, das identidades, caídos que estão os modelos económicos, as fronteiras físicas, as barreiras linguísticas, a culinária, a moda, etc. etc." Jornal SAVANA, Ano VIII, edição n° 385, pg. 6, de 25/05/2001.
O cenário da pesquisa desenrola-se no ethos Macua, nas cidades da Província de Nampula (e arredores), Ilha de Moçambique (incluindo a vila de Lumbo) e vila de Murrupula. A intenção é estudar o assunto entre os Macua da cidade, do interior e do litoral, dentro do planalto de Nampula.
A tese está estruturada em cinco capítulos. A introdução, o capítulo I, onde se enuncia o objecto da pesquisa do estudo (o ethos local e o currículo oficia do Ensino Básico em Moçambique), se formula o problema, se definem os objectivos, se enunciam as hipóteses e as possíveis contribuições da educação autóctone tradicional na solução do problema; ainda neste capítulo se define a população e o universo de pesquisa, a opção metodológica, as técnicas e meios adoptados, onde os principais subsídios de análise teórico-metodológicas pertencem aos autores seguintes: GEERTZ (1989), BOGDAN & BIKLEN (1994), COULON (1995ab), SEVERINO (1999, 2000), CHIZZOTTI (1991, 2000, 2001a[5]), entre outros.
No capítulo II do texto faz-se uma apresentação do referencial teórico com base nas reflexões de APPLE (1989, 1999, 2000), MCLAREN (1992, 1997) SACRISTÁN (1998) e outros. Referencial teórico com embasamento na reflexão sobre a teoria crítica do currículo e no conhecimento oficial (currículo oficial) na negação e desprezo dos saberes locais e da cultura autóctone tradicional (do ethos), como principais fontes axiológicas que sustentam a tese. Com base neste embasamento, a discussão gira em torno da relação entre a sociedade, educação e culturas moçambicanas, com particular ênfase na sociedade Macua.
No capitulo III, tecem-se considerações acerca da educação autóctone tradicional Macua, o sentido educativo dessa educação na percepção dos entrevistados no âmbito da população e universo da pesquisa. Nesta parte do texto discute-se o funcionamento do sistema de inclusão social e cultural das crianças e adultos, descrevem-se os ritos de iniciação como um caminho da educação e os conteúdos, métodos e meios da educação autóctone tradicional.
O capítulo IV enuncia o desenvolvimento da educação no período pós-independência, partindo da caracterização do sistema colonial de ensino. Discute-se o problema da implantação do sistema oficial da educação Sistema Nacional de Educação (SNE) em Moçambique a partir de 1983. Discute-se o SNE como "promotor" do "desperdício" da diversidade cultural e, consequentemente, do desperdício escolar, que se reflecte no alto índice de insucesso escolar que o país apresenta. Discute-se igualmente o desenvolvimento curricular do Ensino Básico (1983-2000), sobretudo nos eixos conteúdos, métodos e meios. E, por fim, as Conclusões e Recomendações apresentando como resultado da discussão proposta pela pesquisa, a relação dialéctica necessária entre a educação autóctone tradicional e a educação oficial nos seus pontos de ruptura e nos de convergência, como saída para a construção de um currículo escolar para o desenvolvimento e para a libertação.
CAPÍTULO I
ORIGENS E PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO OBJECTO DE PESQUISA
1.1 Tema: ethos local e currículo oficial do Ensino Básico em Moçambique
A presente pesquisa pretende fazer uma reflexão sobre a relevância da Educação Autóctone Tradicional[6] na construção do currículo nacional do Ensino Básico[7], compreendendo a análise do 1º grau, do nível 1 (EP1 – 1ª à 5ª classes).
Ela aborda a problemática da educação em Moçambique tendo, como perspectiva, a dialéctica entre o currículo do EP1 no período compreendido entre 1983-2000[8] e a educação autóctone tradicional, nos eixos conteúdos, métodos e meios, particularmente etno-pedagógicos, da sociedade Macua, do planalto de Nampula, Moçambique.
1.2 Objecto de pesquisa
É objecto da presente pesquisa a análise da Educação Autóctone Tradicional Macua, incluindo os ritos de iniciação, nos eixos conteúdos, métodos e meios de ensino e a sua relevância na construção do currículo do Ensino Básico em Moçambique (1ª à 5ª classes), no período entre 1983-2000. Entenda-se por "currículo" o processo do ensino-aprendizagem (oficial) imposto pelo Estado a todo o território nacional defendendo a necessidade da sua articulação com a cultura regional e local.
1.3 O motivo da pesquisa
O principal motivo desta pesquisa reside no facto de se ter constatado que no sistema nacional de ensino em Moçambique ainda não se valorizam práticas educativas da educação autóctone, desperdiçando-se, assim, as potencialidades do património cultural dos moçambicanos, tal qual no sistema colonial Português. As crianças são recebidas como tábua rasa na escola, onde são obrigadas a expressar-se em Português, uma língua que os professores, na sua maioria, mal dominam. A língua materna é um importante veículo cultural, de transmissão do saber geral. Os métodos de ensino predominantemente utilizados na escola oficial, sobretudo no ensino primário do primeiro grau, levam-me a crer que não se dá muita importância à língua materna das crianças no desenvolvimento da estrutura do seu pensamento, ao se lhes impor, nos primeiros anos de escolarização, conceitos numa outra língua que não a materna, e sem se ter em conta o meio circundante que as envolve. O caso é mais grave no campo, onde reside a maior parte da população moçambicana. As crianças, ao entrarem para a escola primária, dominam apenas as suas línguas maternas. Através destas aprenderam os conceitos básicos da vida, mas a sua experiência é simplesmente ignorada. Dados estatísticos de 1980 indicavam que cerca de 75% da população moçambicana não falava português. De acordo com MARTINS (1992),
"a maioria dos linguistas está de acordo em que, mesmo quando o objectivo é de utilizar no ensino uma língua diferente da materna, a política pedagogicamente mais eficaz consiste na utilização inicial da língua materna como língua de ensino, substituindo-a progressivamente pela língua alvo” (20-21).
Ao definir a educação autóctone tradicional Macua, nos eixos conteúdos, métodos e meios, objecto do presente estudo, procuro demonstrar a necessidade de termos em conta a realidade sócio-cultural que nos circunda. Tenho em conta que ao longo da nossa existência como povos, sempre tivemos o nosso «sistema de educação» que importa resgatar, desenvolver e preservar.
Acerca do assunto, SIFUNA (1990:3) escreveu que “muito antes da vinda dos Árabes e dos Europeus para África, o povo Africano tinha desenvolvido seus próprios sistemas de educação[9]". Reconhecendo que não basta fazer este tipo de afirmações, sem uma base factual que as sustente procuro, nesta pesquisa, trazer factos recolhidos através da entrevista, da observação e bibliografia existente. Outrossim, do relato da minha própria experiência: em primeiro lugar como africano, moçambicano da etnia Macua que viveu e vive a educação autóctone tradicional; como docente da cadeira de Fundamentos de Pedagogia, na Universidade Pedagógica - Delegação de Nampula.
Em contacto com vários colegas, estudantes de várias origens e experiências, tenho enriquecido a minha carreira, iniciada no Ensino Primário. Todos estes subsídios do quotidiano reforçam a necessidade e urgência desta pesquisa, na esperança de que um dia seja útil e continuada em prol de uma educação realística, realmente moçambicana, que incorpore a diversidade cultural do país.
A não existência de tradição de leitura e de escrita na educação africana de outrora foi um dos factores ao qual o mundo ocidental se agarrou para dizer que em África não havia um sistema de educação, nem conteúdos, nem métodos, nem tampouco meios de ensino para transmitir a cultura secularmente acumulada aos jovens (SIFUNA, ibidem). Porque não era evidente a existência de educação oficial em moldes de instituições de ensino como as suas, os colonialistas não observaram a larga educação «oficial» dada às crianças pelos pais e pela comunidade, além da educação intencionalmente preparada que se realiza durante os ritos de iniciação da puberdade. Os que afirmavam que em África, em geral, não havia um sistema de educação foram incapazes ou não quiseram observar o papel da educação tradicional imbuídos do eurocentrismo e pressupunham que não havia interacção social ou socialização - expressamente feita pelos adultos, consoante as aspirações da comunidade. Deliberadamente, os colonialistas, confundiram a educação com a instrução. Acerca da questão SIFUNA (op. cit.), escreveu:
"Eles negligenciaram muita coisa da tradição africana por causa da sua restrita visão sobre a natureza da educação. Definir educação em termos de escola ou leitura e escrita é definitivamente falacioso. Ensino e educação não são palavras sinónimas" (Ibidem).
Por PEA deve ser entendido como a via principal da educação do homem e da sua preparação para a vida e para o trabalho. Ou melhor ainda, o ensino é o processo especialmente organizado da interacção entre o professor ou mestre e o aluno, consistindo na transmissão e aquisição de conhecimentos, habilidades e experiências da actividade cognitiva. O PEA é um processo bilateral. Ele compõe-se de dois lados: ensinar e aprender. Embora os termos educação e ensino se complementem, fica claro que não querem dizer a mesma coisa, como veremos no capítulo que se segue.
Os colonialistas pretendiam era semear confusão, de forma deliberada, no uso dos termos em referência. Eles como “donos” da língua, sabiam que ensino e educação têm sentidos diferentes. Segundo o Dicionário electrónico Aurélio - Século XXI, ensino ou instrução significa a transmissão de conhecimentos, informações ou esclarecimentos úteis ou indispensáveis à educação ou a um fim determinado.
A educação deve ser entendida como o processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, visando à sua melhor integração individual e social, em que o PEA é a principal via para a realização da educação.
De acordo com SIFUNA (op. cit.),
"O termo educação deve ser entendido como 'o processo pelo qual uma geração transmite sua cultura para a geração que a sucede' ou melhor ainda, como o processo pelo qual o povo é preparado para viver, efectiva e eficientemente, no seu meio ambiente"[10](4).
E acrescenta que,
"(...) na base desta definição, é fácil notar que antes da vinda do europeu, em África existia um eficaz sistema de educação em cada clã africano [MWENADO isto é, chefado ou reinado] a educação tradicional africana era eficaz, tangível, definitiva e claramente inteligível"[11](ibidem).
Isto contradiz essa visão redutora colonialista. Os colonialistas deviam ter-se colocado a seguinte questão: como é que estes povos vivem se, de facto, não têm educação?
Contudo, a forma de visão do europeu, descrita, ainda prevalece, em parte, mesmo entre moçambicanos.
Em Moçambique, os conteúdos e os métodos de ensino ainda reflectem muito os currículos ocidentais, que sempre ignoraram os nossos interesses. Importa mudar, pesquisando dados etno-pedagógicos, com vista à valorização cultural do que é dos moçambicanos. Urge potenciar o currículo nacional com subsídios pedagógicos das realidades culturais regionais, que constituem uma grande riqueza de Moçambique e do seu imenso mosaico cultural. É um contributo para que a educação no país seja factor impulsionador da construção da cidadania e da auto-estima moçambicanas, tendo em conta a diversidade cultural que nos caracteriza.
Nas diversas sociedades africanas e do mundo, nunca houve uma única forma de educação. As sociedades desenvolvem diferentes sistemas de ensino para a transmissão dos seus próprios conhecimentos e conteúdos atendendo à sua cultura e sua habilidades. Por exemplo, os sistemas indígenas de educação entre os Yoruba no sudoeste da Nigéria e os Akan no Ghana, diferem nos métodos e nos conteúdos. É preciso contrariar os aspectos negativos impostos pela globalização e valorizar o que ainda se pode recuperar do nosso passado pedagógico. No concernente a isto, a nicaraguense Isolina CENTEÑO (1999) reconhece, em sua análoga realidade:
“...a educação (...) seguiu um processo curricular que uniformizou a realidade nacional e onde não se representaram as particularidades. A transformação curricular não teve a capacidade para acolher a diversidade e limitou-se ao enfoque de “classe social”, visando apenas a igualdade no acesso de todos/as à educação” (s/p)[12].
Quando em 1983 o Governo Moçambicano traçou o Sistema Nacional de Educação (SNE), visando dar uma nova dinâmica ao desenvolvimento da educação no país, preocupado com a unidade nacional e a igualdade de acesso, não modificou alguns padrões vigentes de funcionamento da educação, especialmente no que diz respeito à política de selecção e desenvolvimento dos conteúdos do currículo, nos quais os interesses de todos ficassem representados. Não se conseguiu visualizar o "currículo como um artefacto social, cultural, histórico e humano", (SAUL, 1994:1); (APPLE, 1989:27); (GOODSON, 1995:67); (MOREIRA & e SILVA 1999:7); (CENTEÑO, 1999:90) que deveria, por isso mesmo, assumir as reais condições sociais, culturais e históricas do país, em todas as suas diversas manifestações.
Constitui um dos objectivos fundamentais do Governo moçambicano eleito em Outubro de 1994 o “combate ao insucesso escolar através da reforma curricular, de modo a tornar o currículo mais relevante e flexível” (CONSELHO DE MINISTROS, 1995b:27). Para este efeito, o Ministério da Educação tem que ter em conta as experiências sócio-culturais locais para legitimar o currículo, definindo o papel das comunidades no desenvolvimento educacional, no âmbito do
“reforço do sistema e da capacidade institucional, através da criação de competências técnico-administrativas a nível local, por forma a que gradualmente se proceda a uma descentralização administrativa para os órgãos locais do poder e se aumente a intervenção da comunidade no processo de tomada de decisões na escola” (28).
Na criação de competências técnico–administrativas ao nível local, é necessário que se contemple, também, a elevação das capacidades de participação efectiva quanto à pesquisa para o desenvolvimento curricular, no sentido de não se verificar apenas se os programas educacionais vigentes estão sendo cumpridos. De igual modo averiguar as razões dos abandonos e reprovações em massa; questionar a validade do que se ensina na escola, face aos contextos culturais locais, em termos de conteúdos, métodos e meios, e como é que isso contribuiria para mudar, desenvolver e elevar as condições de vida das pessoas, no campo e na cidade.
A discrepância entre os números de alunos (de ambos os sexos) que ingressam no sistema de ensino e os que conseguem terminar o nível primário, obriga-nos a reconhecer que esta educação conduz à agudização das diferenças sociais e à elitização do ensino. A evasão e a repetência, em maior proporção, dos filhos dos camponeses e dos operários no sistema de ensino indica o sentido inverso da política de "fazer da escola uma base para o povo tomar o poder"[13]. O cenário pode indicar irrelevância e insignificância dos conteúdos do que se ensina na escola oficial, em relação às exigências da realidade vivida no quotidiano das populações, desmotivando a sua aprendizagem dos conteúdos. As estatísticas reflectem que, dos alunos que se matriculam todos os anos nas primeiras classes, apenas um número ínfimo consegue chegar ao fim, isto é, poucos conseguem terminar o nível com sucesso.
Este problema é mais grave entre as alunas. As diferenças também se notam entre regiões (norte-sul, interior-litoral) e entre zonas urbanizadas e o campo. Um estudo efectuado por BONNET & IVALA (1999) sobre a “Educação da rapariga no norte de Moçambique”, revela importantes informações acerca do desperdício escolar (elevada taxa de reprovação e de desistência).
Tomando como exemplo a tabela de aproveitamento do ano escolar de 1997, pode-se depreender que as regiões apresentam grandes discrepâncias no aproveitamento, o que não é apenas reflexo da diferença de desenvolvimento económico que se arrasta desde o tempo colonial até aos nossos dias entre as regiões norte centro e sul, mas um aviso à navegação, para a necessidade de se ter em conta as particularidades culturais regionais, na concepção e realização dos currículos educacionais.
Tabela n° 1: Aproveitamento escolar no EP1 em 1997
Província
1ª Classe
2ª Classe
3ª Classe
4ª Classe
5ª Classe
1ª/5ª Classe
C. Delgado
65,3
66,3
65,1
66,8
67,6
65,8
Nampula
58,5
61,8
58,2
61,0
56,9
59,4
Niassa
66,2
68,7
68,3
71,3
73,5
68,0
Norte
61,2
67,0
65,1
68,2
67,0
65,5
Centro
60,9
64,9
62,9
68,5
69,4
63,9
Sul
61,7
64,1
60,3
66,0
69,3
63,5
Nacional
62,2
65,2
62,3
67,3
68,9
64,2
Fonte: MINED/DNP.
O currículo do Ensino Básico, ao não tomar em conta os saberes locais na construção do conhecimento oficial, contribui para uma escola excludente, uma escola que não reconhece a diferença. Urge construir um currículo no qual se reconhece e se aceite a diferença. Isso, longe de constituir uma fonte de desagregação, pode representar um passo gigantesco para a inclusão, única solução para que os direitos fundamentais do homem não sejam manuseados apenas em conformidade com os interesses daqueles que não estão excluídos (ROSÁRIO, ibidem).
Nas suas conclusões, o estudo de BONNET & IVALA (1999) afirma:
“Para ilustrar o peso do desperdício escolar ao nível nacional, regional e nas Províncias, foi tomado o número de alunos inscritos na 1ª classe em 1993, comparando-o com os que, cinco anos depois, em 1997, entraram para a 5ª classe. Os números mostram as situações que abaixo se descrevem:
a) Ao nível nacional, em cada 100 alunos que em 1993 entraram na 1ª classe, apenas 37 alcançaram a 5ª classe, em 1997;
b) ao nível das regiões, em cada 100 crianças inscritas na 1ª classe, em 1993, ingressaram na 5ª classe, em 1997; 73 no Sul; 39 no Centro e 19 no Norte;
c) ao nível das três Províncias do Norte, em cada 100 crianças inscritas na 1ª classe, em 1993, [passaram para a] 5ª classe, no ano de 1997 apenas 17 em Cabo Delgado; 19 em Nampula e 26 no Niassa” (81-82).
Mais adiante o relatório acrescenta:
“A não progressão dos alunos em geral (…) não deve ser atribuída a apenas um ou outro factor isoladamente. Os factores limitantes são muitos e a sua influência é, em geral, conjugada. Normalmente, face à evidência do facto de que a situação é melhor nas cidades e noutros centros urbanizados, diz-se que tal se deve a factores culturais.(…) Quando assim é, dificilmente se interroga se as populações das cidades estarão livres desses problemas e qual é, de facto, o sector da população urbana que tem os filhos e as filhas (…) com êxito nas escolas” (85).
Em alguns círculos moçambicanos, tem-se entendido que a cultura popular exerce uma influência negativa na escola, o que não corresponde à verdade. Essa interpretação resulta do facto de pessoas mal intencionadas confundirem "cultura" com alguns hábitos marginais associados a "actos de vandalismo". Como a cultura popular era inferiorizada e considerada marginal em relação à ocidental, então todo aquele que tivesse comportamento fora dos hábitos ocidentais era identificado como sendo portador da cultura indígena e, como tal, marginal.
Quando por volta de 1975 os sanitários escolares apresentavam indícios de má utilização, e mesmo destruição resultante do vandalismo de alguns alunos, dizia-se, como resultado de reducionismo psicológico e político na análise do fenómeno, que as crianças vindas das camadas mais pobres eram as culpadas da destruição, porque não tinham "cultura" de uso de tais bens. Na Europa e nas Américas, mais comummente, se associa "cultura" a hábitos dos colonizadores e "incultura" a hábitos de negros e índios colonizados e escravizados.
Se aparecesse um aluno africano a pichar a parede com inscrições ou desenhos, era rotulado de «sem cultura». Os que tinham essa visão não se apercebiam que o "mau" comportamento existe em todas as sociedades e que não é a origem social que dita a indisciplina[14]. Ademais, a abertura do ensino a um número maior de utentes do que as capacidades instaladas na escola, levava à rápida degradação dos imóveis, além da existência de marginais que invadiam as escolas na calada da noite. As escolas tiveram de contratar guardas para evitar que pessoas alheias ao processo de ensino tivessem acesso aos recintos escolares e destruíssem as conquistas da nacionalização do ensino ocorrida a 24 de Julho de 1975. No fundo, as destruições visavam, fundamentalmente, desacreditar o processo da descolonização do ensino, num momento em que o governo revolucionário de Samora Machel pretendia colocar o ensino ao serviço do povo. Pode-se dizer que essas acções estavam inseridas nas acções de desestabilização da oposição reaccionária que se opunha à independência de Moçambique.
Confundia-se, deliberadamente, cultura com a ausência de bons modos. Ou, no mínimo, com a falta de hábitos de uso correcto de bens de gente "civilizada", gente da cidade. Nesta óptica, na escola, as crianças provenientes das classes desfavorecidas não aprendem porque, no dizer dos que assim pensam, não têm a cultura de aprender coisas que seus pais não conhecem, ou que seu meio cultural desconhece. Como se pode depreender, a verdade é escamoteada e é assim que os factores culturais são tidos como factores inibidores dos bons resultados pedagógicos. Factores como a relevância dos conteúdos, métodos e meios, associadas à realidade sócio-cultural do aprendente, não são equacionados como elementos importantes na percepção do que se transmite na escola, como conhecimento oficial.
Adoptando uma frase de Bartolomeu MELIÀ (1979:10): "E nada mais contrário à realidade que a afirmação de alguns cronistas coloniais: «visto um [preto] visto todos»". A frase, aplicada em referência à origem social, apenas serve de subterfúgio para camuflar o racismo que lhe é subjacente. É uma reedição das posições colonialistas que dividiam o indígena em categorias: assimilados e não civilizados. Ser civilizado era sinónimo de ter assimilado os valores culturais dos portugueses, considerados superiores aos dos autóctones.
Quando falo da escola, refiro-me também à maneira como o sistema escolar funciona, em especial na sua relação com os interesses das populações que pretende servir, as condições em que decorre o PEA (Processo de Ensino-Aprendizagem), além do desfasamento entre os conteúdos, métodos e meios de ensino no ensino oficial e a socialização inicial das crianças. Os conteúdos não apresentam elementos do meio que circunda o aluno, como por exemplo, a origem dos nomes dos rios, da cidade, os nomes dos bichos da fauna, o clima local e os factores que o influenciam, a vegetação, utensílios de uso quotidiano, os jogos, etc.
A não utilização de meios didácticos locais (recursos disponíveis no habitat dos discentes) em temas específicos como os relacionados com o estudo de insectos, plantas, etc., cria desfasamento entre o capital cultural de que a criança é portadora ao ingressar na escola oficial e o que nela se ensina. Isto pode conduzir, a priori, à exclusão da maioria das crianças vindas das camadas desfavorecidas, uma vez que a prática em sala de aulas as marginaliza, ao considerá-las atípicas, por desconhecerem os exemplos de que o professor se socorre para ilustrar os conteúdos.
É descabido que um professor, em sala de aula pejada de petizes oriundos na sua esmagadora maioria, da zona rural, para exemplificar o que é uma planta trepadeira se socorra de uma gravura da videira enquanto, mesmo ao seu lado, pululam plantas trepadeiras como a dos feijões manteiga, Ekutte, Khokopa, Namaara, e de outras plantas como munapheyo[15], munyenyere, lianas, etc.
Evocar a videira como exemplo, é culturalmente redutor, anula ou restringe fortemente a formação da personalidade das crianças, se a intenção for, de facto, construir, com elas, o conhecimento numa sala de aula, porque a maioria dessas crianças nunca viu uma videira, ela não se cultiva no seu habitat. Gostaria de deixar claro que não me oponho ao recurso de meios da aprendizagem indirecta, antes pelo contrário. O que se põe é que, nos primeiros anos de escolarização, é fundamental um ensino o mais próximo da realidade. A videira existe em algumas regiões de Moçambique[16]. Contudo, não em quantidade que justifique o recurso a ela para exemplo num universo com outros meios e métodos para tornar a aula mais próxima da realidade. A videira, em Moçambique, é uma planta de ornamentação, em fachadas frontais de algumas vivendas, e não planta cultivada. Poucas são as crianças que podem atinar com a explicação do professor, o que concorre para o "insucesso escolar" ou exclusão premeditada?
O caso da videira não é o único exemplo de paradoxos na nossa educação. No estudo da história e da geografia, também encontramos situações análogas. Não se ensina ao aluno a localizar, geograficamente, sua aldeia, vila ou cidade, para, a seguir, se evocarem outras terras; não se discute com o aluno, em sala de aula, a origem histórica do nome da sua aldeia, vila ou cidade. Os alunos são violentados ao ensinarem se lhes conteúdos "distantes" do seu contexto, enquanto a história e a geografia está mesmo ao seu lado.
Segundo a proposta do Plano Curricular do Ensino Básico (1999),
“A eficácia interna das escolas primárias é muito baixa. As taxas médias de repetência e desistência atingem 25 e 15% no EP1 e EP2, respectivamente. Como resultado disso, apenas cerca de 25% dos alunos que ingressam na 1ª classe [conseguem] concluir com sucesso as cinco classes do EP1. As taxas de transição para o EP2 são também baixas. Apenas 6 em cada 100 alunos que entram na escola se graduam no EP2” (4).
É uma situação preocupante. Se a juventude é o futuro da nação, então pode-se adiantar que, com os dados acima referenciados, Moçambique não tem futuro de que se orgulhe. Levou-se muito tempo a avaliar o ensino moçambicano, para se chegar à conclusão de que o desastre impera.
A repetência pode ser sinal da falta de relevância dos conteúdos. Para as comunidades, a repetência e a desistência na educação escolar, podem ser sinal da improficuidade dos conteúdos, métodos e meios. É uma forma de resistência cultural, face à imposição do saber que não lhes diz respeito, ou que não tem aplicação prática na resolução dos problemas do seu dia-a-dia. Por outras palavras, o SNE preconiza um ensino sem relação com a sua existência, social e individual. Essa imposição e transmissão de conhecimento irrelevante, sem relação com a vida, reflecte-se directamente nas taxas de aproveitamento apresentadas pelas escolas.
O processo de ensino-aprendizagem é caracterizado pela transmissão: o professor recorre predominantemente ao método expositivo, o que agrava a situação. O aluno apenas escuta a verbosidade do professor. Não há mediação do saber (no verdadeiro sentido da palavra), para que o aluno participe efectivamente na construção do conhecimento. Nesta actuação desastrosa, o professor defende-se alegando, em primeiro lugar, o elevado número de alunos por turma, o que não lhe permite assistir, devidamente, cada aluno; em segundo, o facto de os programas de ensino serem extensos, para além da exiguidade de material didáctico como livros para o aluno e, por vezes, até manuais para o professor.
Um factor importante no processo do ensino-aprendizagem é a relação dialéctica entre os conteúdos, como objectos de conhecimento, e os sujeitos da acção pedagógica, ou seja, o educador e o aluno. Conforme a Proposta do PCEB (1999:4), apud Associação Comercial de Moçambique (ACM,1996:2) concluiu-se, na avaliação do desempenho dos alunos, que na sociedade «reclama-se que os alunos que terminam o Ensino Básico nada sabem fazer». As autoridades da educação continuam a separar os três factores como se eles não fossem interdependentes. Não fazem uma análise mais completa entre o papel do professor e o rendimento do trabalho escolar do aluno, embora na Proposta do Plano curricular em referência reconheçam:
“Em todos os níveis, há professores não qualificados para as classes e disciplinas que leccionam. Aproximadamente um quarto de todos os professores do EP1 não possuem qualquer formação e a maioria recebeu apenas seis anos de escolarização e um ano de formação profissional."
Paradoxalmente, a proposta do currículo não enfatiza a necessidade urgente de uma política de formação de educadores para o Ensino Básico onde a média da ratio aluno/professor é de 61:1. Em algumas Províncias é, de longe, ainda mais elevada, atingindo 81:1. A proposta do plano curricular aqui em discussão faz entender que pretende operar mudanças no EP2, onde a média da ratio professor/aluno é de 41:1, reduzindo o número de professores, para que apenas três possam leccionar todas as matérias. A questão que se põe é: com que professores a reforma curricular conta para a sua consecução? Se no EP1 ainda há crise de qualidade de formação dos professores, cuja superação não se vislumbra, pelo menos a curto prazo, a mesma não se estenderá para o EP2?
O mérito da proposta do Plano Curricular do Ensino Básico em discussão reside no facto de reconhecer que é preciso formar cidadãos capazes de contribuir para melhorar a sua vida, a da sua família, da comunidade e do país. Mas este objectivo, inerente a qualquer sistema de educação, incluindo o de Moçambique, só é alcançado por uma ínfima percentagem da população escolar do país.
O PCEB pretende considerar o saber produzido pelas comunidades onde a escola se situa. Para tal, prevê disponibilizar 20% do total do tempo lectivo previsto, para o currículo local, isto é, a escola irá dispor daquele tempo para a introdução de conteúdos locais que se julgarem relevantes para a inserção da criança na respectiva comunidade. O que nos parece falacioso é que não houve estudos locais nem regionais para a identificação de tais conteúdos. Ou será que serão os professores - apesar de se reconhecer que apenas 3/4 têm formação profissional - que os irão identificar, segundo a região ou local em que se situe a sua escola de actuação? Estas e outras inquietações são as que se colocam e importa resolver antes que os resultados se revelem piores que os actuais, porque o ensino oficial caracteriza-se por uma sistematização programática e não pode funcionar por meio de improvisações.
Nas zonas rurais, o rendimento escolar dos alunos é pior do que nas escolas situadas em zonas urbanas porque, duma forma geral, quer no campo, quer na cidade, “a escola não sabe lidar com a heterogeneidade social [e cultural]. Depois de alguns anos elimina mais de ¾ dos que nela ingressam”, conforme reconhecem GATTI, ROSEMBERG, ARNS, EBOLI, DIAS, ECIEL, apud BRANDÃO et alii (1984:146), num estudo realizado sobre os dilemas da educação no Brasil, mais ou menos análogos aos da situação moçambicana. Por não haver correspondência e continuidade entre a socialização inicial das crianças e o que se ensina na escola, as pessoas dificilmente se identificarão com o projecto que as autoridades educacionais moçambicanas propõem. Consequentemente, enquanto as populações continuarem a não aderir aos conteúdos que o currículo vigente propõe, vai-se alargando o número de excluídos sociais.
As zonas rurais são caracterizadas pela existência de uma população bastante espaçada no território. As escolas, geralmente, estão a uma distância, não inferior a dois quilómetros. Crianças de tenra idade raramente podem frequentar as aulas com efectividade. A situação é ainda pior para as raparigas que, quando muito pequenas, têm dificuldade de percorrer tais distâncias. Quando atingem a idade de adolescência e porque nessa idade o perigo de marginais é muito grande e os pais não têm quem as acompanhe à escola, optam por conservá-las em casa, educando-as apenas para servirem de «boas donas de casa» e para o trabalho de campo. Aqui começa o problema da equidade.
A situação de frequência agrava-se no tempo chuvoso: os rios enchem e as dificuldades de travessia se tornam mais acentuadas, pois as crianças podem correr riscos de vida. Aliado ao exposto, os camponeses, de modo geral, praticam uma agricultura sazonal, por causa do rodízio de terras, para permitir à sua recuperação depois de muitos anos de uso com a mesma cultura. Neste caso, os camponeses migram para regiões mais distantes das de residência habitual, levando consigo as crianças, ou deixando-as por muito tempo sozinhas, para que frequentem as escolas. Quando acaba a pouca comida que os pais lhes deixam, as crianças desistem da escola, por causa da fome.
Na prática, existe uma incompatibilidade entre o ano lectivo e o tempo de preparação das terras, de sementeira e de colheita. O ano lectivo em Moçambique começa em Fevereiro, prolongando-se até Novembro, com uma curta paragem em Junho, para as férias. Moçambique é caracterizado por duas estações: a chuvosa e a seca. Isto leva a que o calendário escolar padeça de desconexão, particularidades climatéricas do país. A consequência desta desconexão é a impossibilidade de igualdade efectiva entre os filhos dos camponeses e os de outras classes, desfavorecidas que, vivendo em zonas urbanas e peri-urbanas, têm de percorrer, a pé, grandes distâncias até à escola porque, efectivamente, não há, em nenhuma parte do país, um sistema de transporte escolar que funcione eficientemente.
A Proposta do Plano Curricular do Ensino Básico (1999) reconhece que o acesso universal à escola primária é fundamental para a estratégia de desenvolvimento do país, pois, indica três aspectos, como razões principais da sua adopção:
1. "A Educação Básica para todos é um elemento central de estratégia da redução da pobreza, uma vez que, por um lado, a aquisição de conhecimentos académicos, incluindo a alfabetização de adultos, irá expandir o acesso dos cidadãos moçambicanos a oportunidades de emprego e de meios de subsistência sustentáveis e, por outro, é a estratégia mais segura para aumentar a equidade no sistema educativo.
2. O desenvolvimento dos recursos humanos é a base para o sucesso da economia nacional, cada vez mais exigente em termos tecnológicos, o que exige melhoria na qualificação da força de trabalho e, consequentemente, uma contínua expansão e melhoria do sistema educativo.
3. A educação é uma necessidade para o efectivo exercício da cidadania" (3-4).
O que transparece de muito nobre nestas linhas é exactamente a vontade de erradicar a pobreza absoluta, através da Educação Básica. O que parece falacioso é o facto de, nesta perspectiva, continuar-se a pensar num currículo homogeneizador que, eventualmente, não preveja, como passo inicial, a pesquisa e uso dos conteúdos locais ou regionais relevantes para o seu enriquecimento e que, efectivamente, de acordo com a Proposta do Plano Curricular do Ensino Básico, (op. cit ),
"[proporcione] aos cidadãos moçambicanos os conhecimentos e habilidades de que necessitam para obterem meios de sobrevivência sustentáveis, acelerar o crescimento da economia e reforçar as instituições democráticas da sociedade (4).
É preciso ter-se em conta que Moçambique é um país pobre e que a sua economia assenta ainda numa agricultura de subsistência.
Nem todas as crianças que entram na escola podem terminar com sucesso todos os níveis do Ensino Primário Básico, para que se possa garantir emprego nas cidades ou vilas. A componente "educação para a melhoria de vida" deve passar, necessariamente, pela inclusão e valorização do real potencial de recursos disponíveis nas regiões e os aspectos da cultura local (como conteúdos). Há regiões cuja riqueza principal é a pesca. Se a escola ensinar conteúdos sobre o real potencial da região onde está inserida - a forma de preservá-lo e evitar que se esgote, e o que isso pode significar como saída para o auto-emprego - estar-se-á criando condições para erradicar a pobreza absoluta.
Não se deve continuar a pensar que todos os que ingressam nas escolas sairão forçosamente licenciados. É preciso criar condições para dotar todo o povo de conhecimentos que permitam a sua auto-suficiência e competências profissionalizantes, a partir das quais se pode combater a pobreza absoluta.
Se se fizer uma análise dos sucessos e fracassos das campanhas anteriores de alfabetização e educação de adultos, nos locais de trabalho e nos de residência, constatar-se-á que os principais erros residiram no facto de não se ter adoptado estratégias que universalmente provassem ser válidas, como o método de alfabetização de Paulo Freire, a partir de temas geradores, em que o alfabetizando conceptualiza a palavra a partir da realidade, da sua experiência vivencial. Segundo o professor Ernani Maria Fiori, na nota introdutória da Pedagogia do Oprimido de Paulo FREIRE (1999),
"A 'codificação' e a 'descodificação' permitem ao alfabetizando integrar a significação das respectivas palavras geradoras em seu contexto existencial - ele a redescobre num mundo expressado em seu comportamento. Conscientiza a palavra como significação que se constitui em sua intenção significante, coincidente com intenções de outros que significam o mesmo mundo. Este - o fundo - é o lugar do encontro de cada um consigo mesmo e os demais" (12).
Ensinar numa língua segunda, seja em que faixa etária for, é também alfabetizar. A partir do método Paulo Freire, as crianças podem, também, associar a palavra a objectos concretos do seu contexto sócio-cultural. Isso, extrapolado às condições de ensino dos mais novos, poderia capitalizar e maximizar sua aprendizagem, porque permitirá operacionalizar sua realidade vivencial. Este método conduz à flexibilização da ligação escola-comunidade, uma vez que os conteúdos transmitidos na escola estariam mais perto da realidade em que vive o povo.
O professor Ernani Maria FIORI (op. cit.), afirma que:
"O método Paulo Freire não ensina a repetir as palavras, não se restringe a desenvolver a capacidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstracto; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra" (13).
Este método provou que o meio que nos cerca é o que permite a circulação dos saberes e dos significados entre os âmbitos singular (cada indivíduo), particular (a cultura local), universal (a cultura universal).
CASALI (2000:3), acerca da importância da conjugação dos factores singular, particular e universal, mas tendo sempre em conta que a educação é sempre projecto dos interesses locais e, como tal, deve partir de saberes do contexto sócio-cultural real, parafraseando GEERTZ (1997:249), afirma que "como a navegação, a jardinagem, a poesia, o direito e a etnografia, a educação é um artesanato local: funciona à luz de saberes e interesses locais". Portanto, a educação construída com base neste postulado ganha maior significado e um sentido cultural locais que a conferem um grande valor social, porque satisfaz os interesses e as necessidades particulares e singulares dentro do ethos.
A questão principal da educação, que se pretenda "contextualizada", é saber qual é o lugar e o sentido das matérias de ensino e da organização de seu conteúdo dentro da "existência vital", da experiência das pessoas. De acordo com SACRISTÁN (op. cit.)
"Com isso, se coloca no ensino o problema de como conectar as experiências dos alunos elevando-as à complexidade necessária para enlaçá-las com os conhecimentos e com a cultura elaborada que é necessária numa sociedade avançada, aspectos considerados valiosos em si mesmos por toda uma tradição cultural" (42).
O próprio Dewey apud SACRISTÁN (op. cit.), sugeria que
"Quando se concebe a educação no sentido da experiência: tudo o que se pode chamar estudo, seja aritmética, história, geografia ou uma das ciências naturais, deve ser derivado de materiais; a princípio caiam dentro do campo da experiência vital ordinária" (ibidem).
A educação deve conduzir ao desenvolvimento progressivo do já experimentado, o que exige aproximar as matérias de estudo às aplicações sociais possíveis do conhecimento. Isto permite valorizar a cultura e relacioná-la com as necessidades do aluno, que lhe possibilita ligar os conhecimentos escolares com à realidade em que vive e, assim, fazer as aplicações desses conhecimentos na resolução de problemas concretos.
Segundo NGOENHA (2000:17), "estudos recentes das ciências da educação, nomeadamente da sociologia de educação, têm provado não só os pressupostos modernos «Mais educação = mais desenvolvimento»". A educação como a principal via de desenvolvimento dos recursos humanos tem de ter uma ancoragem na realidade social e nas condições contextuais objectivas existentes. O povo vive em determinado território, com determinados valores culturais que se preservam e desenvolvem ao longo de séculos na base dos quais se constroem os saberes locais. Estes factores têm de ser conjugados para que o projecto da educação se afirme com sucesso, para que o universal e o particular tenham sempre como princípio não negar e eliminar o singular.
O desenvolvimento dos recursos humanos é, de facto, a base para o sucesso de qualquer economia nacional. Por isso, um país que se preze como tal, procura, através da educação, criar as condições básicas para a melhoria de vida dos seus cidadãos. Nenhum cidadão pode orgulhar-se de estar exercendo plenamente a sua cidadania quando um dos seus mais fundamentais direitos não é observado e respeitado, como é o caso da educação que tenha uma referência à realidade do contexto sócio-cultural. Com ignorância não há cidadania efectiva. O povo precisa de uma educação que não confira saberes como vindos dos "outros", portanto, estranhos ao seu saber ser e estar, mas também saberes que o capacitem a julgar o que lhe convém e se ajuste aos seus reais interesses. Isso permitir-lhe-á, por exemplo, saber em quem vota, e porquê vota. Portanto, a escola moçambicana deve potenciar o cidadão, para que possa tomar as decisões mais adequadas aos seus desejos e às suas escolhas futuras; precisa de, através das diferentes fontes de informação, poder escolher a que condiz com a verdade.
A educação em Moçambique deve capacitar as populações para melhorarem o seu potencial de produção através do saber e saber fazer que a escola lhes pode e deve dispor. Deve conferir-lhe premissas para o exercício da cidadania. A educação não pode ser concebida e construída sem uma ancoragem cultural. O processo de ensino-aprendizagem nas escolas moçambicanas deve resultar, em última análise, de uma síntese do saber particular, singular e universal. Ou seja, a leitura, a escrita e o cálculo (valores universais), devem aliar-se aos valores comummente aceites na localidade, na comunidade, na região, e na sociedade. PILETTI (1991:13), numa linguagem bem simples, diz que "(...) podemos dizer que valor significa uma preferência por algo" e acrescenta, citando GARCIA (1981:135),
"Um objecto qualquer só assume um valor quando está em relação directa com o humano, que lhe atribui certos caracteres de sentido, podendo não existir no objecto em si, em estado natural. Um valor está associado, portanto, a significados que conferimos às coisas ou a situações que, fora de um contexto bem definido e localizado, podem não representar muito (...).
Podemos dizer que, desde o momento em que o homem se relaciona com a natureza ou com outros homens, ele está valorando. Atribuir sentido especial às coisas é, portanto, um acto que exige uma situação concreta, na qual o indivíduo manifesta sua adesão a determinadas coisas ou repulsa para outras tantas. Pelo facto de viver, o homem está constantemente sendo solicitado a escolher e, ao fazer suas escolhas, inevitavelmente, está atribuindo significado de bom, mau, inútil, às coisas que o rodeiam" (ibidem).
Como se pode depreender, discutir valores em educação é referir coisas que podem ter uma conotação positiva ou negativa, conforme o contexto sócio-cultural em que se está inserido.
São elucidativos alguns exemplos que hoje, em nossas escolas, são aceites e difundidos, tais como:
- Através do estudo, os que são mais capazes chegam aos postos mais importantes;
- Os que "não querem estudar" ficam relegados às tarefas que nossa sociedade valorizar menos;
- O mais importante na vida é o dinheiro, a promoção pessoal, a ascensão social mediante o esforço próprio, a poupança, a segurança, etc.
Mediante estes valores, aceites ou rejeitados em certas escolas e algumas sociedades, pode-se, portanto, dizer que, partindo da diferença de valores, os objectivos da educação serão consequentemente, diferentes.
As escolas moçambicanas, porque inseridas numa sociedade e contexto diferentes dos valores que o ocidente defende, têm o direito e o dever de lutar para que se estabeleçam objectivos prioritários (como é o caso da educação brasileira) que, para além dos de subsistência, para a erradicação da pobreza absoluta, ajuntou os seguintes objectivos, como prioritários: libertação, comunicação e transformação. O termo prioritários segundo SAVIANI (1996:38), é mais dinâmico e flexível, do que o conceito de hierarquia, tradicionalmente ligado a uma concepção rígida e estática. Com efeito, a prioridade é ditada pelas condições da situação em que o homem vive.
Os objectivos prioritários, em meu entender, diferem dos que são traçados como gerais, homogeneizadores que, quando não flexibilizados para se adaptarem à situações particulares, como é o caso de Moçambique, cuja educação deveria enveredar por um currículo multicultural, podem conduzir à exclusão social, como consequência da evasão e repetição escolares.
Segundo a Proposta do Plano Curricular (1999), o SNE tem os seguintes objectivos gerais que chamarei por objectivos homogeneizadores, uma vez que com eles se pretende atingir todos os alunos do sistema educacional na mesma medida, em todo o território nacional:
"a) Erradicar o analfabetismo de modo a proporcionar a todo o cidadão o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades;
b) Garantir o Ensino Básico a todo o cidadão, de acordo com o desenvolvimento do país através da introdução progressiva da escolaridade obrigatória;
c) Assegurar a todos os moçambicanos o acesso à formação profissional;
d) Formar cidadãos com uma sólida preparação científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação moral cívica e patriótica;
e) Formar o professor como educador e profissional consciente com profunda preparação científica e pedagógica, capaz de educar a criança, o jovem e o adulto;
f) Formar cientistas e especialistas devidamente qualificados que permitam o desenvolvimento da produção e da investigação científica;
g) Desenvolver a sensibilidade estética e a capacidade artística das crianças, jovens e adultos, educando-os no amor pelas artes e no gosto pelo belo;
h) Educar a criança, o jovem e o adulto para o espírito da unidade nacional, paz, tolerância, democracia, solidariedade e respeito pelos direitos humanos, em particular os direitos da mulher e da criança;
i) Educar a criança, o jovem e o adulto na prevenção e no combate contra as doenças, particularmente o SIDA e outras de transmissão sexual;
j) Educar a criança o jovem para o respeito e preservação do ambiente e do ecossistema;
k) Educar o cidadão a ter amor, orgulho e respeito pela tradição e culturas moçambicanas;
l) Educar a criança, o jovem e o adulto no espírito da lealdade, obediência, respeito e disciplina;
m) Proporcionar o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade;
n) Desenvolver na criança, jovem e adulto habilidades e conhecimentos de carácter vocacional que lhe permitam uma integração plena na sua comunidade;
o) Assegurar o conhecimento e o respeito pela Constituição da República de Moçambique;
p) Educar a criança, o jovem e o adulto no espírito da cooperação internacional, de integração regional, continental e mundial.
q) Proporcionar uma formação básica nas áreas da comunicação, ciências, meio ambiente e cultural" (5).
Como se pode observar, trata-se de objectivos em forma macro, ou seja, colocados como meta a atingir a longo prazo, como resultado-fim de todo o SNE. Porém, como disse, parece que a conjuntura moçambicana se apresenta aquém da realização de muitos destes objectivos pelas razões seguintes: Moçambique herdou do colonialismo uma desastrosa situação de analfabetismo de cerca de 90% da população, aquando da independência nacional, em 1975; além disso, apresenta uma economia de subsistência, quase toda virada para a agricultura, com bases assentes na familiar e uma indústria titubeante que, com o abandono em debandada dos antigos proprietários, ficou quase paralisada. A situação económica se agravou com a guerra de agressão do regime racista de Iam Smith, da Rodésia do Sul, pouco depois da independência nacional.
À guerra de agressão, seguiu-se outra, de desestabilização movida pela RENAMO[17], uma das piores chacinas que a história moderna conheceu, que durou cerca de 15 anos. Praticamente, destruiu toda a infra-estrutura económica no campo, agravando ainda mais as dificuldades económicas de um país em reconstrução.
Embora muitos cronistas ocidentais ditos defensores da liberdade e da democracia defendam que a RENAMO era uma força ou Partido que se opunha ao regime marxista instalado em Moçambique, a verdade é que ela surge como baluarte da guerra de desestabilização Sul-africana de P. W. Botha, como tentativa de desencorajar as forças anti-apartheid nas suas fronteiras e impedir que países vizinhos servissem de retaguarda ao movimento de libertação sul-africano ANC (African National Congress). Hans ABRAHAMSSON e Anders NILSSON (1997), testemunham:
"... a juntar a isso, (...) a estratégia de desenvolvimento de Moçambique e a sua expressão ideológica. Através duma aposta na modernização e no alargamento dos sectores sociais (ensino e saúde), Moçambique poderia vir a ser uma fonte de inspiração para a luta dos negros no interior da África do Sul" (8-9).
Como consequência desta guerra de desestabilização, milhares de moçambicanos passaram a viver como deslocados, ou nas periferias das cidades, ou em países vizinhos. A rede escolar sofreu sério revés. Muitas escolas foram destruídas.
A socialização, a transferência de conhecimentos, ou seja, a integração do indivíduo num sistema de normas sociais, concepção de justiça e normas de vivência que o tornam cidadão aceite numa sociedade e a obtenção dos conhecimentos técnicos, no sentido lato, necessários para que as pessoas possam sustentar-se materialmente, foram deliberadamente sabotados.
Tendo as forças externas destruído escolas, as autoridades moçambicanas, não poderam lograr soluções adequadas e contextualizadas. Assim, e de acordo com ABRAHAMSSON & NILSSON (op. cit.),
"... no que se refere à socialização, a discrepância entre o conteúdo de socialização da educação e a realidade existente não pode ser tal que os alunos não reconheçam a imagem da realidade que lhes é transmitida pela escola" (122).
Os "fundamentos epistemológicos" ou "princípios da construção do conhecimento" se processam a partir da existência, em primeiro lugar, de um sujeito e de um objecto de conhecimento que se relacionam entre si através de acções, reacções, conflitos e do esforço.
A construção do conhecimento se dá através de representações ou signos, como ferramentas dos processos psicológicos. Elas representam objectos, eventos, situações na sua ausência para que, exactamente, possam ter sentido ao culturalmente vivenciado. As representações ou signos são as palavras, os números, o desenho, os símbolos, esquemas, imagens, mapas, etc. Daí a importância que a linguagem tem na aprendizagem para qualquer homem. Quando a linguagem usada é de todo estranha, apenas pode servir à minoria privilegiada que a pode decifrar e entender, relegando-se a maioria (os filhos dos camponeses e dos operários) «a tais tarefas que a nossa sociedade valoriza menos», não porque não querem estudar, mas porque a escola aniquila-os ao utilizar uma linguagem que não procura adaptar-se à sua. É que a linguagem é o sistema de representações básico dos grupos humanos. O sistema colonial de educação ignorou esse factor. O SNE caiu, também, no mesmo erro.
As representações ou signos são uma espécie de filtro através do qual o homem compreende o mundo e opera sobre eles, o que lhe permite transformar a simples transmissão/assimilação do conhecimento acumulado em construção de conhecimento próprio, a partir de uma situação concreta, ou seja, uma situação passível de se relacionar com a vida.
Os três aspectos referenciados na Proposta do Plano Curricular do Ensino Básico como principais razões da adopção da estratégia de desenvolvimento que a Educação Básica almeja, (a educação como meio de redução da pobreza, do desenvolvimento dos recursos humanos e como necessidade para o efectivo exercício da cidadania) deveriam capacitar o aluno a utilizar os conhecimentos adquiridos na escola para a resolução de problemas do seu dia-a-dia, interpretando dados e informações do meio natural e social em que estão inseridos e que deviam aparecer nos livros, nos jornais, revistas e na televisão. Isto permitiria que cada criança, ao finalizar este nível, pudesse realizar a sua auto-orientação para as escolhas futuras, tanto em direcção ao mercado de trabalho como em relação à continuidade de seus estudos. Tal serviria de modalidade alternativa ou complementar de ingresso aos cursos profissionalizantes e a outros níveis de ensino.
Segundo o Programa do Governo para 1995/1999, do Conselho de Ministros (1995), o texto da Política Nacional de Educação e Estratégias de Implementação, no seu ponto 2.1, relativamente à Política Geral do Ensino, diz que,
“... Na conjuntura actual, o Ensino Primário corresponde à educação de base que o Governo procura dar a cada cidadão, à luz da Constituição da República e da Declaração Mundial de Jomtien, de que Moçambique é subscritor.
O Ensino Primário é o eixo do sistema educativo. Este carácter decorre do papel que o ensino primário joga no processo da socialização das crianças, na transmissão dos conhecimentos fundamentais como a leitura, a escrita e o cálculo, e de experiências e valores comummente aceites na sociedade. A educação das crianças no nível primário é, por isso mesmo, crucial para o seu desenvolvimento posterior.
Para responder a estes novos desafios, as prioridades da educação foram revistas, colocando o ensino primário no topo. As metas estão estabelecidas. Importa, pois, que o curriculum e os conteúdos sejam revistos e ajustados ao contexto actual” (18).
Portanto, denota-se que o Governo pretende imprimir nova dinâmica à construção do currículo nacional, à luz da Conferência Mundial de Educação para todos, realizada em Jomtien, Tailândia em 1990, convocada pela ONU, UNESCO, UNICEF, PNUD e o Banco Mundial, da qual resultou uma Declaração e um Plano de Acção para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem nos países subdesenvolvidos. Pretende que o currículo produza uma nova qualidade social, o que exige uma orientação que leve em conta não só a actual, mas também a realidade do aluno. Segundo CORTELLA (1999:16), “... Levar em conta não significa aceitar essa realidade mas dela partir, partir do universo do aluno para que ele consiga compreendê-lo e modificá-lo".
Realizar uma educação pública num país como Moçambique multicultural implica fazê-la voltada para as necessidades da totalidade da população, tendo sempre em consideração que ela possui um manancial de conhecimentos: saber, saber fazer, saber ser e estar, secularmente acumulados, satisfatórios para a sobrevivência imediata, mas que se mostram frágeis para a elevação mais radical de suas colectivas condições de vida. O universo vivencial do povo moçambicano é extremamente rico em termos culturais e pedagógicos, mas precário em termos de conhecimentos mais elaborados. Por isso, cabe aos intelectuais moçambicanos o papel de transmutar esse saber sincrético secular em ferramentas científicas de mudança, para que os currículos educacionais possam condizer com as realidades nacionais, sem descurar os valores universais mais gerais e relevantes, estabelecendo objectivos educacionais prioritários face às reais necessidades em dados contextos.
Apresentado o principal motivo da pesquisa como sendo o desprezo e a falta de valorização das práticas educativas do ethos no SNE e, consequente, o desperdício das potencialidades do património cultural do país, em seguida passo a descrever a justificativa:
1.3.1 Justificativa
A educação autóctone tradicional em Moçambique é uma realidade que se perde nos tempos ancestrais, através de séculos, fundamentada na necessidade de preparar os jovens para a vida, segundo os diversos ideais étnicos. É a principal via que garante às novas gerações a continuação dos ideais da sociedade numa ligação estreita com as gerações anteriores.
A educação autóctone tradicional é o processo pelo qual se transmitem as experiências de geração para geração, paralelamente com a educação institucionalizada. Existe uma aprendizagem anterior à educação escolar: a formação do cidadão na acção socializadora da família e da comunidade em que vive. É essa educação que se denomina educação autóctone tradicional, no sentido de ela ser oriunda das tradições culturais duma dada comunidade ou sociedade étnica. A educação autóctone tradicional está sempre reflectida nas atitudes, no modo de ser e de estar das pessoas, evidenciando a sua origem e sua identidade sócio-cultural.
A educação autóctone tradicional é o conjunto de conhecimentos, hábitos, habilidades, ideias, sentimentos, crenças, valores, isto é, toda a informação cultural que, ao longo da história, é acumulada e transmitida de geração em geração, através da linguagem oral, gestual, e/ou escrita; todos os traços que identifiquem de modo particular os membros duma sociedade ou de uma etnia que, no entanto, a colonização, ao ignorá-la, provoca um fosso na ponte da história da educação. Ela é a principal via de educação de milhares de crianças que a escola oficial exclui.
Segundo dados veiculados pelo Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD 1997:157), a taxa global de alfabetização, em Moçambique, em 1994, era só de 44,2%, entre os homens, e de 22,1% entre as mulheres o que significa que a maior parte da população é iletrada. A transmissão do saber, saber fazer, saber ser e estar, na maioria da população, é feita oralmente e realizada através da educação autóctone tradicional. Portanto, o povo moçambicano é um povo de tradição fundamentalmente oral, isto é, a transmissão do conhecimento secular acumulado é feita face-a-face, oralmente e através do aprender fazendo.
Uma etapa marcante da educação autóctone tradicional em Moçambique, especificamente da etnia Macua, realiza-se durante os ritos de iniciação da puberdade dos rapazes e das raparigas.
A etnia Macua (aportuguesamento de Amakhuwa, pl. de Mmakhuwa - significa os Macua), é uma população ou grupo social que apresenta relativa homogeneidade cultural e linguística, compartilhando história e origem comuns. Designa grupo de indivíduos, ou as populações originárias da Província de Nampula, sul da Província de Cabo Delgado, sul da Província de Niassa e norte da Província da Zambézia. A língua comum destas populações é emakhuwa, termo que também significa a maneira de ser, a cultura e os usos e costumes dos Macua. Este grupo encontra-se representado em países circunvizinhos como a Tanzânia, o Malawi, Madagáscar, entre outros.
Em Nampula assim como em outros territórios, os Macua subdividem-se em diversos grupos, que se distinguem uns dos outros fundamentalmente pelas variantes dialectais da sua língua comum, o emakhuwa. A par dessas variantes dialectais são notórias outras particularidades devidas a um longo e complexo processo de regionalização que pode ter mais a ver com o isolamento geográfico e com diferentes influências exógenas. Em muitos estudos aparecem diversas designações dos Macua, como se de entidades diferentes se tratasse. O que existe, realmente, são designações regionais, porque são conhecidos os diferentes subgrupos e seus dialectos. A etnia Macua constitui, segundo o censo de 1998, 1/3 da população total de Moçambique, num universo de cerca de dezoito milhões de habitantes. Os ritos de iniciação são a forma como os Macua oficializam a transmissão/mediação dos conhecimentos aos jovens, na fase da puberdade.
As raparigas são submetidas aos ritos de iniciação da puberdade, depois de atingirem a primeira regra menstrual. Os ritos de iniciação da puberdade dos rapazes realizam-se quando estes atingem a faixa etária dos 5-10 anos. Depreende-se, assim, como sendo uma puberdade “legal” [18] na óptica das tradições culturais das sociedades moçambicanas. Os rapazes adquirem a puberdade “legal” como direito, depois de submetidos aos ritos de iniciação, posto que, na faixa etária referenciada, não atingiram a puberdade biológica.
Contudo, importa anunciar que hoje, a faixa etária para a realização dos ritos de iniciação dos rapazes (5-10), não se aplica taxativamente, variando de grupo para grupo, devido às influências dos contactos com outros povos, principalmente os árabes.
Entre os muçulmanos, as crianças são submetidas a estes ritos muito cedo, por volta dos 5 anos, embora também a regra não seja aplicada a todas as pessoas desta religião. No geral, a idade convencional é a de 5-10 anos[19], embora isso não exclua jovens mais velhos. O que se pretende na educação tradicional é não excluir ninguém dos ritos de iniciação porque, segundo a tradição, todos os jovens têm o direito de serem iniciados, para adquirirem reconhecimento social e participarem activamente na vida comunitária.
Na sociedade Macua, um homem, mesmo que cresça, que se case e tenha filhos, enquanto não tiver passado pela “escola da vida”, isto é, pelos ritos de iniciação - a coroa de toda a educação autóctone tradicional - será sempre criança, independentemente do sistema de valores, principalmente religiosos a que a família esteja ligada.
As principais religiões em Nampula são: a religião tradicional africana (muitas vezes chamada erroneamente por animismo), muçulmana e cristã. Há também outras religiões com crentes em números muito pequenos. Estima-se que a população que professa a religião tradicional africana seja, como é obvio, cerca de 50%.
Actualmente, há uma tendência na realização de ritos de iniciação. Juntam-se os iniciandos, segundo a religião a que pertencem seus familiares, o que constitui uma forma de manifesta tentativa de dividir ou separar o povo segundo a religião de cada um. É uma tentativa de muçulmanização ou cristianização da educação autóctone tradicional. Assiste-se a uma crescente interferência dos padres e dos “chehes” (líderes muçulmanos): os conselhos de iniciação, que dantes eram ministrados por conselheiros tradicionais dos ritos de iniciação, independentemente da religião dos pais dos neófitos, nas cidades, são transmitidos por anciãos indigitados pelas alas religiosas, numa tentativa de «modernizar» o processo e aumentar a sua influência sobre os ritos de iniciação. Contudo, esta e outras tentativas de influências religiosas não ocorrem sem resistência.
Pais e encarregados de educação, como forma de fugir às acções negativas de aculturação, levam os seus filhos para aldeias distantes, longe dessas influências, geralmente para a casa dos avôs ou outros familiares, onde realizam as cerimónias de iniciação. Isto é uma prova evidente de que as pessoas começam a tomar consciência dos riscos da perda da identidade cultural, evitando, o mais possível, as maquinações de alienação cultural, dentre as quais a religião é das mais evidentes.
A iniciação da puberdade é um dos acontecimentos mais importantes na educação autóctone tradicional Macua. É o marco que representa a aceitação solene dos rapazes e das raparigas, em cerimónias separadas e distintas, na comunidade dos adultos. Os ritos de iniciação têm uma intencionalidade: formar nos jovens um comportamento traduzido em atitudes que se esperam de um membro idóneo naquelas sociedades.
A finalidade da educação em Moçambique, como em qualquer sociedade, embora os objectivos possam ser diferentes, é formar integral e harmoniosamente as novas gerações para serem capazes de organizar a sua vida pessoal e familiar e de resolver os problemas do seu dia-a-dia.
O período posterior a 1983 constitui um marco histórico importante de desenvolvimento curricular em Moçambique. Em 1983, nasceu, pela primeira vez no país, um sistema nacional de educação, oito anos após a independência proclamada em 1975.
Apesar das diferenças entre os currículos colonial e o adoptado para o ensino em 1975, com grande ênfase na experiência educacional desenvolvida nas zonas libertadas[20] e dos países socialistas, pode-se dizer que eram apenas emendas e adaptações, sem a profundidade do currículo implementado em 1983.
Já em 1980 se podia dizer que o sistema nacional de educação estava iminente, quando o Ministério de Educação e Cultura, designação por que era conhecido o actual Ministério da Educação publicou através do então Gabinete do Sistema de Educação um importante documento designado por SISTEMAS DE EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE. Este documento resultou das reflexões políticas, na época com forte matiz do projecto da construção do socialismo em Moçambique. Lê-se na introdução do texto em referência (Sistemas de Educação em Moçambique, 1980) que
“... Na nossa sociedade, empenhada na construção do socialismo, a educação é um direito do povo. Mas, ao mesmo tempo, é uma das suas necessidades fundamentais. (...) hoje, para a classe operária e o campesinato, a educação no nosso país é um instrumento de luta de classe contra a exploração e a opressão" (1).
Este documento surgiu como corolário das Directivas Económicas e Sociais do III Congresso da FRELIMO[21] que recomendavam a criação de um sistema nacional de educação cujos objectivos ressaltavam a necessidade de elevar e valorizar os conhecimentos científicos e técnicos dos trabalhadores, assegurando o seu acesso e o dos seus filhos a todos os níveis de ensino; assegurar a escolarização e a alfabetização das classes trabalhadoras, para a sua preparação científica e técnica de modo a assumirem a direcção da economia do país e manterem permanentemente o sistema de ensino, em especial o seu conteúdo[22] ao serviço do desenvolvimento económico e social e da aliança operário-camponesa.
Portanto, o movimento dialéctico da construção do currículo novo, deve ser uma crítica profunda do passado constituindo, essencialmente, uma reflexão do presente real. Assim, o novo sistema de educação deve ser uma construção feita a partir de uma análise da prática pedagógica, mesmo anterior à colonização, passando por esta, como passado recente, além de um prognóstico dos objectivos, conteúdos, métodos e condições de educação determinados a partir do ponto de vista das diversas sensibilidades culturais que congregam a sociedade moçambicana.
Há mais de 500 anos que a educação oficial constitui um oposto à educação autóctone tradicional. Durante muito tempo, a educação autóctone tradicional e a oficial em Moçambique viveram "hostilizando-se".
O colonialismo criou barreiras de tal modo discriminatórias à educação autóctone, que impôs uma relação antagónica entre elas. Assim, mesmo depois das independências dos territórios colonizados, as novas autoridades nunca encetaram esforços para integrá-las, ou minimizar os efeitos perniciosos resultantes desse antagonismo, talvez porque lhes falta a ousadia e firmeza. Contudo, volvido todo esse tempo, a educação autóctone tradicional resiste a todas as vicissitudes e continua sendo uma realidade em toda a sociedade moçambicana.
As divergências ainda prevalecentes em Moçambique entre a educação autóctone tradicional e a oficial podem ser uma das razões da anomia cultural de que a sociedade moçambicana padece atingindo, principalmente, as crianças e a juventude nas escolas onde as taxas de reprovações e desistências são elevadas.
Em Moçambique, a práxis mostra que tanto a educação oficial actual, como a autóctone tradicional, ambas pretendem dar uma formação integral e "integrada" ao mesmo indivíduo, o cidadão nacional. Isto não pode ser logrado sem uma "síntese" salutar entre elas
1.3.2 Possíveis contribuições da educação autóctone tradicional na solução destes problemas
Para iniciar esta parte, coloquemos a seguinte questão: o que estará por detrás do elevado «desperdício»[23] nas escolas moçambicanas, no geral, e nas de Nampula em particular? A resposta não é simples, pela complexidade de factores que concorrem para o elevado desperdício escolar. Por isso, direcciono este estudo para a relação que deverá existir entre a educação autóctone tradicional e os conteúdos, métodos e meios da escola oficial, especialmente no Ensino Básico, onde, «de pequeno se (devia) torce(r) o pepino», isto é, na expressão de Coménio "é uma propriedade de todas as coisas que nascem o facto de, enquanto são tenras, se poderem facilmente dobrar e formar, mas uma vez endurecidas, já não obedecem»[24]. Mas as crianças continuam a ser recebidas como tabula rasa para serem gravadas ou xilogravadas como os livros na antiguidade. As pequenas tábuas são, então, os conteúdos. O objectivo parece ser, nas escolas moçambicanas, exactamente o de preencher o vazio das páginas limpas do livro, que são as crianças. A escola funciona, assim, como mutiladora cultural.
Para responder àquela importante questão será preciso encontrar, em relação ao objecto de estudo os conteúdos, métodos e meios a partir da cultura local. Isso poderia enriquecer os nossos currículos educacionais e elevar o rendimento da escola. Deve-se entender "elevar o rendimento escolar" como sendo permanência e progressão escolar das nossas crianças sem repetir vários anos a mesma classe.
As escolas primárias moçambicanas (e não só) enfermam gravemente do que o educador Paulo FREIRE (1999) chamou de "educação bancária", que se caracteriza pelas seguintes e outras marcas mutiladoras:
- "O educador é o que educa; os educandos, os que são educados, pois na óptica de muitos professores o educando vem à escola sem educação, por isso tem que ser educado, no sentido de ensinado.
- O educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem.
- O educador é o que pensa; os educandos, os «pensados».
- O educador é o que diz a palavra; os educandos, os que escutam docilmente.
- O educador é o que disciplina; os educandos os disciplinados.
- O educador é o que opta e prescreve a sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição.
- O educador é o que actua; os educandos, os que têm a ilusão que actuam, na actuação do educador.
- O educador é o que escolhe o conteúdo programático; os educandos jamais ouvidos nesta escolha, acomodam-se a ela.
- O educador identifica a autoridade do saber com a autoridade funcional, que se opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes, devem adaptar-se às determinações daquele e nunca o contrário.
- O educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros espectadores" (59).
1.4 Problematizando a questão
O colonialista marginalizou a educação autóctone tradicional e não permitiu o acesso do povo à escola que propunha através da valorização e integração dos saberes locais. O povo realizou a sua educação quase na clandestinidade. Actualmente, a educação autóctone tradicional e a educação escolar também funcionam num paralelismo divergente. O que fazer para minimizar essa contradição?
Assim, com vista a evitar que esta situação prevaleça no futuro, realizei a presente pesquisa, colocando-me as seguintes questões:
a) No âmbito dos conteúdos da educação autóctone tradicional Macua
· Quais são os conteúdos relevantes que os mais velhos transmitem às novas gerações, as experiências e conhecimentos para manterem e desenvolverem as estruturas sociais e económicas, os seus valores, a cultura?
· Quais são os conteúdos da educação tradicional autóctone que podem ser úteis na formação integral dos jovens de modo a enriquecer e transformar os vigentes na educação oficial?
b) No âmbito dos métodos de ensino
· Quais os métodos mais usuais na transmissão das experiências e conhecimentos às novas gerações na educação tradicional autóctone?
· Que métodos de ensino da educação tradicional autóctone podem ser úteis na educação oficial para maior qualidade da mediação dos conhecimentos na sala de aulas?
c) No âmbito dos meios de ensino
· Quais são os meios que se usam na transmissão das experiências e conhecimentos às novas gerações na educação tradicional autóctone?
· Como aproveitar esses meios de ensino para enriquecer e tornar mais interessante e relevante o ensino oficial não no sentido de "adornos externos" mas no de produzir modificações profundas, valorizando o que o meio ambiente cultural oferece?
1.5 Enfatizando a importância do estudo
O extracto de um texto escrito por Benjamim FRANKLIN, apud PILETTI (op. cit.), é exemplo da problemática de concepção e definição da educação e as visões diferenciadas que ela assume de sociedade em sociedade:
“Por ocasião do tratado de Lancaster, na Pensilvânia (EUA), no ano de 1774, entre o governo da Virgínia e as nações indígenas, os representantes da Virgínia informaram aos Índios que em Williamsburg havia um colégio dotado de fundos para a educação de jovens índios e que, se os chefes das seis nações quisessem enviar meia dúzia de seus meninos, o governo se responsabilizaria para que eles fossem bem tratados e aprendessem todos os conhecimentos do homem branco" (11-13).
À subtileza da oferta dos brancos, o chefe índio respondeu com sarcasmo:
“Apreciamos enormemente o tipo de educação que é dada nesses colégios e nos damos conta de que o cuidado dos nossos jovens, durante a sua permanência entre vocês será custoso. Estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração.
Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa.
Muitos dos nossos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas quando voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportar a fome e o frio. Não sabiam caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.
Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos aos nobres senhores da Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens” (ibidem).
As palavras do chefe índio consubstanciam o que a presente tese defende, corroborado por Sônia SILVA (1995:), de que
"é inegável o facto de que, qualquer que seja a leitura, a captação, a tentativa de organização e operacionalização do fenómeno educativo, isso sempre se fará com base numa determinada visão de homem, de mundo, dentro e em função de uma realidade social específica" (69-70).
A Organização das Nações Unidas para a Ciência e Cultura (UNESCO), ao considerar a importância da educação nas diferentes visões de diferentes nações, pretende sensibilizar a opinião pública internacional, sobre o direito de preservação das diferenças de todos os indivíduos e de todos os povos, de se conceberem e de serem percebidos como tais. Este direito é reconhecido pela Declaração dos Direitos Sobre Raça e Preconceitos Raciais, adoptada pela Conferência Geral da UNESCO em 1978. Este assunto foi revigorado na reunião de especialistas sobre etno-desenvolvimento e o etnocídio em África, convocada pelo mesmo organismo, a qual se realizou em Uoagadougou, Alto Volta, de 13 de Janeiro a 4 de Fevereiro de 1983.
Por isso, fazendo jus ao esforço da UNESCO, a educação tradicional autóctone deve ser entendida como a que visa fundamentalmente uma tripla integração do indivíduo: pessoal, social e cultural.
Segundo GOLIAS (op. cit.),
“Enquanto (...) a integração pessoal permite ao indivíduo reunir num todo unitário as múltiplas influências do seu meio para em seguida integrá-las na sua maneira de pensar, de agir e de se comportar, por seu turno a integração social permite ao indivíduo participar activamente nas actividades e na vida do grupo a que pertence.
A integração cultural faz da personalidade um modelo, um padrão que é a expressão duma maneira de viver, de pensar e de ser própria dos membros do grupo. O indivíduo integra os valores culturais do seu grupo e nele se conforma nas suas maneiras de ser e de agir” (12-13).
Contudo, na verdadeira acepção da palavra, a educação autóctone tradicional tinha como função essencial fazer a integração sócio-cultural do indivíduo, uma vez que na sociedade tradicional, o indivíduo, em si, só existia quando integrado num todo colectivo. Isto não quer dizer que o sujeito não tivesse seus direitos como pessoa. Procurava-se consciencializar o indivíduo para a necessidade de convívio, de harmonia entre as pessoas. A educação autóctone tradicional procurava integrar o indivíduo na sociedade onde vivia. Era uma educação caracterizada por uma ligação íntima com a vida, pelo seu modo de transmissão progressivo e funcional do saber, saber ser/estar e saber fazer.
As Nações Unidas, através do programa de acção da UNESCO para a África 1990-1995, no âmbito das suas linhas gerais de orientação para a materialização do Plano de Lagos de 1978 da OUA, recomendam aos governos do continente a substituição gradual dos currículos herdados da época colonial, tendo em vista os interesses nacionais.
Porém, em Moçambique, os currículos e os métodos de ensino da educação escolar reflectem quase apenas aspectos do ensino ocidental, sem terem em devida conta a realidade sócio-cultural moçambicana. Em nome da “modernidade”, as práticas pedagógicas autóctones tradicionais são ignoradas e postas de lado, como se as populações não tivessem a sua própria identidade cultural, que importa preservar e desenvolver, para uma moçambicanidade que almejamos realizada na sua plenitude, embora reconheçamos a importância da globalização que hoje caracteriza o mundo, no sentido da necessária universalidade do conhecimento.
A globalização também interfere negativamente em todos os aspectos da vida dos povos. As religiões cristã e muçulmana foram os primeiros exemplos da globalização das ditas religiões do mundo civilizado ao serem impostas aos povos à escala planetária. Principalmente a religião cristã, que foi utilizada pela ocupação colonial para amaciar a vontade dos povos colonizados no sentido de eles encararem os colonizadores como enviados de uma ordem divina superior e, consequentemente, encararem o mundo com fatalismo de modo a aceitar a subjugação militar e cultural como natural e imutável.
Actualmente, a globalização manifesta-se de modo muito mais subtil. Além de actuar na esfera económica através do controle financeiro e tecnológico ganha espaços impondo uma cultura educacional alienatória. As agências financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, impõem projectos educacionais que excluem os contextos culturais dos povos destinatários, a braços com graves crises económicas, como resultado da desastrosa ordem económica capitalista que lhes é imposta.
Não há, actualmente, país pobre que não se queixe dos efeitos nefastos da globalização. O reflexo desta insatisfação pode-se constatar na tónica dos discursos dos chefes de Estado e Governo na recente Cimeira do Milénio, ocorrida de 6 a 8 de Setembro de 2000, que teve lugar nas instalações da sede da ONU em Nova Iorque: tornar a globalização um instrumento ao serviço da humanidade. Intervenções com conteúdos mais ou menos similares, por os constrangimentos que os países enfrentam serem quase comuns. Os mais de 130 Chefes de Estado que tomaram a palavra, deram ênfase à necessidade de o mundo se unir no combate à pobreza absoluta que afecta grande parte da humanidade (80% dos seis biliões de habitantes do mundo) e no estabelecimento de mecanismos que permitam um desenvolvimento mais acelerado dos mais desfavorecidos. Segundo o Jornal NOTÍCIAS (2000), edição nº 24838, estes líderes mundiais apelaram, no cômputo geral, para
"(...) um mundo mais justo, fazendo do terceiro milénio, uma era de paz e progresso em que não haja lugar para a discriminação nem exclusão de nenhuma natureza.
"[é] de consenso que um mundo equilibrado, em que se reduzam as abismais assimetrias que o caracterizam hoje, seria benéfico não só para os povos das regiões mais desfavorecidas do mundo, mas também para a humanidade no seu todo" (1).
Antes, interessava ao capital internacional a manutenção de preços baixos da matéria-prima dos países do terceiro mundo. Actualmente, importa não só a manutenção disso tudo, mas também perpetuar o analfabetismo, a ignorância dos povos desses países ao imporem como condição de empréstimos para a área de educação a priorização de escolarização mínima, isto é, o Ensino Básico. Isto na senda de uma "rápida recuperação" da economia. Na óptica dessas agências, as populações com o nível básico de escolarização podem ingressar imediatamente no mercado de trabalho e produzirem, permitindo rápida reposição dos valores injectados para a sua “formação”. Assim, uma vez que a escolarização é mesmo mínima, essas populações acabam tornando-se reservas de mão-de-obra barata, fácil de manipular e explorar. Moçambique é uma das vitimas desses arbítrios. Três quartos do OGE dependem de empréstimos ou de doações das agências financeiras internacionais como FMI e o Banco Mundial.
As políticas do FMI são orientadas na base do que foi definido pelo Consenso de Washington na concessão de financiamentos aos países demandantes de recursos, dentre os quais, infelizmente, Moçambique faz parte. As orientações do Consenso de Washington tornaram-se referência para as decisões das agência internacionais sobre demandas para financiamento ou para alocação de quaisquer recursos.
Moçambique, manietado por uma grave crise económica, como resultado da guerra de desestabilização terminada em 1992 e das calamidades naturais que de tempos em tempos se têm abatido sobre o território de forma severa, está entre os países presos numa crise fiscal crescente, de cujos governos passaram a recorrer cada vez mais aos capitais internacionais, obrigando-se às exigências do Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial, para implementar "melhorias" sectoriais.
Os compromissos com estas agências internacionais vinculam as decisões do Estado a um conjunto de obrigações que os governos, a despeito da retórica da independência, foram assumindo, tornando-se impossível analisar as suas políticas públicas sem o conhecimento dessas obrigações.
Actualmente, o Banco Mundial suplanta, em muito, a importância e o prestígio da UNESCO, subsumindo também algumas das teses debatidas naquela instituição internacional de ciência, cultura e tecnologia sob o título de necessidades educacionais básicas: a relação da educação com o desenvolvimento, a pobreza, etc., revestindo essas teses com um discurso científico, formulações e previsões estatísticas e programas saneadores.
Os discursos melados de reformas educacionais e elevação da qualidade da educação, extraindo argumentos do baixo nível mensurado do ensino inquestionavelmente minguado, outorgam competência para se operarem milagres a partir de reformas e de intervenções sectoriais urdidas pelos seus profissionais. O que dá ao Banco Mundial o poder de mobilizar e alocar ou não financiamentos e uma posição privilegiada de hipnotizador. Os sectores carentes, fascinados pela miragem de financiamento, são forçados a aderir aos seus propósitos, muitas vezes à custa da renúncia aos seus ideais de liberdade e de desenvolvimento.
Dada a importância do papel de "sentinelas" dessas agências internacionais, principalmente do Banco Mundial, que se tornou um significativo actor social na elaboração de políticas públicas para países em desenvolvimento, carentes de financiamento como Moçambique, têm vindo a merecer análises de diversas sensibilidades. É assim que CASALI et alii (1997-1999), sensíveis à questão, em um estudo revelam que,
"... Não se pode falar de políticas educacionais, (...) sem ter presente a relevância e poder que o Banco Mundial adquiriu, aberta ou discretamente, na formulação de reformas e da política de educação, nos anos 90 o Banco elabora propostas de financiamento de políticas de desenvolvimento, com relevância especial às reformas do sistema escolar. Suas Políticas e Estratégias para a Educação[25] definem as directrizes de financiamento: prioridade à educação básica e remoção dos obstáculos à sua universalização; ênfase na qualidade da educação, fundamentada em indicadores quantificáveis de desempenho, que se constitui em mote omnipresente das reformas educativas; redefinição do papel do Estado e maior participação dos agentes externos [na] escola: pais, comunidade, sector privado, organizações não-governamentais; descentralização e autonomia das instituições educacionais e acompanhamento avaliativo de seus resultados; definição de prioridades baseadas em análises económicas"[26] (7).
Este projecto neo-liberal é aliciante. E penso que foi precisamente por esta razão que o governo brasileiro de Fernando Collor o assumiu nas eleições de 1989. Porém, de acordo com CASALI et alii (op. cit.:),
"(...) este programa modernizador pôs em risco a continuidade dos sectores produtivos industriais com abertura indiscriminada do mercado e intensificação da recessão, e agravou o desemprego e a exclusão social" (8).
O Brasil, em relação a Moçambique, pode-se dizer, é um colosso económico. E Moçambique, ao que parece, caminha também na esteira da miragem do projecto neo-liberal. Para citar apenas um sector, que foi a pique logo depois da aderência do governo moçambicano ao projecto, a Indústria do Caju, faliu, em resultado da liberalização excessiva da exportação da castanha de caju em bruto. Consequências: encerramento de várias fábricas de processamento da castanha arrastando milhares de trabalhadores para o desemprego, além de acentuar a exclusão social, engrossando assim, o número de desempregados que ronda os 50% da força activa do país[27].
O quadro económico que se avizinha pode ser mais desolador. As cheias de Fevereiro e Março de 2000 que assolaram o sul e o centro do país, e igualmente assoladas pelas de Fevereiro/Março de 2001, só agravaram a situação sócio-económica já insuportável. As águas arrastaram milhares de hectares de culturas diversas, alagaram unidades de produção, habitações e escolas, inviabilizando a vida de milhares de pessoas. Só nas Províncias de Sofala e Tete, no ano 2001 as cheias afectaram 42 mil alunos (In Jornal Notícias, 20 de Março de 2001). A desastrosa situação económica em que se encontra o país cria cada vez mais campo às manobras das agências financeiras internacionais que agem como abutres.
As políticas públicas do governo moçambicano, no concernente à educação devem ser entendidas dentro do quadro acima exposto, pois as guerras de agressão colonial e a de desestabilização recentemente terminada, em 1992, as calamidades naturais quase cíclicas tiveram repercussões negativas profundas em toda a esfera sócio-económica. Esta situação, na área da educação, obriga as autoridades moçambicanas a recorrerem permanentemente aos empréstimos do Banco Mundial, para repor a rede escolar destruída pela sanha da guerra e calamidades e assim escolarizar milhares de crianças que ainda permanecem fora do sistema escolar.
O esforço das autoridades moçambicanas não tem sido acompanhado por uma política coerente de reformas mais abrangentes na área da educação: as tentativas da reforma curricular no pós-independência não são seguidas duma política de formação de professores, espinha dorsal para a sustentação do projecto, além de pesquisas para mudanças nos conteúdos curriculares. Os professores são os fazedores do currículo na escola. Ao excluir a sua participação no processo da reforma curricular, condena-se o propósito ao fracasso. ABRAHAMSSON e NILSSON (op. cit.) escrevem que,
"... O que se verifica agora é que alguns doadores e algumas forças moçambicanas querem uma escola de elite, enquanto que outros doadores e algumas forças sociais de Moçambique querem dar prioridade a acções que levem à educação para todos. No entanto, mantém-se o problema de que nem as crianças do campo, nem as das elites urbanizadas reconhecem a sua realidade no ensino que lhes é oferecido. O resultado é que muitos dos alunos das zonas rurais terminam a quinta classe como analfabetos funcionais e os filhos das elites terminam a universidade com conhecimentos académicos deficientes" (123-124).
Isto conduz também à deterioração da confiança que os pais depositavam no Estado e na sua legitimação. Os camponeses necessitam que os seus filhos tenham conhecimentos das quatro operações da aritmética e de português para estabelecerem contactos com a "sociedade moderna" e diminuírem o fosso que os "modernos" da cidade procuram impor nas suas relações comercias e políticas.
Quando os camponeses descobrem que, concluída a quinta classe, os seus filhos não lhes podem proporcionar a ajuda tão almejada, a decepção é bastante grande. As elites também ficam decepcionadas ao verem que os seus filhos, mesmo com os diplomas universitários moçambicanos, pouca competência reuniram para fazer face à cada vez mais exigente concorrência no mercado de trabalho. Perante esta situação, as elites mais privilegiadas recorrem às escolas e universidades estrangeiras. E, como consequência, quando os meninos regressam ao país, estão sócio e culturalmente desenraizados.
O que mais frustra às comunidades locais é descobrir-se que, pelas nossas escolas ninguém tem a possibilidade de obter conhecimentos relevantes e muito menos é socializado e com projecção para o futuro face aos padrões sócio-culturais moçambicanos. A escola socializa os alunos para o imaginário, para um mundo virtual.
Quando o SNE (Sistema Nacional de Educação) foi introduzido, em 1983, houve vozes (até dos que estavam encarregues de o elaborar) que se opuseram à sua imediata implementação, sem o devido preparo que passava por uma formação de professores porque estes, uma vez formados ou capacitados, iriam introduzi-lo gradualmente. Mas os políticos secundarizaram o ponto de vista dos técnicos e implementaram-no.
Como se não bastasse, o facto de o currículo ter sido implementado sem que se tivessem criadas todas as condições necessárias para o êxito do projecto, por exemplo, a preparação de professores foi negligenciada, de acordo com as novas exigências do SNE. Além disso, os conteúdos do novo currículo não previram e não prevêem as particularidades culturais regionais do país, ou seja, o ethos.
A exclusão do contexto cultural na concepção dos currículos de ensino, particularmente no 1º grau do Ensino Básico, tem contribuído para elevar o índice das desistências e repetições porque ao recebê-las como tábuas rasas, os programas de ensino ignoram totalmente a experiência das crianças adquirida da pedagogia autóctone tradicional na família e na comunidade.
As novas autoridades não solucionaram o problema da recuperação e valorização da prática pedagógica autóctone e pode-se dizer que agem como se o país não tivesse uma história colonial recente. Segundo BARROS (1980), não estão levando em conta que
“O sistema colonizador age sobre o espaço colonizado através da subjugação económica, social, política e ideológica. Absorve, missiona, proíbe e esvazia do seu sentido originário as manifestações culturais autóctones e impõe seus próprios valores. Marx constatou essa verdade histórica: «as ideias dominantes são as da classe dominante; são as ideias da sua dominação».
“Vista a colonização como fenómeno globalizante e totalitário, a descolonização terá de ser uma guerra sem quartel a todos os níveis da praxis, conglobando naturalmente a resistência cultural; o seu êxito ou fracasso estão dependentes do maior ou menor radicalismo dessa negação” (62).
As hesitações das autoridades moçambicanas no que respeita à especificação do papel do local no currículo educacional, volvidos vinte e cinco anos de independência, faz com que se adie indefinidamente a oportunidade de Moçambique passar a dispor de um currículo nacional que, para além de contemplar o necessário saber universal, reflicta o capital cultural da dimensão do país.
Compreende-se que, no que se refere à política educacional no período pós-independência, os currículos fossem orientados no sentido de consolidar a ainda frágil consciência da unidade nacional. Aliado a este factor, acredito que a falta da experiência na elaboração de currículos, contribuiu para o atraso do desenvolvimento curricular nacional. Contudo, apesar dos trabalhos que o Instituto de Desenvolvimento da Educação (INDE) realizou, devemos reconhecer que, estudos mais aprofundados para a construção de um currículo nacional nunca foram encetados, mesmo com as mudanças históricas e económicas que decorrem no nosso país.
O impacto negativo da falta de uma política e estratégia nacional de formação de professores leva a que os mesmos não consigam realizar o seu trabalho com a eficiência necessária. Assim, tudo leva a crer que as dificuldades que ainda enfrentamos na educação residem, em parte, na inadaptação dos currículos de ensino oficiais à realidade sócio-cultural moçambicana, além da inadequada política de formação de professores. Aliás, o PLANO CURRICULAR DO ENSINO BÁSICO (1999), neste momento em discussão em Moçambique, reconhece que:
“A qualidade de ensino não é a desejável. Reclama-se que os alunos que terminam o Ensino Básico nada sabem fazer (...) A estrutura e o conteúdo do currículo desenvolvido há mais de 15 anos, vai-se mostrando cada vez mais inadequado para uma economia em rápida mudança e para as exigências sociais. A actual estrutura curricular é demasiada rígida e prescritiva, deixando pouca margem para adaptações aos níveis regional e local. Muito do que se ensina na escola é de uma relevância ou utilidade prática duvidosa” (4)!
Note-se que mesmo com este reconhecimento explícito, não se faz menção ao papel e à importância do professor no processo. A relação dialéctica educador-conteúdos-aluno na construção do conhecimento parece continuar no esquecimento dos técnicos do Ministério da Educação.
Os problemas que Moçambique enfrenta na educação são resultantes, em parte, da marginalização da nossa educação autóctone tradicional, das nossas práticas educativas ao longo de gerações, quer pelo sistema colonial, quer pelo Sistema Nacional de Educação (SNE) que desvalorizam a experiência da socialização inicial das crianças na família e na comunidade.
Em Moçambique pesquisas etno-pedagógicas precisam de ser feitas em Moçambique. Urge o resgate e a integração da pedagogia secular dos nossos povos. Tenho consciência da complexidade e da delicadeza política do tema que pretendo abordar. O interesse político no primeiro período pós-independência nacional era enfatizar a unidade nacional e harmonizar horizontalmente as classes, secundarizando-se as diferenças e a heterogeneidade que eram consideradas perigosas para o projecto da unidade nacional da FRELIMO.
As autoridades moçambicanas, ao proclamarem direitos iguais tinham em vista a abolição das classes sociais, ignorando que para a abolição destas não basta a sua decretação verbal. Era preciso que a justiça social estivesse dentro de cada um e de todos. Certamente que hoje as diferenças sociais tendem a vincar cada vez mais a sua presença no cenário sócio-económico moçambicano. Os pobres continuam mais pobres e os ricos enriquecem-se cada vez mais. Não é possível falar da igualdade de direitos num país onde a maioria das pessoas não tem sequer emprego e não será, certamente, pela escola pública actual que o sentido da solidariedade entre os homens surgirá, porque ela está cada vez mais desacreditada.
O papel social da escola é harmonizar as classes sociais dando igualdade de oportunidades a todos os cidadãos para desenvolverem as suas potencialidades. A escola deve qualificar os cidadãos para o exercício pleno da cidadania e não desqualificá-los, agudizando o fosso entre as classes, onde o conhecimento oficial aniquila os saberes culturais regionais particulares. Os saberes que se transmitem na escola continuam a ser dos que sempre foram privilegiados pela nova burguesia nacional, o que a priori é assimilado sem muitas dificuldades, pelas crianças provenientes dessas camadas sociais. As crianças das camadas menos privilegiadas, logicamente, têm muitas dificuldades na identificação e assimilação dos conteúdos porque estes não apelam aos objectos do seu quotidiano. Como consequência imediata desta situação a maioria dos alunos dificilmente relacionarão os conhecimentos adquiridos na escola com a vida da sua comunidade e raramente aplicarão esses saberes na resolução de problemas do seu dia-a-dia.
As crianças que ingressam na escola, sabendo apenas expressar-se em suas línguas maternas não podem competir com os seus colegas oriundos das classes privilegiadas quanto à qualificação e desabrochamento das suas potencialidades.
Na sociedade capitalista, os privilegiados educam seus filhos para a manutenção dos seus privilégios e os desfavorecidos para continuarem a conformar-se com a "lei do peixe": "Os peixes grandes comem os pequenos, e estes devem ser numerosos e ligeiros". A educação, é utilizada como meio de garantir a numerosidade dos desfavorecidos, ao servir de filtro de acesso aos lugares da hierarquia de classificação entre os homens.
Quer queiramos, quer não, a escola, até hoje, é uma instituição de reprodução de classe porque, segundo GADOTTI (1983),
"a chamada «evasão escolar» nada mais é do que a garantia para as classes dominantes de que continuarão a se apoderar do monopólio da educação. [A escola moçambicana tal como foi ou é? capitalista] é essencialmente divisionista, reprodutora e conspiradora" (56).
É divisionista porque não teve em conta que 80% da população moçambicana é rural e não fala português, e ao impor como única língua de ensino o português, condiciona a aprendizagem dos filhos dos camponeses em relação aos provenientes das camadas mais privilegiadas; na sala de aula passou a haver dois grupos de alunos, como no tempo colonial: os autóctones e os AKUNYA[28] ORIPA (brancos-pretos) que conseguem superar as etapas do ensino que os filhos das classes dominantes conseguem; as escolas em áreas rurais e suburbanas são construídas com material precário, não tem mobiliário, as aulas decorrem, de acordo com GADOTTI (ibidem), em "uma atmosfera viciada e fétida que exerce efeito deprimente sobre as infelizes crianças"; há carência de toda a ordem: faltam professores com formação adequada além de livros e material de ensino.
Do lado oposto, as escolas das zonas urbanas são de alvenaria, possuem casas de banho, têm alguma mobília, livros que sempre chegam tarde, depois do início do ano lectivo, mas chegam; possuem professores, nem todos com boa formação mas, relativamente aos seus colega do campo, bem melhor formados e com alguma qualificação académica, graças a existência de cursos nocturnos nas cidades.
É reprodutora porque a escola oficial continua a reproduzir as diferenças de classes. Os conteúdos, ao excluir o quotidiano cultural da maioria dos petizes cria condições de insucesso escolar para uns e sucesso para outros, privilegiando sempre os que «sempre tiveram e viveram em sombra, os que sempre comeram»[29], isto é, as novas elites surgidas no processo da «criação da nova sociedade», que se pretendia sem exploradores nem explorados.
É conspiradora porque, ao se anunciar «a escola como a base para o povo tomar o poder» (S. MACHEL), ao mesmo tempo que o SNE negava o substracto cultural a esse mesmo povo, ao colocar no mesmo cabaz denotativa a sociedade tradicional com o obscurantismo e a superstição, criou condições para que a essa escola o alienasse, enquanto se constituía a elite que hoje tomou o poder de assalto, formando seus filhos nas melhores escolas do Ocidente. Portanto, nenhuma destas características pode pertencer à escola progressista.
O papel da escola progressista deve ser o de, paulatinamente, ir minimizando os impactos negativos da sociedade e escola antigas e não sobre as suas cinzas, através de acções de alargamento, não só da igualdade de acesso de todas as crianças e de todas as camadas à escola, mas também e acima de tudo da manutenção e progressão pedagógica dos contingentes que todos os anos nela ingressam. É na elevação da qualidade de vida de todos, através da relevância local e regional dos conteúdos, que a escola ensina para a vida de todos, individual e da comunidade. Ensinar o indivíduo a identificar-se culturalmente com o local onde nasceu, para melhor orientar-se no universo do mosaico cultural nacional não põe em causa a unidade nacional que acredito impreterível.
A história tem sido uma das nossas grandes fontes de aprendizagem. Na realidade, ela demonstrou que o projecto de unidade nacional não podia funcionar nos moldes pretendidos, isto é, sem se ter em conta a diversidade sócio-cultural do país. O problema da unidade na diversidade é um desafio para a sociedade moçambicana, que deve debatê-lo ampla e abertamente. Tentar negar as diferenças culturais em Moçambique em nome do perigo para coesão nacional, hoje, apenas atrasa o desenvolvimento pleno do mosaico cultural que é uma rica característica do país.
A escassez de estudos etnográficos do povo Macua, torna a abordagem ainda mais difícil e incompleta, o que constitui um desafio para todos os intelectuais, professores, investigadores, estudantes e até políticos. Daí a pertinência e a ousadia de que se reveste este estudo.
A análise do que foi e é a educação autóctone tradicional poderá contribuir para a identificação de elementos educativos muito importantes que podem mudar radicalmente a concepção das políticas educacionais no país.
Assim, o presente estudo visa ser um alerta para a definição das nossas estratégias educacionais e melhoria dos nossos currículos, conteúdos e métodos de ensino da nossa cosmovisão, enriquecendo-os com meios didácticos que resultem dos recursos existentes à nossa volta.
Os sistemas de ensino ensaiados, desde o colonial, passando pela educação escolar implementada depois da independência, nunca educaram integralmente. São escolas de admoestação, um ensino de adaptação a civilizações estranhas, onde o importante é só o saber improvisar mínimo. Não é um ensino que se adapte à natureza do homem moçambicano concreto. Educar implica reforçar e ampliar, também, o saber ser/estar, partindo dum mundo concreto, real, em que vivemos. Contrariamente, as nossas crianças saem da escola envergonhadas da cultura de seus pais, isto é, saem estranhando a sua própria cultura, alienados por uma miragem cultural universalmente imposta, um modo de ser/estar que não lhes diz respeito.
1.6 Objectivos da pesquisa
Segundo SAVIANI (1996),
"Os objectivos indicam os alvos da acção. Constituem, como lembra o nome, a objectivação da valoração e dos valores. Poderíamos, pois, dizer que se a valorização é o próprio esforço do homem em transformar o que é, naquilo que deve ser, os objectivos sintetizam o esforço do homem em transformar, o que deve ser naquilo que é" (39).
Tendo em conta uma realidade pedagógica inquietante em Moçambique, os objectivos desta pesquisa visam a transformação, para o melhor, dessa realidade, considerando o contexto cultural circundante (ethos).
Objectivo geral
- O Objectivo Geral desta pesquisa é analisar a prática da educação tradicional autóctone e da educação oficial, para encontrar uma relação frutífera, de complementaridade, de enriquecimento mútuo e integrativa entre elas. A análise procurará evidenciar contradições na realidade cultural da educação moçambicana, e propor medidas para tentar resolvê-las, enriquecendo o projecto da Política Nacional de Educação e as Estratégias de Implementação. À vista deste objectivo foram definidos os seguintes objectivos específicos:
Identificar, descrever e analisar as práticas pedagógicas, os métodos e os meios predominantemente utilizados na mediação dos conteúdos da educação autóctone tradicional Macua, incluindo os ritos de iniciação de puberdade dos rapazes e das raparigas, e na educação oficial;
comparar os conteúdos, métodos e meios do Ensino Básico do 1º grau dos programas vigentes no SNE (Sistema Nacional de Educação), com os da educação autóctone tradicional Macua; e
face às constatações e análises das informações recolhidas durante as observações, propor formas de integração/relacionamento entre os elementos educativos autóctones tradicionais e a educação oficial, com vista ao enriquecimento do currículo, tendo em conta os contextos culturais locais.
1.7 Resultado esperado
Como resultado da pesquisa, espero explicitar conteúdos, métodos e meios da educação autóctone tradicional Macua relevantes que possam ser integrados no processo da construção do conhecimento na escola oficial, como forma de valorização da cultura e saberes locais, contribuindo para eliminar o desperdício escolar e contribuir para o desenvolvimento curricular do Ensino Primário do primeiro nível (EP1, isto é, da 1ª a 5ª Classes).
1.8 Viabilidade da pesquisa
São escassos os estudos realizados sobre a pedagogia tradicional dos povos de Moçambique. Ao invés de adiar este estudo até que apareçam obras que especificamente sirvam de base, é preciso enfrentar o desafio de, com o pouco que existe, realizar o trabalho, no âmbito da demanda de estudos sobre a educação autóctone tradicional.
A pesquisa foi viável porque dispus de motivação, condições materiais, e orientadores para a sua realização. Algumas fontes escritas consultadas são portadoras de lacunas colmatáveis derivadas do eurocentrismo de muitos dos autores que estudaram os povos de Moçambique. Contei, pois, com os poucos estudos feitos por africanos e moçambicanos em particular, além das «bibliotecas vivas», fontes orais, os mais velhos que entrevistei, para recolher dados sobre a pedagogia tradicional autóctone Macua (conteúdos, métodos e meios) e assim contribuir para a construção do currículo nacional do Ensino Básico refutando muito do que se escreveu sobre a educação dos povos africanos por eurocentristas.
A experiência acumulada durante a pesquisa para o meu trabalho de diploma de licenciatura sobre “Aspectos pedagógicos da socialização da criança durante os ritos de iniciação – estudo de caso na sociedade Macua” - e nas pesquisas em co-autoria sobre “Percepção e tratamento tradicionais das doenças psicossociais na comunidade Macua – estudo de caso nos distritos de Nacarôa, Memba e Mogincual”, e “Educação da Rapariga no Norte” foi muito útil. Algumas conclusões das pesquisas referenciadas constituem uma boa base de trabalho para o presente estudo
Outros elementos importantes são o facto de eu próprio pertencer à etnia Macua, na qual pretendo estudar o fenómeno descrito: ter passado pela educação tradicional, incluindo os ritos de iniciação da puberdade, e ter experiência de cerca de 20 anos como professor no ensino primário do segundo grau. Estes factores parecem-me suficientes para definir o paradigma (quadro referencial) do que pretendo investigar.
1.9 Hipótese
A hipótese desta pesquisa é que o presente sistema de Educação Básica em Moçambique, ao não incluir os valores da educação autóctone tradicional, contribui para a exclusão social da maioria das crianças, e não forma nem desenvolve a personalidade do aluno moçambicano de forma integral, multilateral e harmoniosa no contexto sócio-cultural moçambicano, visto que:
i) a recuperação e valorização dos elementos educativos presentes na educação autóctone tradicional, incluindo os rituais de iniciação, são indispensáveis para uma nova qualidade da educação oficial do Ensino Básico;
i) o currículo actual de Educação Básica não tem em conta a educação e instrução autóctones tradicionais (conteúdos, métodos e meios) utilizadas para transmitir as experiências e conhecimentos às novas gerações;
ii) o currículo do Ensino Básico não cria espaço para incorporar aspectos educativos que a educação autóctone tradicional Macua parece ter, tais como conteúdos, métodos e meios - o que não permite a sua contextualização sócio-cultural;
iii) os conteúdos, métodos e meios do ensino oficial não têm ligação nem continuidade com a experiência sócio-cultural inicial das crianças na família e comunidade e tampouco ajudam a resolver os problemas dos indivíduos e das comunidades.
1.10 População e universo da pesquisa
A presente pesquisa, na procura de confirmar a hipótese acima colocada, tem uma característica: é uma pesquisa fundamentalmente de "história da vida" de muitas pessoas, de um povo, de uma etnia, cuja cultura foi, ao longo de séculos, silenciada e, pior do que isso, o seu processo de reprodução social e a sua aprendizagem ignoradas. Em sua substituição, foi imposto outro processo que pouco ou nada tem a ver com a sua realidade e com o seu modo de vida. O modo de vida inclui a maneira como ao longo das gerações o povo transmitiu as experiências acumuladas, como foi repassado o saber, o saber fazer e o saber ser/estar históricos.
Buscar informação e transformá-la em dados, para uma tese como a presente, que tem a história como seu berço - porque só nela se pode encontrar a documentação verdadeira impregnada de cultura e tradição oral - essa biblioteca, que o colonialismo não conseguiu queimar, apesar de a ter manietado com a dominação militar. Isto conduziu-me à definição da idade dos entrevistados, como factor muito importante a ter em conta.
Eis, assim, os critérios definidos para a construção da amostra da pesquisa. Entrevistados:
1) pais que passaram pela educação autóctone tradicional, à qual submeteram os seus filhos, incluindo os ritos de iniciação;
2) os mestres dos ritos de iniciação com idade superior a 42 anos em 2000, por uma razão: Moçambique tornou-se independente em 1975. Por isso, o entrevistado tinha de ter "vivido o colonialismo" e possuir memória dos acontecimentos anteriores e posteriores à independência nacional, ou seja, ter tido pelo menos 18 anos em 1975. Este critério foi também estendido aos
3) professores entrevistados, pelas razões apresentadas para a selecção dos mestres da Educação autóctone tradicional.
Uma vez que o estudo pretende ser o mais abrangente, abarcando regiões significativas da Província de Nampula, região geográfica da sociedade Macua, o trabalho de campo decorreu no distrito do interior e em meio rural, Murrupula; no distrito costeiro, rural e urbano (Lumbo e Ilha de Moçambique, respectivamente) e cidade de Nampula. Nestes locais foram entrevistados anciãos, pais, professores, autoridades tradicionais relevantes e mestres dos ritos de iniciação sobre aspectos importantes da educação tradicional autóctone Macua e, em particular, sobre os conteúdos, métodos e meios na transmissão das experiências/conhecimentos entre gerações - o que serviu, para observar esse processo, incluindo os ritos de iniciação de rapazes e sessões de conselhos dos ritos iniciáticos das raparigas.
As sessões dos ritos de iniciação femininos são exclusivas para as mulheres excepto os seus conselhos de iniciação (IKANO) que assisti na zona do Rex, arredores da cidade de Nampula. Para colmatar a lacuna provocada pela interdição de assistir os ritos de iniciação das raparigas, recorri a entrevistas.
1.11 Metodologia de pesquisa
Entre fazer uma pesquisa quantitativa e uma pesquisa qualitativa, pareceu-me caminho acertado adoptar a segunda, pelas características do tema em estudo, apesar de alguns investigadores aconselharem a conjugação das duas, como escreve SANTOS FILHO (1997), apud COOK e RICHARD:
“(…) parece fictício, e mesmo simplista e artificial, a contradição entre «pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa»”, pois na prática da pesquisa e durante o seu decurso, será necessária a conjugação dos dois paradigmas, não só para rechaçar os falsos antagonismos e oposição entre os dois, mas especialmente buscar deles sua articulação e complementação, uma vez que “os vazios de um paradigma são as virtudes do outro, constituindo um veículo tão vital e necessário, como o é a luz em relação à escuridão” (52).
Assim, tratando-se de uma pesquisa na área das ciências humanas e da educação, é epistemológicamente mais defensável a tese da metodologia qualitativa, embora tenha, muitas vezes, recorrido à unidade dos paradigmas, quando tive que buscar elementos estatísticos para elucidar um ou outro aspecto e completar informações.
Adoptei uma metodologia de pesquisa-participante. Os pesquisados tinham conhecimento dos principais objectivos e o que se pretendia com o estudo, o que permitiu a sua participação activa e consciente. Esta metodologia foi possível porque as entrevistas decorreram num ambiente de confiança e estima, permitindo momentos de reflexão sobre a acção educativa e sua importância na construção do conhecimento e da cidadania. Foi preciso que os entrevistados compreendessem que o mais importante é a integração dialéctica do foco do estudo (conteúdos, métodos e meios de ensino da educação autóctone tradicional), com o que a escola ensina (o currículo do Ensino Básico), não para puramente eliminar o que se ensina no ensino oficial e substituí-lo pelo da educação autóctone tradicional. O recurso à pesquisa participante foi fundamental porque o tema tem relação com o papel que a cultura popular joga na construção de alternativas educativas.
A presente pesquisa pretende trazer à tona modos de construção de uma educação que resgatem e valorizem a prática social e a cultura popular para que se assuma a validade da cultura popular como estrutura de significados e de interpretações da realidade. Isto implica a incorporação daquelas como categorias de análise na interpretação de uma realidade concreta.
Sendo intenção fundamental da pesquisa propor a construção de um currículo complementar ao currículo oficialmente vigente, que recolha o positivo, no dizer de Gramsci, da cultura popular como conteúdo básico, implicando um esforço de sínteses culturais dos conteúdos pedagógicos e da teoria de desenvolvimento da criança moçambicana, no presente caso. É por isso que, para realizar este estudo, coloquei, em primeiro plano, o envolvimento de pais ou encarregados de educação, professores e mestres da educação tradicional por serem os mais destacados da comunidade para uma discussão do problema da sua realidade educacional, escutando as suas opiniões e percepções.
O estudo é predominantemente de carácter qualitativo. O enfoque na investigação da realidade educativa preocupa-se com a compreensão dos aspectos singulares, imprevistos diferenciáveis, visto que sem o conhecimento do singular se foge do sentido específico de qualquer realidade humana. Também há a possibilidade de identificar padrões compartilhados de comportamento, inclusive a conveniência de estabelecer categorias a partir das respostas dos entrevistados e/ou de seus comportamentos.
De acordo com KRAWCZYK (1998),
“A estratégia de uma pesquisa de tipo qualitativo possibilita mergulhar na complexidade dos acontecimentos reais e indagar, não apenas o óbvio, mas também as contradições, conflitos e as resistências, a partir das interpretações dos dados no contexto da sua produção. Neste sentido, os resultados de uma pesquisa qualitativa são generalizáveis, não só pelas suas semelhanças ou diferenças com outras situações, mas principalmente quando se desvelam os condicionantes mais estruturais dos fenómenos observáveis” (3).
Ainda sobre a opção metodológica de investigação qualitativa para o desenvolvimento deste trabalho, convém esclarecer que utilizo a expressão como um termo genérico aglutinador de diversas estratégias que partilham determinadas características. Neste tipo de investigação, BIKLEN & BOGDAN (op. cit.) esclarecem:
“Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos em toda a sua complexidade e em contexto natural” (16).
Por isso, combinei a técnica de pesquisa bibliográfica com a técnica da entrevista e observação. Para tal, frequentei locais onde se verificam os fenómenos (escolas de ritos iniciação e formais), como afirmam GUBA (1978); WOLF (1978), para este tipo de pesquisa, incidindo os dados recolhidos nos comportamentos naturais das pessoas: conversar, visitar, observar, comer, etc.. Tomei em conta o dia-a-dia, aquilo que ocorre, as manifestações que são expressas pelas pessoas. A prerrogativa da entrevista e observação deveu-se ao facto de as fontes escritas sobre a prática educativa do autóctone moçambicano serem escassas, além de conterem lacunas e enviesamentos premeditados e reducionistas de quem as escreveu.
Segundo BOGDAN & BIKLEN (op. cit.), são principais características da abordagem qualitativa, marcantemente existentes na presente pesquisa:
a) "A fonte directa de dados é o ambiente natural. Daí o privilégio para o contacto directo;
b) os dados a recolher são em forma de palavras ou imagens e não de números, para a necessária descrição;
c) maior enfoque pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos;
d) os dados são analisados de forma indutiva. Não [se] recolhem dados ou provas com o objectivo de confirmar ou infirmar hipóteses construídas previamente; ao invés disso as abstracções são construídas à medida que os dados particulares que foram recolhidos se vão agrupando. Procedendo deste modo, constitui-se uma teoria que se desenvolve de "baixo para cima", (em vez de "cima para baixo"), com base em muitas peças individuais de informação recolhida que são inter-relacionadas. É o que se designa por teoria fundamentada (GLASER e STRAUSS, 1967) e
e) o significado é de importância vital: o que interessa é o modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas, isto é, aquilo que se designa por perspectivas participantes (ERICSON 1968, ver DOBBET). Centra-se em questões como, por exemplo: quais as opiniões dos pais sobre as razões para os filhos não terem bom rendimento escolar, entre outras" (50).
1.11.1 A colecta de dados
Para a colecta de dados, e dadas as características enunciadas da presente tese, apoiei-me em CHIZZOTTI (s/d)[30], que sobre o assunto afirma que
"Malinowski recomenda partir de um problema, mas sem ideias preconcebidas, buscando em campo os dados de modo análogo às ciências naturais: reunir sistematicamente os dados observados, ao que chamou documentação estatística concreta, para apresentar generalizações comprovadas e fidedignas da interpretação dos modos de vida e da estrutura social do grupo e, enfim, a compreensão holística da cultura em estudo. Para apreender o ponto de vista do nativo é, segundo ele, indispensável o convívio durável com os membros da comunidade investigada, a observação «in loco» dos factos, entrevistas com informantes seleccionados na linguagem ordinária nativa, fazendo emergir as bases teóricas da investigação de descobertas feitas em campo, sempre confirmadas por verificação (s/p).
Com base no acima referenciado, foi-me muito útil a conjugação de várias estratégias e uma diversidade de técnicas a partir de observações participantes e contextualizadas e de anotações feitas em campo para fazer uma "descrição densa" (GEERTZ: 1989: 13) interpretativa do modo de vida, da estrutura social e da cultura dos Macua, aspectos fundamentais para tentar perceber (e confirmar o que sabia) a maneira como constroem os seus saberes locais, a maneira como se processa a educação autóctone tradicional.
A maior parte dos estudos realizados sobre Moçambique, no âmbito de estudos etnográficos são monografias feitas por estrangeiros, a partir da cosmovisão colonialista europeia, entre os quais oficiais do regime colonial português, conquistadores, viajantes, administradores e missionários em memórias, cartas, diários e relatórios, com o exagerado eurocentrismo que caracteriza os escritos. De acordo com o meu estudo (BONNET, 1996), citando FIGUEIREDO (1938:225) e JUNOD (1974:572) são testemunhas deste facto, as seguintes frases:
“O Macua é lamentavelmente estúpido, cobarde, indolente, egoísta, desconfiado, ciumento e porco. Reconheço-lhe apenas três qualidades aproveitáveis, resultantes, sem dúvida, da situação em que se encontra- de povo subjugado. É submisso, obediente e respeitador. Perdão, já me esquecia de uma outra boa qualidade que se resume em não ser gatuno, talvez com medo de ser apanhado: é um bicho verdadeiramente incompreensível” (5).
Como que a corroborar com o ponto de vista de Figueiredo, JUNOD, escreveu que
“... a priori, é perfeitamente conforme a razão dar a um jovem selvagem uma instrução que difira da criança civilizada" (2),
Como se pode depreender, a partir dos extractos, os estudos feitos sobre os nossos povos apresentam estes e outros preconceitos, lamentáveis, que precisam de ser superados radicalmente. Para isso, também, são necessários, estudos sérios no terreno, recorrendo às fontes tradicionais autênticas dos mais velhos, que constituem verdadeiras bibliotecas, visto que Moçambique é um país de povos de tradição oral.
A metodologia seguida na presente pesquisa é a que me pareceu mais adequada, pois, durante o trabalho de campo, aquando do meu trabalho de licenciatura e desta pesquisa, constatei que existem conteúdos bastante ricos na educação autóctone tradicional que poderiam ou deveriam ser aproveitados para enriquecer e tornar mais significativo (e próximo ao aluno) o que se transmite/medeia na escola.
Além dos conteúdos, a educação autóctone tradicional Macua possui métodos activos como as representações psico e sócio-dramáticos que tornam vivos e interessantes os conteúdos - o que pode permitir uma continuidade lógica da socialização inicial das crianças, pelo menos nos primeiros anos de escolarização. Se se tiver em conta que a primeira forma de aprendizagem é feita por imitação (consciente ou inconsciente) aos mais velhos, tanto em sociedades mais desenvolvidas como em sociedades de forte tradição oral (como a nossa), a lógica seria não repetir o erro do colonialismo: desprezar as formas de aprendizagem e dos valores das nossas tradições e da nossa cultura.
Teorias modernas de educação confirmam que quanto mais próximo da realidade forem os conteúdos, métodos e meios de ensino, maior é a possibilidade de assimilação, porque os conhecimentos não cairão em campo vazio. A partir do real e do concreto, os alunos podem aferir os saberes escolares com os saberes locais da sua socialização inicial. Portanto, tudo indica que há a necessidade de, nas primeiras classes, adoptar-se o método directo de Coménio, o princípio do sensualismo, que preconiza a primazia dos sentidos sobre a razão no conhecimento do mundo exterior. Segundo este princípio, o ensino deve, necessariamente, começar pelos sentidos.
O ensino que parte da realidade vivencial da criança não só torna a aprendizagem viva e interessante, como também se torna coerente consigo mesmo, porque parte duma realidade vivencial das crianças, da sua experiência de vida - o que permite de facto, a construção do conhecimento, segundo a teoria de Paulo FREIRE.
O processo de ensino-aprendizagem na educação autóctone tradicional tem uma forte matiz, nos primeiros anos de aprendizagem: a imitação e a representação de cenas sociais. Pela imitação, pelo aprender fazendo - que se efectua através de uma representação ou simulação de situações, as crianças criam habilidades que, por envolver uma actividade próxima da realidade, raramente podem ser perdidas ou esquecidas.
O método de representações sócio e psico-dramáticos é muito usado durante os ritos de iniciação. Por exemplo, um dos mestres, durante os conselhos de iniciação, cai, prostrado, fingindo-se estar morto. Aprende-se a necessidade de prontidão no socorrer a uma pessoa vítima duma doença súbita. É um princípio cívico de solidariedade. A aprendizagem é directa em interacção viva entre o aprendente, mestre e o objecto de conhecimento. É uma aprendizagem (socialização) intensa e activa. A criança sofre uma socialização participativa que permite a sua integração, pela identificação e empatia com o objecto de conhecimento.
A socialização que ocorre durante a educação autóctone é um processo da integração. O indivíduo integrado interioriza os moldes da sociedade em que vive, num processo de transmissão/assimilação cultural que, sem ser exclusivista é, em larga medida, condicionante. A socialização é um processo de aprendizagem de condutas e ideias que, no fim de contas, se concretizam em condutas.
Uma das razões por que adoptei o método da pesquisa participativa neste estudo foi, precisamente, para permitir o estudo das condutas durante o trabalho de campo, pois, conviver, observar e partilhar a vida das populações, através de conversas abertas com a população alvo permitiu-me melhor integração e interpretação dos factos vivenciados.
Entre outros aspectos, este tipo de intervenção permitiu que, como pesquisador, aprofundasse os meus conhecimentos sobre como o povo pensa, qual a sua maneira de explicar a realidade e como constrói o conhecimento. É muito importante conhecer o marco referencial que os sujeitos têm para definir as suas acções concretas e, em particular, para expressar um certo tipo de concepção educativa e de educação de seus filhos. De facto o problema de investigação e de acção, principalmente sobre a educação, se centra na identificação e percepção das explicações que os sujeitos entrevistados dão a certas dimensões da realidade. Conhecer e confirmar estas explicações, na qualidade de membro da etnia em estudo é fundamental para propor a produção de um currículo que expresse uma síntese cultural e torne a escola um centro a partir do qual se possam encetar acções que incidam no desenvolvimento crítico das crianças, para que, futuramente, possam encontrar soluções dos problemas específicos no espaço físico-cultural em que vivem, para a transformação da realidade.
Tratando-se de uma pesquisa qualitativa, a etnometodologia adoptada, de acordo com as características do presente trabalho, permite que se volte para a análise do quotidiano, para aquilo que são os actos rotineiros da vida. De acordo com CHIZZOTTI (1991),
"... é preciso ver o sujeito da acção, tomado no seu contexto natural e na compreensão da estrutura social de vida, construída nas interacções das pessoas; e isso é fundamental na pesquisa. Os etnometodólogos são mais radicais: são questões da vida rotineira, os processos, as práticas triviais da vida cotidiana, o campo privilegiado da realidade objectiva do estudo. As actividades banais do dia-a-dia devem ser consideradas com a mesma atenção que se dá a qualquer fato relevante em ciência sociais" (94).
Esta corrente pretende estabelecer uma compreensão das condutas empíricas, aquelas condutas ordenadas e regulares que vão organizando a vida não só a individual mas também a social de um grupo. A educação autóctone tradicional é exactamente isso. A vida é vivida para ser partilhada, e a pensarmos num currículo como conhecimento oficial, na óptica de APPLE, o contexto sócio-cultural dos seus destinatários deve ser uma das fontes de inspiração.
Para que o currículo da educação oficial corresponda aos anseios das populações, é preciso que se investiguem os rituais, as práticas locais de ensino aprendizagem, aquilo que olhares "menos atentos" julgam desperdício de tempo numa era "moderna".
Segundo CHIZZOTTI (1991),
"rotineiros que estão cristalizados na vida diária, esse movimento [julgado] mecânico das acções que acabam constituindo o dia-a-dia, porque é nelas que vamos encontrar a racionalidade subjacente da vida cotidiana das pessoas. Aquilo que se considera banal, inútil, desnecessário, rotineiro, absurdo, os etnometodólogos privilegiam, particularmente" (95).
Nesta pesquisa, o processo de ensino-aprendizagem, autóctone tradicional ou oficial são esses actos triviais que servem de base para fazer uma descrição elaborada do que as pessoas precisam, falam ou compreendem. As conversas, os acenos, as expressões faciais, as pessoas se comunicando, expressões que têm significado próprio no momento da interacção social, que têm sentido no contexto em que se dão, nos instantes da vida diária das pessoas. Como GEERTZ (op. cit. p. 16) exemplifica a habilidade em descobrir o significado de uma piscadela brejeira, densa de significados interaccionais reveladores e a piscadela de mero tique nervoso, reveste-se de grande importância para validar a forma de saber e a representação que apresenta. Isto incentiva a necessidade de pesquisa etnográfica em educação para sairmos do reducionismo reinante nos currículos actuais.
1.11.2 Técnicas e meios de pesquisa adoptados:
Tendo em conta as características da pesquisa, definidos o problema, os objectivos, as hipóteses, o universo e a população alvo, explicadas as razões da metodologia adoptada, decidi, para melhor colectar e analisar os dados, seleccionar as seguintes técnicas e meios para realização da mesma.
Assim, a recolha de dados foi feita:
a) Através da pesquisa bibliográfica, iniciada ainda na fase de desenvolvimento do projecto da tese, continuada e enriquecida no Brasil e concluída em Nampula, através de materiais disponíveis nas Bibliotecas, artigos publicados nos jornais e nas emissões da Rádio Moçambique, que foram sendo produzidos até a conclusão da tese, atinentes ao assunto em tratamento.
b) Através de observação de sessões dos ritos de iniciação, de rapazes e das raparigas, para registar os conteúdos, métodos e meios de transmissão dos conhecimentos, valores, atitudes, convicções e comportamentos. Para tal desloquei-me a diferentes locais previamente seleccionados. As imagens incorporadas no texto visam testemunhar de forma inequívoca quão gratificante foi tudo o que pude aprender nesses locais.
c) A partir de entrevista qualitativa à seguinte população alvo: 1) pais, 2) autoridades tradicionais, mestres da educação tradicional (incluindo mestres dos ritos de iniciação; 3) professores, na Província de Nampula, em locais previamente seleccionados, pela sua representatividade cultural. Área rural: Murrupula (interior); distrito do litoral: Ilha de Moçambique e Lumbo (urbano/rural) e a cidade de Nampula, nas zonas urbana e periférica. Para registar, coligir e sistematizar as informações, para além do lápis, papel, computador, conforme aconselha CHIZZOTTI (op. cit.: s/d e s/p) também recorri a gravações em áudio e vídeo, como meios auxiliares.
As fitas magnéticas estão devidamente enumeradas e transcritas, na sua essência e as cassetes em vídeo serão apresentadas durante a defesa da presente tese.
CAPÍTULO II -
SOCIEDADE, EDUCAÇÃO E CULTURAS
2.1 Referencial teórico
O fundamento da presente pesquisa é a teoria crítica do currículo nacional como conhecimento oficial e as reflexões de Michael W. APPLE (1989, 1999, 2000) e outros autores relevantes, tomados como subsídios para enriquecer a teoria crítica deste autor.
A análise crítica do currículo do Ensino Básico constitui, em primeiro lugar, um trabalho continuado das reflexões feitas na minha tese de licenciatura, na qual me debrucei sobre os aspectos pedagógicos da educação autóctone tradicional, mais especificamente o processo de ensino-aprendizagem que decorre durante os ritos de iniciação masculinos e femininos. Tratou-se de um estudo de caso na sociedade Macua.
Pretendia com este estudo identificar aspectos pedagógicos evidentes na socialização da criança Macua durante os ritos da puberdade com base na caracterização do processo da realização dos ritos de iniciação de ambos os sexos e caracterizar o processo educativo dos jovens durante os mesmos para fornecer dados relevantes ao desenvolvimento do sistema educacional em Moçambique, tendo em conta os aspectos pedagógicos evidentes na Educação Tradicional Moçambicana para a preservação cultural nacional e local.
O mote para o estudo era precisamente o facto de ter constatado, como hipótese, que a inadaptação dos programas de ensino poderiam estar na origem do insucesso escolar que se vive em quase todo o país, além de outros factores. Que o conhecimento oficial que o Estado fazia passar para todas as crianças não tinha em conta a realidade nacional, entanto que um país multi-étnico, multilíngue e multicultural.
A principal conclusão a que cheguei no estudo em alusão é que o colonialismo português havia marginalizado a educação dos autóctones, com vista a uma "lavagem cerebral", impondo saberes alienatórios, para quebrar a ponte entre o passado cultural dos povos colonizados e a sua identificação, como povos subjugados em todos os aspectos, necessitando de se libertar. Apesar da conquista da independência nacional, a educação continuava coisa dos outros, isto é, o que a escola ensinava nada tinha a ver com a realidade sócio-cultural moçambicana, embora houvesse promessas repetidas em todos os discursos políticos de "fazer da escola uma base para o povo tomar o poder".
De acordo com Michael APPLE (1999:17), "é comum que os poderosos duvidem do patriotismo ou das boas intenções daqueles que apontam os fracassos de nossos países". Por isso, uma pesquisa do género pode tornar-se assaz perigosa. Os poderosos podem duvidar do meu patriotismo ou das minhas boas intenções ao apontar os fracassos da educação no nosso país. Poderão perguntar-me: tudo é tão ruim assim? Você não tem nada de bom para dizer? Você não é produto do "nosso" esforço? Demos uma bolsa e estudou. Agora vira as armas contra "nós"? Os outros países não se encontram na mesma ou em pior situação? Não se trata de virar as armas contra quem seja. Trata-se sim de cumprir o meu papel e dever como pesquisador. A crítica é também acto de patriotismo quando se tem por fim dizer e demostrar o que está errado e propor soluções para resolver o problema. Um provérbio Macua diz: ONAHIMA WI: T'ASUSERE YWO, YOOWO T'ORUMPE WIIKHO. Este provérbio diz exactamente o seguinte: aquele que diz «chega-te para aí» é o que está deitado mais perto do fogo. Portanto, como professor, eu estou "deitado" mais perto do fogo: vivo na pele, dia-a-dia, os problemas da educação!
É verdade que nem tudo correu sempre mal na educação moçambicana. Com a independência nacional, houve abertura da escola para todo o povo. Crianças cujos pais nunca tiveram acesso à escola puderam matricular-se; centenas de crianças foram para as escolas moçambicanas em Cuba[31]; com base em trabalho voluntário pais construíram escolas precárias com material local, tudo isso com o fim de alargar o espaço para que a maioria das crianças moçambicanas fosse à escola. Porém, depois de um período de euforia revolucionária e ênfase posta na educação ideológica e na mobilização política da sociedade em geral, depois dos primeiros anos de independência, a escola oficial, está cada vez mais distante do que dela se espera.
No período que se seguiu à independência, a escola talvez nunca tenha estado tão perto da realidade em que a maioria das crianças moçambicanas vivia. O ensino era frequentemente combinado com o trabalho produtivo, tendo por objectivo uma ligação entre os saberes teóricos na sala de aula com a realidade da prática social local. Porém, com o tempo, o conteúdo do ensino foi-se distanciando cada vez mais da realidade. O fosso entre o ponto de partida e a ambição visionária de ensino tornou-se intransponível. O ensino passou a basear-se na visão da elite sobre o futuro, mas tinha e continua tendo cada vez menos a ver com a realidade que caracteriza a vida social moçambicana.
Na verdade, as transformações operadas no ensino reforçaram ainda mais a distanciação em relação às necessidades da sociedade local, tanto no que diz respeito à socialização, como à aquisição de conhecimentos. Segundo ABRAHAMSSON e NILSSON (1997:123), "A escola foi encarregada de socializar os alunos para um novo sistema social que ainda não existia e que fazia parte de um futuro imaginário".
Reconhece-se que, conforme afirmam ABRAHAMSSON e NILSSON (op. cit.), que
"A formulação e modificação de sistemas de educação são tarefas a longo prazo que exigem muita paciência, especialmente porque a educação, em si, é um processo muito lento e moroso. Além disso, são necessários vários anos para poder começar a medir os seus efeitos" (121).
Porém, 25 anos é tempo suficiente para se encetar uma avaliação do alcance real das políticas educativas sob o risco de nos deixarmos enganar pelos discursos neo-liberais de que tudo vai bem, com estatísticas que mais não fazem senão confundir o cidadão incauto. É minha tarefa, como cidadão, educador e pesquisador criticar o que parece inadequado. Como parafraseia APLLE (op. cit.) a Henry Louis GATES,
"a crítica, é em si mesma uma afirmação. É uma forma de compromisso, «um meio de estabelecer uma reivindicação». Em essência, é um dos gestos máximos da cidadania, porque se constitui num modo profundamente importante de dizer que não estou «apenas de passagem». Eu (nós) moro (amos) aqui" (17-18).
De acordo com APPLE (op. cit.),
"... a critica é, então, um dos mais valiosos instrumentos que temos para demonstrar que esperamos mais do que promessas retóricas e sonhos desfeitos, porque tomamos certas promessas seriamente.
"Todavia, ser critico significa algo mais do que simplesmente apontar erros. Envolve a compreensão de conjuntos de circunstâncias historicamente contingentes e das contraditórias relações de poder que criam as condições nas quais vivemos" (ibidem).
A história será a principal referência nesta análise. A génese do Sistema Nacional de Educação não poderá ser entendida enquanto não se fizer uma resenha histórica dos sistemas de educação em Moçambique, mesmo que resumidamente. Partindo da educação autóctone tradicional, antes e depois da chegada dos portugueses, analisei o sistema de ensino colonial e, por fim, a educação nas zonas libertadas, nos primórdios da independência nacional, e o Sistema Nacional de Educação, para desembocar no currículo actual do Ensino Básico que o governo pretende como conhecimento oficial, a ser "distribuído" pela acção dos professores em salas de aula a todas as crianças moçambicanas.
O currículo do Ensino Básico enferma de muitos males. O primeiro é seguramente relativo aos conteúdos, que não têm em conta a realidade das diferenças sócio-culturais do país. A língua portuguesa, adoptada como língua de unidade nacional, distancia mais os alunos da sua realidade linguística, ao ser ministrada como se ela fosse a língua materna de todas as crianças que ingressam na escola pela primeira vez. Os métodos utilizados nas salas de aula não permitem a construção do conhecimento na verdadeira acepção da palavra, ao ser priorizado excessivamente o método expositivo, numa idade em que a criança precisa de aprender agindo, manipulando o objecto de conhecimento. Os meios de ensino são bastante clássicos: livros, quadro preto, giz, mapas. Estes meios de ensino clássicos precisam de ser enriquecidos e “(re)inventados” com outros meios “recolhidos” da realidade circundante. A realidade anda distante, estando tão perto. Os professores são formados para o "método de atalho": o que posso fazer com uma sala pejada de miúdos? Chega o fim do ano e nem conheço seus nomes! O que interessa é cumprir com o programa e "passar" alguns.
O currículo anda divorciado da realidade social.
Parafraseando MOREIRA & SILVA (1999), há muito tempo que o currículo deixou de ser apenas uma área meramente técnica, virada para questões relativas a procedimentos, técnicas e métodos. Já se pode falar agora em uma tradição crítica do currículo, guiada por questões sociológicas, políticas, epistemológicas. Embora questões relativas ao «como» do currículo continuem importantes, elas só adquirem sentido dentro de uma perspectiva que as considere em sua relação com questões que perguntem pelo «porquê» das formas de organização do conhecimento em que valores sócio-culturais se fundamentam.
Em Moçambique esta reflexão nunca foi colocada frontalmente. Ela permanece sempre velada nas análises que se fazem sobre a validade dos currículo que se transmite na escola e sobre a necessidade de adequação do que se ensina na escola em relação ao contexto cultural circundante.
Na perspectiva de uma tradição crítica do currículo, guiada por questões sociológicas, políticas e epistemológicas, conforme MOREIRA & SILVA (op. cit.), ele é considerado um artefacto social, o que significa colocá-lo numa moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual.
A construção de um currículo nacional em Moçambique precisa ter em conta que o currículo transmite formas de visão sociais particulares e interessadas, que o currículo confere identidades individuais, sociais e particulares. O currículo, como conhecimento oficial, é um dos mais importantes veículos das formas específicas e contingentes da organização da sociedade e da própria educação.
O contexto moçambicano, a partir de 1986, passou a ser pautado por uma economia de mercado, uma (re)introdução do capitalismo. O país passou a integrar a COMMONWEALTH, uma parceria inusitada para um país africano de expressão portuguesa, distante da história inglesa. A economia de mercado é muito titubeante ainda. Mas já em 1994, após o final da guerra de desestabilização no país, o capitalismo assumiu um carácter selvagem declarado: o desemprego atingia mais de 50% da população por causa das privatizações mal encaminhadas e sem o devido acompanhamento pelas autoridades governamentais: muitas empresas foram vendidas a pessoas sem nenhuma experiência de gestão empresarial, o que conduziu à falência de muitas delas, principalmente a indústria de caju, com consequente desemprego em massa.
No campo, onde reside a maioria da população, a guerra (1980-1992) devastou as poucas infra-estruturas existentes, entre as quais a rede escolar. Sem emprego e sem poder trabalhar a terra para o seu sustento e venda do excedente por causa da guerra e das minas no pós-guerra, o camponês passou a engrossar as dezenas de milhares de cidadãos sem destino nas cidades.
O ensino, não sendo gratuito, a escola oficial passou a ser dos que podem pagar. Face à pobreza absoluta no país, as populações carentes não podem usufruir de um ensino público que se caracteriza por uma baixa de qualidade progressiva o que põe em causa a igualdade de direito à educação.
Aliás, o descrédito da escola não é só corolário da má qualidade. Os próprios dirigentes contribuíram grandemente para o declínio da escola pública. Os filhos da maioria dos mesmos frequentam as melhores escolas da Europa ou da América. Isso leva a crer que eles próprios nunca acreditaram na escola que propunham, como "base para o povo tomar o poder" e para "formar o Homem Novo".
Aliada à deficiente organização da escola, a degradação do tecido social, com a moral minada pela luta de sobrevivência por causa de salários baixíssimos e dificílimas condições de trabalho, a corrupção também atingiu a escola. Os professores passaram a vender provas e exames e com eles a sua própria dignidade de transformadores da sociedade.
Tal é, em Moçambique, a situação dos professores que se deixaram levar pela crise do sector, em que dizem servir o país.
Face à instalação generalizada da insatisfação social em relação à validade do que se ensina na escola, não havia para as comunidades outra alternativa senão a revalorização da educação autóctone tradicional, como saída perante a anomia social e cultural.
Por sua vez, os intelectuais, mesmo apercebendo-se das causas do insucesso do processo de ensino-aprendizagem, poucos ousaram denunciar a hipocrisia reinante. Em 1993, com a abertura política, surgem os primeiros estudos, com uma visão crítica, dos currículos que até então eram seguidos em Moçambique. Entre os estudos destacam-se os do professor Manuel Golias: “Sistemas de Ensino em Moçambique”(1993), e, numa fase posterior, em 1995, a tese de doutorado de Brazão Mazula: “Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique: 1975-1995”. Estas duas obras são hoje, em Moçambique, uma importante fonte para a reflexão sobre a construção do currículo nacional. Não são propriamente obras de crítica curricular. Contudo, fazem observações bastante interessantes acerca da organização do processo do ensino-aprendizagem em Moçambique. Embora não nos caiba fazer um julgamento da motivação dos seus autores, como cidadãos, cabe a todos o dever de fazer uma leitura crítica construtiva do que escreveram, para uma análise necessária e pertinente da educação em Moçambique.
Parece que as hesitações de Manuel Golias e Brazão Mazula acerca do valor da cultura local na definição do conhecimento oficial, definido como currículo no ensino em Moçambique, deveu-se não apenas à "identificação" com os ideais do poder, mas o receio de serem apontados como principais "ressuscitadores" do "regionalismo", que se pretendia combatido e "enterrado", para a conquista da unidade nacional, através da revolução conduzida pela FRELIMO, de orientação ideológica marxista-leninista.
O identificar-se com a ideologia do poder da esquerda (pelo menos a FRELIMO de até à morte de Samora Machel dizia sê-lo), devia ser a procura do aperfeiçoamento no servir melhor às populações; alertar a quem de direito da existência de erros e distorções, para as devidas correcções, e, consequentemente, pôr a ciência ao serviço do bem estar do povo. Porém, é preciso reconhecer que as realidades sócio-políticas em que o país vivia levavam a estas evasivas, pois a situação política era bastante complexa. Mas, seja como for, parece que não foram capazes de fazer assumir a crítica necessária, alertando a quem de direito, sobre o perigo da reedição da educação do passado, uma educação que buscou ao longo dos anos esvaziar a dimensão cultural dos autóctones. Mais uma vez, ninguém se oferece para "mártir" de uma causa tão nobre: construir uma escola real tendo em conta as aspirações reais do ethos, como aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, que marca suas realizações ou manifestações culturais, que está sendo ignorado no processo do ensino-aprendizagem da escola oficial. Muitos intelectuais moçambicanos não foram capazes de denunciar que o modo de ser/estar, a disposição interior de natureza cultural, emocional e até moral continuavam a ser postos de lado, desprezados, espezinhados, violentados tal como no passado colonial.
Tanto GOLIAS (1993) como MAZULA (1995) – ambos funcionários do MINED, aperceberam-se que era preciso propor mudanças curriculares. Suas críticas à ineficiência do sistema de ensino não foram suficientemente contundentes ou não foram suficientemente "claras" para serem ouvidos? porque a ineficiência que o processo de ensino-aprendizagem em Moçambique provém da marginalização da socialização inicial e do desprezo do contexto vivencial e cultural das crianças. A educação autóctone tradicional, como uma das bases importantes da prática pedagógica secular do povo, da qual se devia partir para a construção do currículo, este como produto do desenvolvimento histórico e contextual foi sempre posta de lado, rotulada de atrasada. A teorização crítica sobre o currículo em Moçambique só pode consolidar-se partindo da problematização e questionamento das práticas educativas do nosso passado. MOREIRA & SILVA (1999) afirmam:
"... a teorização crítica sobre o currículo, da qual a Sociologia do Currículo é um importante elemento, é um processo contínuo de análise e reformulação. A teoria Crítica do Currículo é um movimento de constante problematização e questionamento. Nesse processo, novas questões e temas vêm-se incorporar àquelas que, desde o seu início, estiveram no centro de sua preocupação. É isso que constitui sua vitalidade e seu potencial. Esta é uma história que evidentemente não terminou. Na verdade, talvez esteja apenas começando" (1999:21).
De acordo com estes autores (ibidem.), o conhecimento corporificado como currículo educacional já não pode ser analisado fora da sua constituição social e histórica. Na situação educacional moçambicana já não é possível alegar qualquer inocência a respeito do papel constitutivo dos conteúdos organizados em forma curricular e transmitido nas instituições escolares. Ignorar-se o crescente desperdício escolar como reflexo da insatisfação generalizada do que se ensina na escola e a sua validade prática na resolução dos problemas, conduz às dificuldades educacionais de que Moçambique padece.
Não tem sentido falar da construção de um currículo nacional sem se ter em conta o meio ambiente que cerca a escola, os interesses dos alunos, da sociedade e o impacto desse currículo. É um problema de ética e de cidadania. A ética e a cidadania estão ligadas à libertação da miséria em que vive o povo. E porque a escola está inserida nesse processo, o povo não pode continuar a ser consumidor passivo das propostas curriculares vindas de cima para baixo e de forma arbitrária. Tem que participar na construção e na modificação do conhecimento que a escola transmite, para se libertar.
Um currículo que se impõe, que não incorpora as experiências sócio-culturais, aliena e escraviza culturalmente os destinatários, o que contraria a intenção da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, em 1990, apoiada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Convenção sobre Direitos da Criança, que afirma que
"... todas as crianças, jovens e adultos, na sua condição de seres humanos, têm direito a beneficiar de uma educação que satisfaça as suas necessidades básicas de aprendizagem, na acepção mais nobre e plena do termo, uma educação que compreenda aprender a assimilar conhecimentos, a fazer, a viver com os demais e a ser. Uma educação orientada para a exploração dos talentos e capacidades, de modo a que possa melhorar a sua vida e transformar a sociedade"[32].
O Plano de Acção supra citado é um compromisso de todos os governos presentes no Fórum Mundial sobre a Educação, para o cumprimento dos objectivos e metas da Educação para Todos (EPT), na qual transparece a nobre intenção: para todos e para todas as sociedades, o que deve ser entendido também como o respeitar-se as matrizes culturais e particulares dos povos.
Parafraseando MOREIRA& SILVA (op. cit. p. 21), a teoria curricular não pode mais preocupar-se apenas com a organização dos conteúdos escolares, nem pode encarar de modo ingénuo e não-problemático os conteúdos transmitidos. Os conteúdos organizados para serem mediados na escola têm que passar a ser vistos não apenas implicados na reprodução de relações assimétricas e de poder no interior da escola e da sociedade, mas também como histórica e socialmente contingentes. Como afirma SACRISTÁN (1999:47), "o currículo deve ser entendido como a ponte entre a teoria e acção, como configurador da prática".
A teoria crítica e a sociologia do Currículo adoptada para a presente pesquisa, dá relevância a três eixos centrais de análise do currículo: ideologia, cultura e poder, dando maior ênfase à cultura. Apesar de os considerar indissociáveis por inerência, darei ênfase à parte referente ao aspecto cultural pela sua ligação com a educação autóctone tradicional, tema central da pesquisa. Louis ALTHUSSER (1983) no seu ensaio “A Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de Estado”, marcou o início da preocupação com a questão da ideologia em educação. Rompeu com a noção liberal e tradicional da educação, como desinteressadamente envolvida com a transmissão de conhecimento e lançou as bases para toda a teorização que se seguiria. De acordo com MOREIRA & SILVA (op. cit.)
“Althusser argumentava que a educação [constitui] um dos principais dispositivos através do qual a classe dominante [transmite e perpetua] suas ideias sobre o mundo social, garantindo assim a reprodução da sua estrutura social existente. Essas ideias [são] diferencialmente transmitidas, na escola, às crianças das diferentes classes: uma visão de mundo apropriada aos que estavam destinados a dominar, outra aos que se destinavam às posições sociais subordinadas. Essa transmissão diferencial seria garantida pelo facto de que as crianças das diferentes classes sociais saem da escola em diferentes pontos da carreira escolar: os que saem antes “[aprendem]” as atitudes e valores próprios das classes subalternas, os que [vão] até ao fim [são] socializados no modo de ver o mundo próprio das classes dominantes” (ibidem).
A situação educacional moçambicana é de tal ordem que as crianças oriundas do campesinato e do operariado estão condenadas, de forma não muito dissimulada, à condição de subordinação. São sempre as primeiras a abandonar a escola, por causa da pobreza absoluta e pelo facto de a escola oficial não considerar os saberes de que são portadoras, as potencialidades "formatadas" das suas matrizes culturais. Consequentemente, são condenados à desigualdade de oportunidade de acesso e permanência no sistema de ensino a partir da escolarização inicial e nos níveis subsequentes. Os poucos filhos de camponeses e operários que conseguem prosseguir com os estudos, pelos presentes currículos, se forem bem sucedidos, jamais voltarão à aldeia, porque pela escola aprenderam (na prática reinante) que os camponeses e operários são gente anónima, condenada à baixa condição de vida.
O ensino não contextualizado conduz à alienação. Educa para a reprodução e agudização das diferenças de classe. As crianças educadas em escolas desenraizadas, culturalmente, passam a identificar-se com o ideário cultural que lhes é ensinado durante a escolarização, isto é, passam a pertencer à «periferia» duma cultura que nada tem a ver com as suas vidas. O currículo escolar moçambicano, por não ter em conta a cultura local, é, por analogia, um ensino de assimilação de valores e comportamentos dos outros, o que não foge muito ao que foi imposto pelos colonialistas.
Como foi referido, os três eixos são inseparáveis na análise do currículo. É assim que, no eixo Currículo e poder, é suficiente afirmar que o poder se manifesta em relações de poder, isto é, em relações sociais em que certos indivíduos ou grupos estão submetidos à vontade e ao arbítrio de outros. Na visão crítica, o poder se manifesta através das linhas divisórias que separam os diferentes grupos sociais em termos de classe, etnia, género, etc. Essas divisões constituem a origem e o resultado de relações de poder. É nessa perspectiva que o currículo está, centralmente, envolvido em relações de poder, porque é o principal veículo de reprodução das relações sociais de poder, fazendo com que os grupos subjugados continuem subjugados e encarem com fatalismo o seu futuro: o que fazer? o mundo foi e será sempre assim. Uns mandam e os outros obedecem! É nesta perspectiva que quero analisar a construção do currículo educacional em Moçambique, tendo em conta a participação/integração da educação autóctone tradicional que representa a prática educativa do universo contextual em que vive o povo.
2.2 Processo de educação em Moçambique: diferentes visões
Em Moçambique, como em toda a África negra, quando falamos de educação colonial, devemos partir do princípio de que ela foi muito violenta e "esvaziadora" em todo o seu sentido de reprodutora de valores autóctones. O colonialismo, em África, foi mais violento se compararmos as situações vividas pelos povos de outras regiões geográficas colonizadas como as Américas. A principal razão dessa violência, seguramente, foi o factor raça que teve, também, um grande papel na forma como decorreu o processo da escravatura.
A recente "Cimeira de Durban Contra o Racismo, Xenofobia e Subdesenvolvimento", decorrida entre 31 de Agosto a 7 de Setembro de 2001 na República da África do Sul, testemunha claramente que o racismo foi o pior mal que aconteceu na história dos povos africanos e da humanidade em geral. Aliás, no germe do nazismo[33] e da II Guerra Mundial esteve subjacente o racismo, antes da ambição da hegemonia geopolítica de Adolf Hitler.
A história reza que os colonialistas europeus (de raça branca) viam no homem da raça negra uma espécie de animal diferente do que eles consideravam um ser humano e, como consequência desta percepção, viram no negro um ser inferior, uma besta de hábitos, costumes, práticas e modo de conceber e estar no mundo diferente do seu. Por isso, concluíram que não era seu semelhante, necessitando, por isso, trato especial com uma educação de adaptação e de adestramento.
O negro, por ser diferente, foi considerado objecto de venda para uso como instrumento de trabalho. E, para tornar esse instrumento mais útil, havia que adestrá-lo. É assim que o branco concebeu a educação para o negro, uma educação que visava esvaziar a sua totalidade existencial. Entenda-se a totalidade existencial como o conjunto de formas comportamentais - incluindo a sua relação com o meio envolvente - que tornam o Homem um sujeito autêntico. A autenticidade como resultado da conjugação da cultura com a educação, como processos inseparáveis, simultâneos, numa relação intrínseca. A tentativa de separá-los, delimitando fronteiras é falaciosa e reaccionária.
Os colonialistas consideravam o negro como um ser sem "indícios" de educação formal nem civilização, muito menos cultura.
O negro, para além da pele escura, tinha um modo diferente de ser e estar do que os colonialistas estavam habituados na Europa. Essa foi a justificação moral encontrada para saquearem e venderem o negro como ferramenta de trabalho, para maximizar o rendimento das suas plantações em África e em outras regiões. Esta visão ainda prevalece actualmente. É por isso que consideram a educação autóctone tradicional como imagem de não-educação e atraso, quiçá da resistência à dominação.
Assim, para educar o negro era necessária a aplicação da violência para vergá-lo e impor-lhe uma educação de admoestação. Essa educação, na sua forma mais subtil foi, posteriormente, entregue à Igreja Católica, através das escolas missionárias para, em nome da fé, facilitar o esvaziamento cultural e a colonização do autóctone. Para MARTINS (1920), era necessário o uso da força, entenda-se violência, como a única forma de educar o negro. Segundo este autor,
"o que é absolutamente indispensável para todas as fazendas, metropolitanas ou ultramarinas é o capital. É mister dessecar os pântanos (...), abrir as estradas, construir armazéns e obter os braços [dos pretos], ferramenta humana" (295).
De acordo com este autor, não havia escrúpulo nenhum a observar, ao se recorrer a todas as formas desumanas para garantir a acumulação do capital.
Não se conhece na história da humanidade a deportação massiva de pessoas feitas mercadoria como a que ocorreu em África em relação ao povo negro, escravizado numa dada época e colonizado noutra. Aliás, escravatura e colonização foram duas faces da mesma moeda; a educação colonial era outro instrumento para a corporização desse pensamento hediondo
Para tirar o africano do "estado de bárbaro" e sendo considerado o "pior" entre os animais semelhantes ao homem (branco), a admoestação para transformá-lo em "coisa" útil à civilização ocidental passava pela imposição de valores. Uma das formas de concretizar tal intenção foi e ainda hoje continua a ser influenciá-lo pela educação como apêndice do processo de aculturação. A imposição de um sistema de educação fronteira e limitativa de currículos esvaziados de toda a carga de identidade cultural criou condições para a sua colonização.
A colonização seria impossível se não tivesse, como tempero principal, o racismo. O colonizador vê no outro um ser inferior: racialmente, culturalmente, tecnologicamente, economicamente e, para colonizá-lo, procura convencê-lo da sua inferioridade, utilizando diferentes meios para dominá-lo: armamento, produtos industriais e comerciais, tecnologia, educação, etc.. Foi assim que aconteceu em África e em toda a parte do mundo. Não pode haver algum povo colonizador, sem que seja, em primeiro lugar, racista. A luta que hoje travamos no mundo, em várias frentes, incluindo a emancipação na área da educação, sobretudo dos currículos educacionais, está ligada aos problemas colonialistas, como extensão do racismo.
2.2.1 Educação moçambicana: reflexões e contornos da exclusão
A educação pós-independência, no continente africano, continua culturalmente redutora. Poucos são, actualmente, os países africanos com um sistema de educação que patenteia uma autonomia curricular, em que os interesses culturais das populações estejam salvaguardados, apesar dos apelos da UNESCO. Muitos governos africanos agem como se os nossos povos não tivessem uma pedagogia secular que importa resgatar, desenvolver e preservar. A razão principal da apatia dos governos africanos conscientes ou não, é que a maioria esmagadora dos que possuem instrução não consegue libertar-se das influências da "educação" por que passaram e das ideologias que muitas vezes nada têm a ver com a realidade contextual dos governados.
Por isso, falar da educação em Moçambique passará, necessariamente, pela alusão ao pluralismo de formas de educação: as formas de educação autóctone tradicional existentes antes, resistentes durante e depois da colonização e as impostas pelo colonialismo, principalmente depois da Conferência de Berlim, em finais do século XIX, entre 1840 a 1885.
A educação imposta em Moçambique pela colonização portuguesa foi sendo sucessivamente alterada conforme a evolução e os interesses da colonização. Antropólogos portugueses muito contribuíram para a concepção da educação redutora que prevalece em Moçambique. De acordo com MAZULA (1995:70), o argumento físico-antropológico que permitia a Oliveira Martins concluir que o «preto era congenitamente uma criança adulta», baseava-se no facto de achar que as qualidades infantis, a precocidade, a mobilidade, a agudeza própria de crianças - que também não faltavam no negro - não se transformavam em faculdades superiores porque "abundavam documentos" que demonstravam que o negro era um tipo antropologicamente inferior, "não raro do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem".
Ainda de acordo com MAZULA (1995), para Martins consubstanciar as suas afirmações, apoiava-se no argumento de que a transição de antropóide para homem, como se sabe, manifesta-se em diversos caracteres: o aumento da capacidade da cavidade cerebral, a diminuição inversamente relativa do crânio e da face, a abertura do ângulo facial que daí deriva e as situações do orifício occipital que, na sua óptica assinalam o HOMEM. No negro esses sinais apenas lhe indicavam uma coisa: estava colocado entre o homem e o antropóide. Isto é outra forma de repetir estereótipos como: «o negro, o chinês, assim como o índio, não precisa de nome. Visto um, vistos todos».
Estas alucinações eurocentristas contribuíram sobremaneira para o estado dos sistemas de educação colonial para os índios nas Américas e para os negros, sobretudo em África.
Por isso, a partir destas constatações, procuro apresentar nesta parte do texto, algumas reflexões produzidas em trabalhos de pesquisa ou estudos realizados anteriormente por outros autores, a respeito do papel que a educação tradicional autóctone desempenha na educação oficial dos rapazes e das meninas.
Algumas obras aqui referenciadas, não se debruçam propriamente sobre a educação autóctone tradicional, mas tocam a questão dos problemas culturais e educação, quando procuram entender os fenómenos que estão na origem da grande demanda na educação em Moçambique, e, paradoxalmente, também do grande desperdício escolar. Milhares de crianças sofrem com o problema de reprovações, repetindo várias vezes a mesma classe e, face aos constantes insucessos escolares, elas acabam abandonando os estudos.
As autoridades educacionais têm conhecimento do insucesso escolar. Contudo, ainda não prestaram a devida atenção ao fenómeno. O facto de as autoridades terem constatado a existência do grande desperdício escolar seria seu dever estudar as causas. Estudar essas causas passa necessariamente pela pesquisa, no terreno, para escutar do povo e outros interessados as razões do desperdício escolar, num país em que a maioria das crianças precisa de ir a escola para combater o analfabetismo, a ignorância e para formar os quadros necessários para eliminar a pobreza absoluta.
PALME (1994), na sua pesquisa, realizada em 1988, numa localidade rural da Província de Nampula e na área suburbana da cidade do Maputo, sobre "O significado da escola", tece várias considerações sobre o insucesso escolar (desistência e repetência) em Moçambique.
Como causas da desistência e repetência, na zona rural da Província de Nampula, posto administrativo de Anchilo, arredores da cidade de Nampula, procura sustentar que "a importância da escola como uma agência educacional é limitada". E este autor faz uma descrição que ajuda, em parte, a compreender a situação da educação no universo em que decorre a minha pesquisa. Na análise deste autor,
"... o abandono não era um evento súbito ou dramático que quebrava inesperadamente os laços da jovem rapariga ou jovem rapaz com a escola, mas o resultado de um processo que se vinha desenrolando lentamente desde a primeira classe.
Estas crianças rurais viviam num mundo dominado pelos ciclos e necessidades da agricultura. O trabalho, a educação familiar, as cerimónias religiosas, a iniciação e outros rituais, e muitas vezes agências educacionais semi-institucionalizadas tal como as escolas corânicas educavam as crianças e preparavam-nas para o futuro. Mesmo que a escola fosse olhada como um educador, no sentido moral lato da palavra, era apenas uma das agências educacionais - e na realidade de modo algum a mais importante. Para os poucos que eram bem sucedidos na escola, a educação oficial continuava a ser uma alternativa. Para todos os outros, deixar a escola não era um acontecimento dramático. O seu futuro era bem preparado [pela educação autóctone tradicional] e a sua participação em actividades importantes, muito necessitada. Ir à escola, significava, de certa forma, prolongar o estado de infância e adiar a entrada na vida adulta e respeitada, incluindo coisas, como contribuir mais completamente para a sobrevivência através do trabalho, arranjar a sua própria machamba ou casar-se. Neste sentido nada havia de anormal em não ir à escola depois de ter passado alguns anos na escola primária. Quando a escola entrava em conflito com princípios mais fiáveis e impulsionadores para a reprodução social, tais como o casamento ou trabalho para a sobrevivência da família, era abandonada - e com bons motivos.
Se a escola oficial pode ser de interesse duvidoso aos olhos dos pais ou famílias, é-o mais ainda para as próprias crianças. Ser capaz de ler e escrever, o objectivo mais básico na educação oficial, não é um valor óbvio nas sociedades rurais onde as crianças não só podem sobreviver sem essa competência, mas também pouco ou nenhum uso fazem dela, já que pouco há para se ler e para escrever. Se as crianças rurais estivessem rodeadas de textos e a competência de leitura tivesse um valor de uso imediato e evidente, as coisas seriam diferentes" (42-43).
Para além do limitado papel da escola, como agência educacional, o autor que cito levanta questões: o trabalho, a mobilidade e instabilidade na comunidade local, a pobreza, os casamentos precoces, a gravidez, a idade avançada, a reprovação e a repetência, entre outras, como aquelas que levam à desistência dos alunos, sobretudo das meninas.
Porém, é preciso assinalar os erros que este autor comete ao discutir “o limitado papel da escola”, como agência educacional, sobretudo das meninas. Repete o que o FMI e o BM dizem: um projecto educacional que tenha funcionado com sucesso num dado país pode funcionar de igual modo noutro, sem ter em conta as diferenças que caracterizam os contextos culturais dos destinatários.
Por isso, é importante referenciar que Palme, no seu estudo, não observou que o insucesso escolar também pode estar relacionado com a deficiente ou inexistente formação psico-pedagógica dos educadores, como factor importante para a minimização das desistências e reprovações dos alunos, em particular das raparigas, e, sobretudo a ausência de educadoras nas escolas, principalmente nas rurais. Ele pura e simplesmente ignora a deficiente actuação dos professores.
Nas conclusões, Palme vê o desperdício escolar como um fenómeno complexo. No conjunto das causas do problema, o autor releva a questão de o sistema educacional moçambicano ter como utentes grupos sociais com diferentes tipos de recursos e adverte que, ao invés de se atribuir a culpa do problema aos pais e/ou aos professores, deve-se dar lugar "a uma tentativa de compreender os mecanismos complexos que determinam que significado a educação pode possivelmente ter para os que nela estão envolvidos." O que me parece falacioso em Palme é exactamente não revelar o que ele entende pela palavra "significado". Pretende, em meu entender, retomar o discurso do bom selvagem, que o povo se sente melhor vivendo no estado precário em que está, na miséria e sem uma escola que realmente eduque para a libertação.
Relativamente à questão da alta taxa de desistência das meninas das zonas rurais, Palme diz que não pode ser entendida como um efeito de hábitos ou formas ultrapassados. Para isso, ele encontra a explicação na lógica da reprodução social na sociedade rural enquanto, o mesmo fenómeno, nas áreas suburbanas, tem a ver com as estratégias de sobrevivência das famílias pobres. Segundo PALME (1994:117), para a solução destes problemas, é necessário a compreensão e a discussão dos mecanismos a eles subjacentes, como "a única forma de os professores e planificadores da educação poderem lidar com eles de forma frutuosa”.
No que respeita especificamente às raparigas, PALME (1994) diz não haver "atalhos para melhorar a situação das raparigas no ensino primário" e recomenda que, no acto da formação de professores, se deva incluir discussões sobre a situação presente.
Recomenda ainda discussões que visem a elaboração do livro escolar que tenha em atenção as diferenças entre raparigas e rapazes, o que pode induzir ao erro de voltarmos ao ensino diferenciado por sexos: seria acreditar no reaccionário postulado das diferenças de capacidades intelectuais das raparigas em relação aos rapazes.
Moçambique é um país pobre. Muito do que se constrói ou reabilita, em termos de infra-estrutura é com base em dinheiro doado ou emprestado pela comunidade internacional. O que muitas vezes acontece é a má distribuição dos donativos ou dos empréstimos conseguidos junto das agências internacionais para a construção de escolas. O problema não se põe apenas na distribuição desigual dos recursos doados e da rede escolar no país. Existe também a questão da distribuição de professores qualificados pelo país. Acerca desta questão, parafraseio MACHILI (1998) que tem sido incisivo nas suas críticas ao nosso sistema de educação ao afirmar que nota com satisfação mas também com inquietação, que a maioria das escolas primárias da capital do país conta com um cada vez maior número de professores com os níveis de bacharelato e licenciatura. E interroga-se por quê razão não se aproveita esse capital de experiência para, também, se beneficiar a periferia. Isto é, estender as universidades a outras regiões do país para permitir que os professores dessas regiões possam também estudar e qualificar-se, melhorando, consequentemente, a qualidade do ensino, pois, com mais saber, melhor produção.
A concentração na capital de maiores investimentos na educação provoca um grande déficit nacional de quadros. Os professores primários das restantes regiões do país, não tendo a oportunidade de continuarem com os seus estudos ou aperfeiçoarem-se em institutos ou universidades que se concentram na capital do país, continuam a ministrar um ensino tradicional, porque parcos são os conhecimentos que possuem, pois muitos deles não têm formação pedagógica, além dos currículos padecerem de "descontextualização" provocando "descontinuidades culturais" de que tenho vindo a fazer referência.
O facto de as melhores escolas se concentrarem ou na capital ou na região sul do país, relega para as restantes partes do território nacional à proscrição pedagógica e nítida separação entre a periferia e as "zonas desenvolvidas" no país.
Nas zonas rurais, a situação da qualidade de ensino é mais difícil ainda: as escolas não passam de barracas construídas com material precário, sujeitas ao desabamento logo na primeira intempérie que ocorra. Essas escolas não possuem mobiliário escolar e as crianças estudam sentadas no chão. Assim, a escola é vista como coisa ruim para onde as crianças vão limpas e regressam sujas porque se sentam no chão. Nessas escolas, dada a precariedade das construções, quando chove não há aulas. De igual modo, as escolas primárias do segundo grau (EP2) quase que não existem nessas zonas. Isso desencoraja a escolarização das crianças do ensino primário do primeiro grau (EP1). Porque os pais sabem que mesmo que seus filhos obtenham algum sucesso, poucos poderão dar continuidade aos seus estudos localmente.
Geralmente, devido ao problema da qualidade das construções, as escolas nas zonas rurais são reconstruídas em todos os anos, com a participação dos pais. Por isso, não se pode aceitar o postulado de Palme, segundo o qual o problema pode ser do significado que a educação pode possivelmente ter para os que nela estão envolvidos. Se a escola não fosse importante para as populações, elas não gastariam dinheiro para matricular seus filhos, e muito menos participariam na reconstrução das "barracas" escolares onde seus meninos são "ensinados". O problema está nos critérios duvidosos que se usam para a distribuição geográfica das escolas, na qualidade do pessoal docente, além do que temos vindo a dizer acerca da validade do currículo que se "transmite" às crianças para a sua vida e a das suas comunidades.
Sobre o problema da educação, MAFR et alli (1966), fazem uma abordagem acerca da juventude moçambicana e dos ritos de iniciação, numa perspectiva da religião cristã. Analisam as consequências da opacidade entre a educação autóctone tradicional "caduca" e a escola "modernista". Tecem considerações em redor da importância da educação autóctone tradicional e o seu significado para a vida das populações moçambicanas.
Relevam que esta educação ainda serve para a formação dos rapazes e das raparigas, principalmente quando atingem uma determinada idade: a da puberdade, de preparação moral dos jovens para a vida social. MAFR et alii (1996:159), concluem que a educação autóctone tradicional tem grande valor para o povo, porque através dela as meninas são preparadas para a vida, sobretudo durante os ritos de iniciação. De acordo com Cecília JOÃO & Luisa NIVAVELA[34], apud MAFR et alii (op. cit.:159), "a pessoa fica ensinada, preparada e formada a tornar-se pessoa adulta, deixa de ser criança - no caso de rapariga, deixa de ser [MWARUSI][35] e passa a chamar-se donzela, EMWALI", que em EMAKHUWA (língua Macua), quer dizer donzela".
A obra refere ainda que, a partir dos ritos de iniciação, a rapariga ganha o direito e o dever, através de uma preparação específica, de assistir aos doentes, mortos e participar nos enterros[36] e em vários actos sociais.
O Pe. Ezequiel GWEMBE (1996:15) afirma que, antes e depois da independência, foram proibidas muitas práticas culturais, entre as quais os ritos de iniciação e confirma a tentativa da sua cristianização:
"apesar do combate sofrido no passado, os Ritos de Iniciação continuam muito vivos ainda hoje e muitos missionários começam a aperceber-se que não é correcto combatê-los, como um meio de introduzir a fé" (15).
Essa proibição que, afinal, não foi só obra das novas autoridades moçambicanas, mas também da Igreja Católica, levava a que as raparigas atingissem a primeira regra e, em alguns casos, se tornassem mães sem terem sido iniciadas nas tradições culturais, o que provocava aflição para as populações, e chocava com os preceitos sócio-culturais.
Da análise da obra em referência, depreende-se que alguns católicos apelam à reforma dos conteúdos dos ritos de iniciação, ou seja, há uma tentativa e parece que bem sucedida de cristianização dos ritos de iniciação. Actualmente nota-se grande azáfama dos líderes religiosos em querer ou cristianizar ou muçulmanizar ou islamizar os rituais tradicionais.
Os exemplos da tendência de cristianizar ou muçulmanizar os ritos de iniciação podem ser constatados em muitos acampamentos de ritos de iniciação. Durante o trabalho de campo da presente pesquisa, no dia 22/12/2001, visitei uma "escola" com 86 iniciandos, na localidade de Anchilo, na comunidade de Muyara, - arredores da cidade de Nampula. O acampamento tinha sido montado há escassos metros de uma capela (onde frequentam mulheres, crianças e outras pessoas não iniciadas), o que viola as regras autóctones tradicionais, que recomendam que essas escolas sejam montadas em zonas distantes das residenciais, por causa da linguagem usada nos ritos de iniciação ser de pouco decoro, além de outras actividades só recomendadas para "adultos".
A cristianização ou muçulmanização dos ritos de iniciação não se limita apenas aos ritos dos rapazes. Atinge também os das raparigas. Pelo texto de MAFR et alii (1996), sobre a distensão dos pequenos lábios vulvares, uma prática cultural entre as mulheres Macua desde tenra idade - que faz parte da educação sexual - a Igreja entende othuna como sendo o processo que se pratica para o desenvolvimento dos pequenos lábios vulvares, uma preparação para o acto sexual, principalmente para estimular o homem. Não corresponde à verdade generalizar estas ideias, uma vez que, as raparigas Macua começam com esta prática aos 9-10 anos, e nesta idade elas não praticam relações sexuais.
A Igreja Católica considera que não se deveria ensinar esta prática às raparigas. Porém, aconselha que, se elas aprenderem das outras meninas, não se deve proibir, porque o acto de othuna depende do lar onde a menina cresce. A Igreja Católica pega apenas o lado errado da questão. Ignora a carga cultural que motiva tal prática, a sua importância para a educação integral das moças, como futuras esposas.
Depreende-se que a posição da Igreja visa preservar a castidade das jovens pois, na sua óptica, a prática de othuna é condenada por ser comparada à masturbação feminina. Apesar da visão moralizante sobre as práticas tradicionais, o facto é bastante positivo, relativamente ao aspecto em análise, pois a manipulação precoce dos órgãos genitais pode arrastar consigo a tendência a uma vida sexual também precoce, com todas as consequências negativas para a vida da menina. Um outro aspecto a realçar na análise de MAFR et alli é que se comece a cultivar uma visão libertadora da mulher, a emancipação da mulher. E, para isso, seria preciso: ultrapassar várias barreiras, entre as quais certos tabus e estereótipos, através da consciencialização das "estruturas[37]" tradicionais e da população em geral.
A Igreja pretende também influenciar os rituais tradicionais para que os IKANO[38] das raparigas, durante os ritos de iniciação, se façam sem recurso a injúrias. Aqui, igualmente, a Igreja demonstra a sua ignorância sobre o valor cultural do transe ritual (estado de alteração acentuada da consciência, da percepção ou de outras faculdades mentais), que é causado ou induzido através de estímulos psicológicos ou sensoriais pelas mestras, pela linguagem fortemente apelativa a injúrias, considerados fundamentais para a mudança de comportamento das neófitas. É o objectivo principal desta forma de aprendizagem.
A Igreja, numa clara tentativa de teologização dos ritos de iniciação, pretende "evitar" humilhações da inicianda, propondo que os IKANO sejam animados com a palavra de Deus, porque na idade de iniciação, a rapariga deve escolher entre casar ou seguir a vida religiosa ou celibatária.
MAFR et alli (1996) apelam às mestras dos ritos iniciáticos femininos para respeitarem a dignidade da mulher, para que esta “abra os olhos” sobre o seu próprio valor.
Um aspecto bastante positivo é a mudança perceptiva da Igreja sobre as tradições autóctones moçambicanas nos últimos tempos. A própria Igreja Católica está sofrendo aculturação, incorporando valores africanos. Hoje, podemos ouvir o som do batuque em actividades religiosas da Igreja Católica e pode-se ver mulheres de capulanas na Igreja em dias de culto, o que não era possível há vinte anos.
Para MAFR et alii (op. cit.), como meios para a realização destes e outros aspectos de mudanças que propõe, os ritos de iniciação e toda a educação autóctone tradicional deveriam basear-se na Bíblia (Antigo e Novo Testamentos nos quais se fala de igualdade humana, do respeito, do amor, da fidelidade a Deus). Estes valores enunciados na Bíblia, não sendo de todo negativos, a verdade é que há sempre o risco de fundamentalismo (talibanismo) cristão no processo de ensino-aprendizagem autóctone. A história manda que nos recordemos do papel das missões católicas no processo da colonização de Moçambique.
TARCÍSIO (1996), NEKEWENE (1996) e João PINHEIRO (1996) em suas pesquisas reforçam a necessidade de mais estudos para a determinação dos problemas culturais que afectam a educação em Moçambique, sobretudo os relacionados com o desperdício escolar que afecta rapazes e raparigas (estas principalmente).
Como tenho vindo a referenciar, a maior parte dos pesquisadores concorda que na origem da reprovação e desistência estão questões sócio-económicos e culturais. Apesar deste complexo de factores, todos destacam o problema do currículo que a escola oferece; não se coaduna com a complexidade cultural dos cidadãos quanto a aspectos relacionados com a concepção e operacionalização.
O que se ensina na escola oficial torna-se superficial e a sociedade em geral questiona a sua validade porque, na prática, os alunos aprendem coisas sem aplicabilidade na vida real. A qualidade do ensino só pode ser possível se o que o currículo propõe como conhecimento oficial incorporar conteúdos relevantes, permitir a recorrência (adopção) de métodos e meios passíveis de se identificarem com o que está ao alcance da vista, do tacto, do paladar, do olfacto, da audição e do quotidiano das crianças. A escola estaria a contribuir com subsídios para a construção do saber, do saber fazer, estar e ser do cidadão, ao permitir reconhecer-se na escola, nos livros e manuais. Os exemplos de que os professores se socorrem devem ser passíveis de estimular na criança a curiosidade de conhecer mais sobre objectos que a rodeiam para que, posteriormente, ela caminhe gradualmente para as abstracções da aprendizagem indirecta. Defender isto não é, de modo algum, defender o "isolacionismo" cultural e pedagógico. É lutar para a libertação cultural, como direito ético-social. É defender o direito de ser diferente e também de ser igual aos outros povos, que hoje, também comungam o mesmo ideal da libertação. A escola não pode continuar a ser aquela instituição mutiladora de outrora, onde aprendíamos que o que é bom, a verdade, é só aquela que vem do lado dominante. Onde se estabelecia, desde mais cedo, as fronteiras de todos os tipos: sociais, sexuais, etc. Onde a mulher aprendia como o destino a havia feito para se vergar diante do homem e este aprendia a perpetuar essa desigualdade, pois os currículos assim o estabeleciam.
As relações de força na escola alteram-se quando a rapariga encontra exemplos nos textos, nos livros; quando a mobilizam para o conhecimento juntamente com o rapaz, e não exemplos que perpetuem as diferenças de poder do homem porque, na família, sempre aprenderam que os rapazes são superiores, quer na força física, quer em inteligência. A escola que ensina novas relações de poder na sociedade contribui para a liberdade, condição sem a qual a aprendizagem é instituição de reprodução da exploração e dominação.
NEKHEMWENE (1996) faz uma análise profunda sobre o papel da escola como agente na formação e transformação dos padrões de comportamento, isto é na socialização do indivíduo. Critica as bases em que assentam as relações de poder entre as crianças. Afirma, na sua análise, que as diferenças de oportunidades de educação entre os rapazes e as raparigas são bastante marcantes. A sobrecarga de trabalho doméstico das raparigas na família, devido ao seu papel de substituta da mãe, é um dos aspectos que afecta a aprendizagem da menina, uma vez que não dispõe de tempo suficiente para a revisão necessária da matéria escolar.
Em quase todas as sociedades africanas, as crianças dos camponeses e dos operários começam a assumir muito cedo, tarefas importantes na vida diária das suas famílias. Aos rapazes são reservadas tarefas tais como cuidar do gado, ajudar na construção, vedação e manutenção da casa e das suas dependências como o quintal, currais, capoeiras, celeiros. Participam na destronca das machambas, na lavoura e sementeira dos campos, na colheita e transporte dos produtos. Quanto às raparigas, as suas tarefas diárias são inúmeras. Realizam uma infinidade de tarefas. Para além de ajudarem nos trabalhos de lavoura sementeira e colheita, são responsáveis pela limpeza e higiene, provisão da água à casa. Cuidam dos irmãos mais novos, cozinham etc.. Estas actividades são consideradas complementares à formação integral das crianças porque para além de ser a sua contribuição no trabalho, representam uma parte vital da educação familiar. Estas actividades são consideradas parte da educação moral consciente, cujo conteúdo entre os dois sexos difere, mas ao mesmo tempo se complementa.
NEKHEMWENE (op cit.) observa que o tempo que resta às meninas para consolidação das matérias escolares é bastante reduzido em relação aos rapazes. As relações de poder, como se pode depreender, começam na família. Os rapazes ocupam, desde tenra idade, posições privilegiadas na distribuição das actividades caseiras enquanto que as raparigas estão mais atarefadas. Poucas são as vezes em que as raparigas têm tempo livre para brincar, contrariamente aos rapazes.
O autor em referência critica as bases educativas que são oferecidas à rapariga na escola oficial. Afirma que elas nada indicam que as propaladas mudanças veiculadas nos discursos oficiais estejam a ser observadas e implementadas em relação ao género. Esta é uma questão bastante importante. O almejado combate à pobreza absoluta que o currículo pretende efectuar, através da escolarização básica obrigatória deveria contemplar a participação das autoridades tradicionais, mestres da educação autóctone tradicional, incluindo os dos ritos de iniciação, para além dos pais na discussão dos problemas que afectam as crianças - com maior ênfase nas raparigas - no rendimento escolar.
Uma discussão entre as "estruturas" gestoras de educação ao nível local (direcções distritais das escolas) com as comunidades poderia resultar num currículo realístico, flexível tendo em conta as realidades culturais, para que os entraves que levam ao desperdício escolar sejam ultrapassados, porque com um currículo "comparticipado" todos se sentiriam comprometidos com o que a escola distribui como conhecimento oficial.
As mudanças na educação precisam de ser radicais e em todos os sentidos. Para as populações rurais que dependem quase em absoluto das suas machambas (camponeses), o calendário escolar é incompatível com o calendário agrícola, uma vez que Outubro-Novembro é o período das sementeiras e Maio-Junho o das colheitas, no norte do país, principalmente, onde a agricultura depende em absoluto das condições naturais. É o período em que as crianças acompanham seus pais às machambas, ou as meninas mais crescidas substituem a mãe, cuidando dos irmãos mais novos e nos deveres domésticos. Tanto no campo como nas periferias urbanas isto constitui um problema, pois as populações praticam uma agricultura migratória. A situação é mais grave no campo: as populações abandonam as suas aldeias indo morar nas suas machambas onde não há escolas. Uma das alternativas para superar o problema seria um grande investimento na construção de lares para o internamento de crianças.
Este problema afecta mais as raparigas. Os pais, sabendo que não há a possibilidade de continuação dos estudos das suas filhas, depois dos ritos de iniciação, nada mais lhes resta senão submetê-las ao casamento prematuro.
A pobreza absoluta em Moçambique tem, também, como consequência para as raparigas, o abandono precoce da escola por causa da gravidez prematura. A gravidez precoce obriga-as a abandonar a escola para cuidarem do seu estado de saúde e do bebé. O sistema de ensino vigente em Moçambique não oferece nenhuma oportunidade para o seu regresso ao ensino. A rapariga é automaticamente marginalizada, uma vez que os cursos nocturnos só existem nas cidades onde há luz eléctrica. Mesmo nestas, a distância entre as escolas e as zonas residenciais não permite que, efectivamente, as raparigas frequentem as aulas.
Nos cursos nocturnos e diurnos, para além dos problemas da insignificância dos conteúdos, métodos e meios, em relação aos contextos culturais, a rapariga enfrenta outro problema: o assédio sexual dos seus colegas e, principalmente, de professores desonestos e corruptos, o que cria condições para as desistências e para a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis incluindo HIV/SIDA entre a população estudantil. Em Moçambique, o nível de incidência da SIDA entre os jovens estudantes é bastante elevado.
Em meu estudo (BONNET, 1986) faço uma descrição dos ritos de iniciação dos rapazes e das raparigas que pode ser considerada uma valiosa contribuição multidimensional para a compreensão da relação existente entre a educação tradicional Macua e a educação oficial. Convém acrescentar que a presente pesquisa pretende continuar o referido estudo, com a diferença de que, enquanto o primeiro tinha como objecto de estudo apenas uma fase da Educação autóctone Tradicional Macua, a dos ritos de iniciação da puberdade dos rapazes e das raparigas, este pretende ser mais abrangente, abarcando a educação tradicional na sua totalidade, isto é, os conteúdos, os métodos e meios de ensino usados na pedagogia autóctone tradicional para transmitir experiências e conhecimentos, incluindo os dos ritos de iniciação.
Neste estudo, corroboro com o estudo de SIFUNA (1990). Antes da chegada dos árabes e portugueses, em 1498, o povo moçambicano, tinha os seus próprios meios de transmitir a sua experiência e conhecimentos aos seus filhos, conforme as suas características de vida, o seu modus vivendi. Experiências e conhecimentos que, no entanto, foram ignorados no passado pelo colonialismo e continuam sendo protelados pelas novas autoridades, na construção do currículo educacional moçambicano, em nome da modernidade e da universalidade. Em meu entender, a universalidade só pode ter significado quando tem em conta a singularidade, a particularidade cultural.
No meu estudo (BONNET, 1996), ponho em destaque um aspecto muito importante: o problema de se conceber Moçambique como um corpo supostamente homogéneo, uma sociedade em que as particularidades não existiriam. Assinalo que Moçambique é um país que integra várias etnias, cada uma com as suas próprias características e cujo saber se reproduz de geração em geração, através da educação autóctone tradicional, a partir da família, e completada pela comunidade. Não excluo as potencialidades da escola oficial. Contudo, os conteúdos que ela transmite ainda não estão ao alcance da compreensão de todas as crianças, uma vez que as particularidades culturais regionais não são observadas, nem contemplados na construção dos currículos existentes, nem na prática escolar.
Se as particularidades são inerentes ao próprio homem e as diferenças culturais étnicas fazem a riqueza do heterogéneo, que se aglutina para produzir a homogeneidade da sociedade moçambicana multicultural, o factor diversidade cultural não é aproveitado para maximizar a aprendizagem das crianças.
A reprodução dessas diferenças ocorre desde os tempos mais remotos, através do ideal educativo de cada etnia, de cada grupo, através da estandardização do que é bom, para o salutar convívio entre os homens, mesmo dentro de cada família, o que permite união, coesão ou constelação de interesses.
As diferenças resultam do modo como aprendemos a ser/estar no mundo. Como fomos acostumados. O costume resulta do hábito de fazer/ser das coisas sem chocar as susceptibilidades do outro. Na referenciada pesquisa (BONNET, op. cit.:25), afirmo que “as diferenças (...) são próprias dos ideais educativos de cada comunidade. Que podemos encontrar diferenças de natureza geral, nos fins, nos métodos, na organização e nos resultados da educação ...”. Não pretendo excluir as diferenças biológicas. Focalizo o papel da educação, sobretudo o currículo como um dos principais pilares na reprodução de valores universais que garantam a existência de visões diferenciadas do mundo e a preservação das culturas populares locais, na luta contra o negativo da globalização: a eliminação das culturas dos povos ditos não civilizados e a imposição ao "outro" de conteúdos culturais ocidentais.
As raízes da cultura autóctone foram e continuam sendo remetidas ao esquecimento, desprezadas e espezinhadas pela cultura branca dominante. O principal desafio da educação em Moçambique é a (re)construção de um currículo que ofereça a oportunidade de resgate e reencontro histórico das culturas, como experiências compartilhadas. Nenhum povo alcança realizar a sua intenção de transmitir o saber secularmente acumulado, senão pela educação, conforme se expressou (CASALI)[39].
Moçambique é um país multiétnico, multilinguístico e multicultural. Aceitar isso é reconhecer que o país, do Norte ao Sul, é um espaço onde convivem as etnias Tsonga, Chope, Tawara, Sena, Chuabo, Chewa, Nyanja, Maconde, Macua[40], com diferentes formas de conceber e realizar a educação. Para reforçar a necessidade da diversidade, registei (BONNET, op. cit.) que
“... em consequência das diferentes interpretações (...) entre as sociedades, deve existir a garantia da diversidade cultural entre os povos, que pode constituir um estímulo para o desenvolvimento harmonioso das sociedades, uma vez que reforça a necessidade de troca de ideias e experiências entre elas” (9).
Aquilo que é diferente no outro não deve ser visto como perigoso de discutir. Ver diferente significa olhar crítico sobre o que nos rodeia. Recear debater o que une os moçambicanos e o que os desune precisa de ser uma prática do nosso quotidiano na construção da cidadania. A unidade na diversidade exige que o currículo seja um ponto de encontro dessa discussão, como nó aglutinador das diferentes vias de construção do conhecimento, para a legitimação e regulação do conhecimento oficial.
O conhecimento oficial deve ser entendido como sendo apenas uma parte do capital cultural duma sociedade que se explicita no currículo escolar, em que cada um dos subscritores (as diferentes etnias) deverá reconhecer a sua quota parte respeitada por todos, seja ela minoritária ou não nessa empresa de construir o novo. O ponto de partida deve ser que nada vem do nada. Logicamente o acto de construir o novo deve ser visto como o acto de reconstruir, reedificar integrar de forma dialéctica, sobre os alicerces do nosso passado pedagógico, passado cultural do qual não nos devemos eximir da responsabilidade de reconhecer, tampouco nos envergonharmos de apregoá-lo como nosso. Não nos devemos dar ao luxo de tentar “zerar” (passe o neologismo) a história, sob a pena de, ao tentarmos deitar a água com que lavamos o bebé recém-nascido, com ela deitarmos o bebé. Não há futuro sem passado. Os erros do passado devem servir de lição no presente, para melhor projectarmos o futuro sistema de ensino em Moçambique.
O colonialismo tentou passar pano limpo ao passado cultural dos moçambicanos e com ele seus ideais educacionais. A factura que temos que pagar por esse erro é bastante pesada. Temos de reconstruir a educação a partir do que resta do holocausto colonial português, de 1498-1975.
O meu referido estudo (BONNET, 1996), sendo especificamente sobre a educação autóctone tradicional, na vertente ”Aspectos Pedagógicos da Socialização da Criança Durante os Ritos de Iniciação da Puberdade” na sociedade Macua, traz à tona importantes subsídios para a compreensão da pedagogia autóctone tradicional do povo Macua que, embora sendo o mais numeroso no universo dos moçambicanos, é, infelizmente, o menos conhecido. As principais conclusões resumem-se em três pontos:
1) A Educação Tradicional revela duas dimensões: por um lado, a noção de continuidade, estabilidade e respeito e, por outro, a dimensão que abarca o conjunto de sabedoria colectiva de toda uma sociedade, de toda uma etnia. É a Educação Tradicional que se encarrega de reproduzir e preservar estes valores ao longo dos tempos, absorvendo, digerindo e seleccionando os inputs do meio que a cerca. É uma posição implícita que revela não ser a educação autóctone tradicional um saber que se tranca a si mesmo. Isto contraria a concepção que dela se fazia e ainda se faz: de algo contrário à "modernidade”, caracterizando-se como estática e resistente à mudança. O que houve ao longo dos tempos foi que a educação autóctone tradicional foi forçada a adoptar mecanismos de defesa com vista à sua preservação, para evitar o seu aniquilamento, face às investidas da força ideológica do colonialismo e dos "modernistas".
2) Somos ainda povos de forte tradição oral. As nossas línguas estão ainda em estudo. Sem esse estudo torna-se impossível toda a tentativa de padronização em termos de escrita. Com o desaparecimento físico de velhos, únicos que detêm o nosso saber cultural sob a forma de usos e costumes, o nosso património cultural corre sério risco de extinção. O resgate das práticas pedagógicas da tradição pode ser uma das formas de evitar a extinção desse património cultural. A história mostra que a modernidade, entenda-se globalização, não inventou nenhuma língua. Contrariamente, tem é contribuído para o desaparecimento de milhares de línguas dos povos ditos de cultura inferior.
Em Moçambique, avultadas somas são gastas na divulgação do Francês e Inglês pelos respectivos governos. Porém, pouco relevantes são os investimentos feitos na pesquisa das línguas moçambicanas. Com excepção do NELIMO (Núcleo de Estudos das Línguas Moçambicanas) e do INDE (Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, poucas são as instituições ou indivíduos singulares que encetaram estudos relevantes sobre o assunto. Se existem, ou não foram publicados ou se existem sob a forma de textos, são pouco conhecidos.
O fraco investimento no estudo das línguas moçambicanas é uma forma subtil de contribuir para eliminá-las, aliás, como está acontecendo em quase todo o mundo. Segundo Ivan IZQUIERDO (1996), estima-se que cerca de 50 línguas não escritas desapareçam anualmente. E, como a diversa cultura linguística moçambicana não escapa ao epíteto de "inferior" porque a sua escrita está ainda no processo de padronização, o fenómeno linguístico é um dos alvos da selvagem «modernização cultural», por isso, incorremos no risco de vermos algumas línguas autóctones moçambicanas a desaparecer paulatinamente.
3) Em conclusão, há objectivos gerais e específicos, organização intencional dos conteúdos, métodos e procedimentos. Isto nega que a educação tradicional seja uma educação dependente do acaso. Dos ritos de iniciação, podem ser resgatados métodos activos, como o psicodramático e o sociodramático. A adopção abrupta de novos métodos, a aprendizagem de uma nova língua (a portuguesa), não facilitam, de modo algum, a adaptação das crianças aos conteúdos que a educação oficial impõe. A educação tradicional autóctone e os ritos de iniciação denotam a presença das áreas de educação hoje universalmente reconhecidas como as principais para o desenvolvimento do homem: educação psicomotora, educação cognitiva, e educação afectiva. Nos ritos de iniciação, o desenvolvimento das habilidades de trabalho tem a sua materialização na ligação entre aspectos teóricos e o saber fazer prático, o aprender fazendo; e, de acordo com BONNET (1996).
“Os métodos directo e intuitivo, durante os ritos de iniciação, contrapõem-se ao método escolástico e dogmático (autoritário, sentencioso) que ainda prevalece em muitas das nossas escolas. O ensino directo, objectivo, aplicado durante os ritos de iniciação, dirige-se não só à acuidade do sentido visual, mas também do ouvido, do olfacto, do paladar, do tacto; em suma, de todos os sentidos. Um dos princípios da didáctica moderna dá a primazia dos sentidos sobre a razão no conhecimento do mundo exterior. Segundo este princípio, o ensino deve começar pelos sentidos. Foi, na base deste princípio, que Coménio[41] formulou o método directo, intuitivo, o princípio de objectividade. Este método consiste em partir das coisas concretas para se chegar às ideias abstractas, colocando as coisas antes das palavras” (69).
Na sua obra "Didáctica Magna", COMÉNIO (1996:43) defende um ensino para todos e a recorrência do processo intuitivo de aprendizagem. Pela progressão das suas ideias pedagógicas, esta obra parece ter sido escrita em nossos dias. Como afirma Joaquim F. GOMES na introdução de "Didáctica Magna" (op. cit.:28), Coménio "morreu como todos os mortais, mas não morreram muitas das ideias do «primeiro evangelista da pedagogia moderna» (...). Ainda hoje, sob certos aspectos, «regressar a Coménio é progredir»[42]
O método de Coménio, o de partir das coisas concretas para se chegar às ideias abstractas, colocando as coisas antes das palavras choca frontalmente com o método utilizado em escolas moçambicanas, onde se prioriza a palavra, o verbalismo, sobretudo nas primeiras classes do ensino primário do primeiro grau EP1.
GOLIAS (1993:27-29), destaca a importância da íntima ligação da educação com as realidades quotidianas da vida, desenvolvendo-se segundo os parâmetros próprios da vida comunitária, o que pode contribuir para o enriquecimento do que se ensina na escola numa sociedade multicultural.
Golias, ao analisar a educação autóctone tradicional, que se desenrola dentro da realidade sócio-cultural, afirma ela ter um carácter polivalente, em que as disciplinas tornam um todo coerente, não fragmentadas como acontece no ensino oficial. Na educação autóctone tradicional, o pragmatismo dos métodos capitaliza os conhecimentos, que são concretos e próximos do quotidiano da criança.
Numa pesquisa intitulada "Educação da Rapariga no Norte", BONNET & IVALA (1999), analisam o impacto da educação autóctone tradicional sobre o ensino oficial, principalmente sobre a presença cada vez mais reduzida da rapariga na escola e concluem que
”(...) olhando para o quadro do plano de estudos do Ensino Primário, depreende-se que se trata de um currículo com pouca possibilidade de flexibilidade. Da primeira a sétima classe, as disciplinas aparecem como sendo de realização obrigatória e não como sugestão que deva ser adaptável a cada realidade (...). A questão que hoje se coloca é se de facto, durante o tempo efectivamente lectivo, o professor dispõe ou não da liberdade de ligar os conteúdos à realidade e vivência dos alunos conforme os interesses destes últimos. Por exemplo, se na zona rural as plantas a estudar podem ser as que rodeiam o aluno (...). Os programas de ensino são concebidos como se todos os alunos tivessem e vivessem sob as mesmas condições (...). Isto leva, à partida, à exclusão das crianças do campo onde vive cerca de 80% da população do país, pois as aspirações desta não são reflectidas” (66).
Face a estas e outras constatações é importante definir conceitos como educação e cultura pertinentes para a pesquisa.
2.3 Educação: algumas definições
Definir a palavra educação não é muito simples como pode parecer. A razão disso está no facto de que a noção de educação emprega-se em diferentes sentidos: sentido social, sentido amplo e sentido restrito. No sentido social a educação é o processo da transmissão da experiência social, acumulada pelas gerações mais velhas às mais novas, com vista a prepará-las para a vida e para o trabalho na sociedade. Nesse sentido a educação, de acordo com FAUCONNET (1972:10), "é a socialização da criança"
A experiência social inclui as normas morais, as opiniões políticas e religiosas, as tradições e os valores, os conhecimentos e as habilidades de trabalho. Neste sentido, pode-se dizer que a educação é uma categoria eterna. Ela surgiu simultaneamente com o nascimento da sociedade e existirá em todas as etapas do seu desenvolvimento porque a sociedade humana não pode desenvolver-se sem transmitir a experiência acumulada de uma geração para a outra. É um dever e um direito de que a humanidade não pode prescindir.
No sentido amplo, a educação exprime o processo de formação da personalidade do homem, que se efectua sob a influência de todos os factores do meio: particularmente da educação propriamente dita, do meio ambiente social, incluindo as influências expontâneas e da hereditariedade.
No sentido restrito, por educação entende-se a actividade intencional, especialmente organizada, orientada para o desenvolvimento da personalidade humana.
As duas primeiras definições da educação são também utilizadas, preferencialmente, em outras ciências sociais e humanas. A última é mais precisa porque acentua o traço mais característico da actividade educativa, pois realça o seu carácter intencional.
A actividade educativa especialmente organizada pressupõe a colocação prévia de objectivos e de tarefas, a selecção dos conteúdos, a indicação dos métodos mais adequados para se atingirem os objectivos, a designação dos moldes especiais e o estabelecimento do controle sobre o processo da sua realização.
Como confirma FAUCONNET (1972:33), confirmando o acima dito, muitas vezes a palavra educação tem, sido empregada em sentido demasiadamente amplo para designar o conjunto de influências que sobre a nossa inteligência ou sobre a nossa vontade exercem os outros homens ou, em seu conjunto, realiza a natureza.
Para Stuart MILL, apud FAUCONNET (op. cit.), a educação é
"tudo aquilo que fazemos por nós mesmos, e tudo aquilo que os outros intentam com o fim de aproximar-nos da perfeição de nossa natureza. Em sua mais larga acepção, compreende mesmo os efeitos indirectos produzidos sobre o carácter e sobre as faculdades do homem, por coisas e instituições cujo fim próprio é inteiramente outro: pelas leis, formas de governo, artes industriais, ou ainda, por factos físicos independentes da vontade do homem, tais como o clima, o solo, a posição geográfica" (ibidem).
Como se pode depreender, a definição de Mill engloba diferentes factos que não podem estar aglutinados no mesmo vocábulo sem o risco de confusão. A influência das coisas sobre os homens, quer pelos processos, quer pelos resultados, é diferente da que provém dos próprios homens; a acção que membros da mesma geração exercem sobre os membros da mesma geração também difere da que os adultos exercem sobre as crianças e adolescentes. É exactamente a última a que devemos chamar de educação.
Na óptica de KANT, «o fim da educação é desenvolver, em cada indivíduo, toda a perfeição de que ele seja capaz». Devemos entender por perfeição o desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades humanas. Alcançar esta harmonia só é possível quando há uma "troca" entre gerações, mas é preciso que uma seja mais experiente que outra, que tenha acumulado suficiente saber para, ao exercer a sua acção sobre a outra, lhe reconheça autoridade suficiente e se deixe influenciar por coerção ou por persuasão.
Mas o problema começa quando essa influência que uma geração exerce sobre a outra pode ser ou não considerada educação ideal. À primeira vista, parece fácil definir educação. Porém, defini-la é uma tarefa bastante complexa, exactamente por envolver o termo ideal que difere de comunidade para comunidade, de sociedade para sociedade. Cada sociedade tem para si um certo ideal do homem, daquilo que ele deve ser, tanto do ponto de vista intelectual, como físico e moral. É um ideal de certa medida igual para todos os cidadãos, que se diferencia a partir de um certo ponto, consoante os meios particulares que cada sociedade compreende no seu seio. É esse ideal, simultaneamente uno e diverso, que constitui o polo da educação (DURKHEIM,1984:16).
Emile DURKHEIM (1956), ao analisar a educação viu-a como uma «coisa social» argumentando que:
“É a sociedade como um todo e cada milieu particular que determina o ideal que a educação realiza. A sociedade só pode sobreviver se entre seus membros existir um suficiente grau de homogeneidade; a educação perpetua e reforça essa homogeneidade ao fixar na criança, desde o início, as semelhanças essenciais que a vida colectiva exige. Mas por outro lado, sem uma certa diversidade, toda a colaboração seria impossível; a educação assegura a persistência dessa necessária diversidade ao ser ela própria diversificada e especializada” (70-71).
Segundo DURKHEIM, a educação é um meio de organizar o Eu individual e o Eu social, o Eu e o Nós ou o Homo Duplex, numa unidade disciplinada e significativa. A interiorização de valor e disciplina é a iniciação da criança na sua sociedade.
Para a definição da educação torna-se necessário apreciar os sistemas educativos existentes ou que tenham existido, confrontá-los, deduzir as características que lhes são comuns. A partir da reunião destas características será possível a definição que procuramos.
Parece-me fundamental a existência de dois elementos para que haja educação: uma geração de adultos e uma geração de jovens, bem como uma acção exercida pelos primeiros sobre os segundos, seja qual for o tipo de sociedade, moderna ou tradicional. Daí que DURKHEIM (1984) defina a educação como sendo
“... a acção exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda se não encontram amadurecidas para a vida social; Ela tem por objectivo suscitar e desenvolver na criança certo número de condições físicas, intelectuais e morais, que dela reclamam, seja a sociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente" (17).
Durkheim remete-nos, assim, para as taxinomias dos objectivos educacionais de Benjamim Bloom (1972) - de que já tive a ocasião de referenciar.
Nas sociedades tradicionais ou étnicas - entendendo como tradicional tudo o que se funda na tradição, como ideias, sentimentos, hábitos, crenças, costumes e aptidões, transmitidos de gerações para gerações - a educação define-se como o processo de transmissão de todo esse conjunto. É o processo de transmissão de toda a informação e experiência sócio-cultural que, ao longo da história, é passada entre gerações, quer através da linguagem oral, gestual e/ou escrita, quer através de actos que identificam de modo particular os membros de uma sociedade.
Como escreveu FAUCONNET (1972:41), da definição de DURKHEIM, acima pode-se afirmar que "a educação não é, pois, para a sociedade, senão o meio pelo qual ela prepara no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria existência" para que, no futuro, possam, por si, ser auto-suficientes em cooperação com os demais membros da sua comunidade e de outras sociedades, para manterem e desenvolverem o que herdaram das outras gerações e que possam também legá-la às gerações vindouras garantido, por sua vez, a existência destas.
De entre estas definições entendo que algumas categorias são uma constante. Termos como desenvolvimento harmonioso, progressivo, maturidade e realização da pessoa remetem-nos também a VEIGA (1999:13), que propõe uma definição aglutinadora. Para ele, a educação é "o desenvolvimento integral, harmonioso e progressivo da pessoa humana, até à sua plenitude".
O ponto de vista de Veiga era também partilhado por muitos filósofos e educadores. Segundo FAUCONNET (1972:11), Kant, Mill, Spencer, também defenderam que a educação é um fenómeno iminentemente individual. A posição destes é o avesso a Durkheim que viu a educação como sendo um facto social e, como tal, uma «coisa social» porque é a sociedade real que determina o ideal de homem real (uno e diverso) que ela necessita. Sem a civilização, o homem não seria o que é. Pela cooperação e pelas tradições sociais é que o homem se faz humano. Tal como defende FAUCONNET (op. cit.), sistemas de moral, línguas, religiões, ciências são obras colectivas, produtos sociais
"... é pela moral que o homem forma em si a vontade, que governa o desejo; é a linguagem que o eleva acima do domínio da sensação; é nas religiões, primeiramente, e depois na ciência, que se elaboram as noções cardeais com que a inteligência vem a tornar-se propriamente humana" (10).
O autor citado no parágrafo anterior, para consubstanciar o que nele afirma, defende que o ser social não se apresenta acabado na constituição primitiva do homem porque foi a sociedade que, à medida que se veio consolidando, pôde tirar de seu próprio seio estas grandes forças morais pois, ao nascer, a criança é portadora apenas da constituição primitiva do homem. Assim, diante de cada nova geração, a sociedade está perante novos desafios, o que a força a novos dispêndios para acção que perpetuamente tem de ser renovada. Por isso, ao ser egoísta que acaba de nascer tem de ser substituído por um outro capaz de submeter-se à vida moral e social. É nisto em que consiste a obra da educação. De acordo com FAUCONNET (op. cit.),
"A hereditariedade transmite os mecanismos instintivos que asseguram a vida orgânica...mas não chega a transmitir as aptidões que a vida social do homem supõe (...). A transmissão dos atributos específicos, que distinguem o homem, se faz por uma via que é social, como eles o são: essa via é a acção educativa" (11).
A obra da educação que se realiza através da acção educativa, defendida quer por Durkheim, quer por Fauconnet, para atingir os objectivos de "distribuidora" do conhecimento oficial, este como capital sócio-cultural, só humaniza quando contextualizado, em que o quotidiano, os saberes locais e o meio cultural circundante, servirem de pontos cardeais que norteiem a sua transmissão e a aquisição. É por isso que defendo que não pode haver educação sem que ela se funde, se enraíze na cultura do povo. Ser-se educado não é apenas ter-se adquirido aptidões técnicas de saber fazer. É, acima de tudo saber-se ser e estar na sociedade em que se vive.
2.4 Conceito de cultura
GEERTZ (1989) defende a necessidade de limitar o conceito de cultura, para que assegure a sua importância continuada, ao invés de debilitá-lo. Defende que, limitando-o, tornámo-lo mais especializado e
"teoricamente mais poderoso para substituir o famoso «o todo mais complexo» de E. B. TYLOR, o qual, embora eu não conteste sua força criadora, parece-me ter chegado ao ponto em que confunde mais do que esclarece" (14).
Geertz apoia-se no facto de Clyde Kluckhohn, através da teorização «pot-au-feu» tyloriana sobre cultura, ter chegado a um «pantanal conceptual», como:
"(1) o modo de vida global de um povo"; (2) o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo; (3) uma forma de pensar, sentir e acreditar; (4) uma abstracção do comportamento; (5) uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente;... (10) um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens..." (ibidem).
Na base desta argumentação de Geertz está o facto de muitos pesquisadores usarem definições que podem induzir a ambiguidades, principalmente o eclectismo que Geertz considera como sendo "uma autofrustração, não porque haja somente uma direcção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher" (ibidem), visto que o eclectismo não passa de uma posição intelectual ou moral caracterizada pela escolha, entre diversas formas de conduta ou opinião, as que parecem melhores, sem observância duma linha rígida de pensamento.
Geertz defende um conceito de cultura essencialmente semiótica, a semiologia vista como tendo por objecto qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuários, ritos, etc.), pois, como Max Weber, GEERTZ (op. cit.:15) acredita que o "o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu", assumindo a cultura como sendo essas teias e a sua análise. Portanto, assume a cultura não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, a busca do significado.
Apesar da oposição de Geertz ao «pantanal conceptual» sobre cultura a que aparenta levar Tylor, vale a pena ler as suas posições, porque, não sendo redutoras, enriquecem o debate na procura acertada do real alcance do conceito de cultura.
MELLO (1983:40), citando Tylor, este remete-nos à seguinte definição: "Cultura é [o] conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Como se pode depreender, se cultura é tudo isso, inclui todo o comportamento humano. Na realidade, a cultura, em sentido largo, é todo o conjunto de obras humanas. É por isso que ela é um factor que permite distinguir o ser humano de outros seres. A diferença reside no facto de ser a inconsciência que domina a actividade animal enquanto que, no homem, a consciência está presente na maioria dos seus actos.
A cultura de qualquer sociedade consiste na soma total e organização de ideias, reacções emocionais condicionadas e padrões de comportamento habitual que seus membros adquirem pela instrução, imitação. E nela, todos, em menor ou maior grau, participam. Para além disso, a cultura é também transformada, mudada e acrescentada pela invocação ou descoberta.
Parece-me muito importante referir que a cultura deve ser tomada em seus múltiplos aspectos, uma vez que, segundo MELLO (op. cit.),
"... seja qual for a sua natureza, para ser conhecida, vivida e perpetuada, tem de ser objectivada ou materializada, isto é, exteriorizada. Isso porque, somente assim, ela pode ser percebida e perpetuada.(...) a cultura, embora seja, em última análise, obra do homem, ela é uma tarefa social e não individual; ela é o conjunto de experiências vividas pelo homem através de mais de um milhão de anos de existência” (42),
Apesar do reconhecimento do papel da sociedade, Mello não pretende excluir o papel do indivíduo na construção desse património social, partindo do princípio de que as sociedades são constituídas por indivíduos. São os grupos de indivíduos que compõem comunidades mais ou menos homogéneos que fazem com que existam traços particulares das culturas, no universo cultural que forma o mundo. Uma etnia faz parte do total das etnias que formam o povo de um país. Por exemplo, o povo que habita Moçambique é constituído por povos de diversas etnias que possuem particularidades culturais distintas, apesar de alguns traços que, ao longo dos tempos, se foram tornando comuns, como resultado da interacção ente elas. Aos traços particulares das culturas dá-se o nome de «valores culturais».
Claude Levi-Strauss, apud Deny CUCHE (1996) define a cultura deste modo:
"Toda a cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos. No primeiro plano destes sistemas colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações económicas, a arte, a ciência, a religião. Todos estes sistemas buscam exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social, e mais ainda, as relações que estes dois tipos de realidades estabelecem entre si e que os próprios sistemas simbólicos estabelecem uns com os outros" (95).
Para que esse conjunto de sistemas simbólicos possa ser perpetuado, e transformado, um papel importante cabe ao sistema de educação. O sistema de educação deve ser uma instituição aglutinadora e responsável pela distribuição equitativa e ética do conhecimento oficial, por ser património cultural local e universal, útil, adaptado à realidade e ao contexto dos povos. Os símbolos só podem ter valor quando os indivíduos reconhecem neles uma utilidade, quando o(s) indivíduo(s) se identifica(m) com eles. É esse reconhecimento individual do valor cultural das coisas que nos permite diferenciar o japonês do brasileiro e este do moçambicano e, entre os moçambicanos, os diferentes valores culturais nas diferentes etnias[43]. ZNANIECKI (1961:94), apud MELLO (1983 ) falando da noção de valor cultural, faz a seguinte distinção:
"Um valor se distingue de uma coisa porque possui um conjunto de significados, enquanto a coisa possui apenas conteúdo. Pelo conteúdo, o valor se distingue como objecto empírico de outros objectos com os quais foi associado no passado. Por exemplo uma palavra de qualquer língua possui um conteúdo sensível composto de elementos auditivos, musculares e (nas línguas que conhecem a escrita) visuais; mas possui também um significado, isto é, sugere aqueles objectos para os quais foi feita para designar" (98).
A cultura pode ser subjectiva, quando nos referimos ao conjunto de valores, conhecimentos, crenças, aptidões, qualidades resultantes do saber e do saber estar. Portanto, as experiências de cada indivíduo. Todavia, quando falo de cultura objectiva refiro todo o conjunto definido por Taylor como quando exteriorizado, por outras palavras, hábitos, aptidões, ideais, comportamentos, artefactos, objectos de arte; em suma, todo o conjunto da obra humana de todos os tempos, qualidades inerentes ao saber, saber ser e saber fazer.
Outras noções importantes de cultura são: cultura material e não material; cultura real e cultura ideal.
Dá-se o nome de cultura material à soma de artefactos (bens manufacturados e invenções de toda a sorte) que resultam de uma tecnologia, isto é , habilidade de manipular e construir. Como lembra BEALS & HOIJER (1971:293), “a cultura material não é, absolutamente, uma parte da cultura, senão tão-somente um resultado ou produto dela”, isto em sentido restrito, conforme a definição de cultura como uma série de normas e temas para guiar o comportamento humano; A cultura não material são acções, hábitos, aptidões, significados, crenças, conhecimentos, etc. Incluirei neste grupo os actos e as acções inconscientes do homem, porque são também providos de conteúdo e significado. Aliás, na interacção, o mais importante não é a intenção, mas a compreensão da mensagem. Em suma, conhecemos as coisas através da percepção, um passo importante do fenómeno cognoscitivo.
Para HOEBEL (1966),
"a cultura real será tudo aquilo que concretamente fazem as pessoas na sua vida quotidiana e social; Cultura ideal é mais o conjunto de comportamento que as pessoas dizem e acreditam que deveriam ter" (215)
Este binómio encontra sua razão de ser na relação inevitável entre cultura subjectiva e cultura objectiva que ocorre nas situações concretas da vida social onde o comportamento do outro é norma para o indivíduo. Autores há que, em lugar de falar de cultura subjectiva e da cultura objectiva, falam de cultura manifesta e cultura não-manifesta para a acuidade dos sentidos do indivíduo.
Por exemplo, a capacidade perceptiva do camponês iletrado na leitura dos fenómenos relacionados com o comportamento animal (a melhor época para a caça e para a pesca, animais em fuga significando queimada, os primeiros sinais do despertar da natureza - o renascer do capim ou folhas viçosas em certas árvores, como sinal de aproximação do período de lavoura e sementeira, etc.) e interpretação do comportamento da natureza (o cheiro metal em brasa ou a acumulação de nuvens douradas, sinal de aproximação de chuva ou temporal, etc.), não resulta necessariamente de acuidade visual superior, mas é parte importantíssima de acuidade dos sentidos do homem na sua relação com a natureza. Vem da habilidade adquirida em compreender o significado desses fenómenos, dependendo das coisas pelas quais a gente aprendeu a se interessar.
As coisas pelas quais aprendemos a nos interessar adquirem um valor com o qual nos identificamos culturalmente. No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos constituem-se em uma das principais fontes de identidade cultural. Isso é que nos permite definirmo-nos como moçambicanos, ingleses, portugueses. Embora essas identidades não estejam literalmente impressas em nossos genes, efectivamente pensamos nelas como se fossem parte da nossa natureza essencial. O filósofo Roger SCRUTUN (1986) argumenta que:
“A condição de homem exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autónomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar” (156).
Em meu entender, mesmo o sujeito considerado moderno, sem um sentimento de vínculo com a sua origem cultural, sem um sentimento de identificação “nacional”, experimentaria um profundo sentimento de isolamento.
Nas sociedades africanas, pode-se afirmar que não existe um sujeito separado da sua origem cultural, do seu grupo. Mesmo aqueles que, à luz do dia, apregoam uma revolução de corte radical com o tradicionalismo cultural por entenderem ser uma forma de impedimento ao rápido ingresso no mundo moderno, de alguma forma, na calada da noite, recorrem aos santuários familiares para a comunicação necessária e vital com os seus defuntos. As sociedades africanas não podem viver sem esse vínculo com os antepassados, sem a ligação com o seu passado cultural.
A história recente da revolução moçambicana, em que dirigentes consideravam tudo o que era tradicional um entrave para a construção do «homem novo», homem socialista, sem vínculo com o passado «vergonhoso e obscurantista» de evocação das religiões tradicionais ou modernas, ou qualquer ritual, é um exemplo típico da dualidade comportamental.
É uma contradição com o que Samora Machel defendia. Ele afirmava nos seus sempre cheios comícios populares que «a cultura é sol que nunca desce». Essa linguagem empolgava os milhares de populares que se deslocam a esses encontros para vê-lo e ouvi-lo, porque marcava uma nova era para o relacionamento entre o povo e as autoridades. Era coisa nova, ouvir alguém dizer, depois da recente história colonial repressiva, que dali em diante as relações entre o Estado e o povo eram novas, que a cultura popular seria valorizada. Contudo, contradizendo esse discurso, para muitos dirigentes da FRELIMO, ir ao curandeiro, frequentar os santuários tradicionais, realizar os ritos de iniciação e a educação tradicional por extensão, não eram actos culturais. Era obscurantismo.
GEFFRAY (1999), ao criticar o comportamento das autoridades moçambicanas, face às atitudes de incompreensão quando o povo realizava e valorizava a cultura secular herdada dos seus antepassados através de rituais, fê-lo com razão.
É que o povo não tem como evitar os rituais, chegada a época da sua realização. Isso chocava com a acção dos representantes do «Estado desenvolvista», porque acreditavam que bastava dizer: "a partir de hoje, aquilo e isto não se pode provar cientificamente. Como Homens Novos que queremos ser, abandonemos o «obscurantismo» e a «superstição»".
Mas, paradoxalmente, na hora em que os seus projectos enfrentassem dificuldades várias, esses dirigentes eram os primeiros a recorrerem às cerimónias tradicionais de reposição. Que ilação podemos estabelecer entre os rituais "Mukuttho" em Nampula (norte) e o "Gwaza Muthini"[44] acompanhado de deposição de farinha para os antepassados, em Marracuene, nas margens do rio Incomáti (no sul do país), que se realizam em todos os anos? Estes são os que aparecem mais à superfície porque há os rituais de «protecção» individuais e familiares, que se fazem na calada da noite, ou nos hospitais autóctones tradicionais existentes em toda a parte do país, como os de ONANGANGARO e WANAKHAMPHITO na Província de Nampula.
Para ilustrar essa tendência do comportamento dualista e da incoerência de alguns dirigentes africanos, face aos hábitos culturais do meio em que eles nasceram e cresceram, onde se fizeram homens através do processo de ensino-aprendizagem autóctone, existem vários exemplos no quotidiano moçambicano.
Numa conferência ocorrida no Hotel Polana (um dos mais "finos" e melhores hotéis da capital moçambicana), que tinha como objectivo discutir o problema da relevância das autoridades tradicionais[45] no estado moderno, Carlos Machili "desafiou" os presentes - entre os quais ministros e outros dirigentes ao pedir que os presentes despissem as camisas, para ver se não se encontrariam marcas de lâminas nos seus corpos, sinais de «vacinas» ou «blindagens»[46] tradicionais ou mesmo amuletos. Isto visava fundamentalmente chamar a atenção dos dirigentes ditos "modernistas" e a comunidade para a necessidade da valorização do passado cultural africano em geral e do moçambicano em particular, em vez de se fingirem combater a tradição nos discursos oficiais e, às escondidas, praticarem o que apelida(va)m de "obscurantismo", pedindo aos seus antepassados para a sua protecção pessoal ou de suas famílias.
Está claro que a intenção de Machili não era a de ver os "discutidores" sem camisas. Presumo que a intenção era a de lembrar aos presentes de que não seria o discurso político "modernista" que mudaria a maneira de ser das pessoas, que era necessário encarar os problemas culturais com mais tacto, pois a realidade cultural africana é diferente da europeia e, consequentemente, ser moderno não significa negar a identidade, a autenticidade.
O culto aos antepassados é típico do homem. O africano acredita, por inerência cultural constitutiva que, seja onde estiver, está acompanhado pelos espíritos dos seus antepassados para o protegerem, dando-lhe sorte nas suas realizações quotidianas (quando o homem cumpre com as suas obrigações rituais), ou para lhe punirem, quando não obedece as regras rituálicas para um salutar convívio entre ele e os seus antepassados. As regras como as cerimónias de veneração (rezas, oferendas como MUKUTTHO ou MAKEIA, sacrifícios) aos antepassados são periódicas e de carácter moralmente obrigatórias. Aplacando a ira dos antepassados e permitindo "salutar convivência" entre os antepassados e os vivos. As cerimónias rituais servem também para a reposição psicológica (optimização do comportamento).
Cada povo tem a sua maneira de lidar com os seus mortos. Isso é inerente a diversidade cultural que caracteriza os povos. Ser diferente é uma questão de direito universal. Nos primeiros anos depois da independência nacional, querer ser diferente foi interpretado como uma afronta à "consolidação da unidade nacional", pois, o ser individual devia ser substituído pelo colectivo. Procurava-se eliminar os interesses individuais para, no seu lugar, nascerem os de grupo.
O direito à diversidade cultural está intimamente ligado aos direitos das etnias moçambicanas que nunca foram discutidos abertamente em nome da "consolidação" da unidade nacional, particularmente os direitos sociais e culturais, num país multicultural como Moçambique.
Acusar o povo de retorno ao obscurantismo por praticar rituais herdados de seus ancestrais é negar ao povo o direito de autonomia que o antropólogo Jorge JENKINS (1986:406-415), referenciado por CENTEÑO (1999:43), interpreta como direitos históricos, sociais, culturais, ideológicos, económicos e políticos.
Os direitos históricos estão directamente relacionados com as demandas tradicionais dos grupos étnicos vistos na sua globalidade, o reconhecimento do direito às terras que no passado pertenceram aos seus antepassados. Para além de permitirem a subsistência, elas também refuncionalizam as tradições culturais. Os direitos históricos referem-se ao direito de resgatar e preservar a tradição histórica de cada etnia: todo o corpo de elementos materiais e espirituais históricos, o que não significa retorno ao passado, senão em uma dimensão que permite encontrar a herança para projectar o futuro.
Moçambique não pode apagar o passado histórico das etnias e tentar construir uma história com base na vontade política de um grupo que detém o poder de momento. A luta armada é, sem dúvida, um marco importante da história de Moçambique. Contudo, a história do povo começou muito antes da revolução iniciada em 1962[47], ela transcende o período da chegada dos colonialistas.
Ainda de acordo com (CENTEÑO op. cit.),
"Os direitos sociais referem-se e ao sistemas de organização, consanguinidade, parentesco e organização familiar e comunitária; o sistema de valores, prestígio social e normas de conduta. Por outro lado, significa[va]m, também, direito à saúde, educação e moradia.
Os direitos culturais se encontram com os direitos históricos ao especificar o direito à língua materna, além das tradições, costumes, festividades, resgate de aspectos esquecidos por repressão cultural e superposições. A dignificação cultural significa que não existem culturas superiores a outras, mas diferentes estágios de desenvolvimento em determinados aspectos da cultura, da arte; o corpo das tradições culturais, mitos e crenças, origens, proibições, festividades que refuncionalizam a identidade cultural, enriquecendo-a. Entre a autonomia cultural está a educação, ainda mais considerando os elevados índices de analfabetismo, o qual se reflectia na falta de técnicos e profissionais, impulsionar a aprendizagem em [português], ademais da própria língua, possibilitar-lhes-ia ter acesso a outras formas de educação superior" (ibidem).
Quando se fala de direitos ideológicos de um grupo sócio-cultural, deve entender-se que neles está incluso o direito a professar seu(s) culto(s) religioso(s).
Os direitos económicos e políticos são tão importantes como os que acabo de referenciar. Porém, não irei discuti-los nesta parte por achar que os mais ligados à presente pesquisa são os acima detalhados, embora reconheça que estes só podem funcionar quando, de facto, os últimos forem observados. Estes direitos de autonomia só podem funcionar quando vistos como um todo e são coerentes com a Declaração de Direitos de Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas das Nações Unidas, de 1992. Dentre os direitos que esta declaração consagra como obrigação de os Estados se protegerem destacam-se, segundo CUÉLLAR (1997), apud CENTEÑO (1999), os de
"Desfrutar sua própria cultura, professar e praticar sua própria língua, participar da vida cultural, religiosa, social, económica e política, além de participar do processo de tomada de decisões relativas à [etnia] à qual pertencem;" (44).
Estes direitos são fundamentais na construção do currículo escolar como conhecimento oficial porque, segundo APPLE (2000:53), a educação está implicada na política cultural do Estado. O currículo nunca é simplesmente uma montagem neutra de conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros e nas salas de aula de um país. Ele sempre parte de uma tradição selectiva, da selecção feita por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja o conhecimento legítimo.
Quando não se colocam no horizonte estes direitos de autonomia, o Estado arrisca-se a, como acontece com o currículo educacional em Moçambique, decidir invariavelmente, definindo o conhecimento detido por um único grupo, como o mais legítimo, como o conhecimento oficial, enquanto o de outros grupos dificilmente chega a ver a luz do dia.
Não me oponho a um currículo nacional. Oponho-me, sim, à forma reducionista como ele é concebido (de cima para baixo) e imposto às escolas e às crianças. Este currículo perpetua as concepções de elite que dão poder a alguns grupos enquanto o tiram de outros. É um currículo que, usando palavras de SERRA (1998:15), "projecta no outro e nas sua práticas uma negatividade substancial e naturalizada, uma negatividade irremediável" porque uma vez que ao excluir contextos vivenciados pelo outro na operacionalização do conhecimento oficial, o proposto pelo Estado como saber oficial, leva o outro à conclusão de que o que sabia antes da escola é um passado dúbio, de que não se deve orgulhar e muito menos evocar.
Parafraseando Carlos Serra, a negatividade substancial e naturalizada, uma negatividade «irremediável» da diferença que vemos no outro, transformam nele num exercício persistente de «essencialismo psicológico». De acordo com SERRA (op. cit. p. 15), "essa concepção (...) elimina a «aventura da diferença», porque exclui invariavelmente no Outro a sua historicidade, a sua capacidade de ser o sujeito produtor e modificador das situações, aquilo que nele é ele não nós", o que conduz a "robotização" cultural, uma vez que promove a alienação da identidade cultural.
Um currículo que não observe direitos históricos, sociais e culturais, está obviamente vocacionado não só a (re)qualificar as elites, mas, a (re)desqualificar o outro. E esse outro, por mais que nos desagrade reconhecê-lo, são os filhos do campesinato e do operariado, classes mais sacrificadas na construção da nação que hoje se afirma Moçambique. Os que pegaram em armas para desactivar o colonialismo, os que produzem a riqueza nacional, são em contrapartida, os primeiros a abandonar a escola, porque o presente currículo não os reconhece como parte integrante da nação multicultural, ao colocá-los apenas como apêndices do processo de educação para a liberdade, para a cidadania.
De acordo com Severino NGUENYA (2000:208), cada unidade cultural tem os seus hábitos e valores, suas danças, canções e cerimónias: Como se organiza a escola para incluir e respeitar estes e outros valores? A única via para garantir que a escola não se afaste culturalmente da comunidade onde está inserida é construir projectos curriculares educacionais que não tenham em conta valores meramente universalizantes, um currículo etnicida, mas que se inscreva também na realização cultural do ethos.
2.5 Identidade cultural e educação
Se partirmos do termo identidade, como o aspecto colectivo de um conjunto de características, pelas quais algo é definitivamente reconhecível, ou conhecido, então podemos aferir que identidade cultural é a identificação de um sujeito ou sociedade a partir de aspectos colectivos de um conjunto de características culturais que o tornam reconhecível como pertencente a um dado grupo.
A definição antropológica indica-nos a cultura como sendo o conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a acção humana individual e colectiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico e que se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida: modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc. Como conceito das ciências humanas, a cultura pode ser tomada abstractamente, como manifestação de um atributo geral da humanidade, ou, mais concretamente, como património próprio e distintivo de um grupo ou sociedade específica.
Outras acepções indicam que a cultura é o conjunto de características humanas que não são inatas e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. Nas ciências humanas, opõe-se, por vezes, à ideia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida colectiva e que é a base das interacções sociais.
Se tivermos em conta a parte ou o aspecto da vida colectiva, relacionados à produção e transmissão de conhecimentos, à criação intelectual, artística, etc., podemos verificar claramente o papel que a educação desempenha entanto que espaço de comunicação e cooperação entre indivíduos nessa produção e transmissão/mediação de conhecimento. E o currículo, como processo de ensino-aprendizagem que decorre na escola oficial, considerado legítimo para a produção de conhecimentos, deveria reflectir uma constante preocupação, para que essa comunicação e cooperação sejam efectivos na construção da identidade.
A cultura, como processo ou estado de desenvolvimento social de um grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores, instituições, criações, etc., civilização e progresso, só pode ser assegurada por um currículo e uma escola integradores.
A cultura, como actividade e desenvolvimento intelectuais de um indivíduo, o saber, a ilustração e instrução, só será possível com um currículo e escola como elementos formadores de uma personalidade conducente à identidade cultural.
O princípio que norteava a educação colonial, era o de uma educação virada para a despersonalização cultural do colonizado, levando-o a assimilar os valores do colonizador. Isto era feito de modo a que o próprio colonizado chegasse à conclusão de que a sua cultura era inferior e que, para ser gente, tinha que mudar de comportamento, da sua maneira de ser, abandonando a sua cultura. Por este meio, pretendia-se perpetuar a dominação em todos os aspectos: moral, cultural, económica, ideológica, etc.
O colonialismo, como sistema de uma classe dominante, devido ao seu próprio poder de perfilar a classe dominada, primeiro recusa a diferença; segundo, não pretende ficar igual ao diferente; terceiro, não tem a intenção de que o diferente fique igual a ele. O que pretende é, mantendo a diferença e guardando a distância, admitir e enfatizar, na prática, a inferioridade dos dominados.
O plano curricular hoje vigente no Ensino Básico em Moçambique desde a independência nacional e, principalmente desde 1983, ano da implementação do Sistema Nacional de Educação, não teve em conta o passado histórico e sócio-cultural do país. Caiu na exaltação e imposição de normas de julgar todos iguais, de uniformizar, ignorando as diferenças culturais regionais, ou fazendo com que elas fossem motivo de o outro (principalmente as crianças camponesas e do operariado), inferiorizar-se por sentir-se envergonhado perante as diferenças do outro que pertence à classe mais privilegiada.
De acordo com o último censo populacional no país, o de 1998, dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que Moçambique tem uma população estimada em 15.740.000 habitantes, sendo maioritariamente constituída por crianças e jovens com menos de 15 anos, resultado de uma taxa de natalidade de 46,1% e uma esperança de vida de 45,5 anos.
Os dados estatísticos oficiais disponíveis, referentes à população, são por vezes muito desencontrados. Tomando como exemplo os dados do MINED contidos no documento Educação em Moçambique, Problemas e Perspectivas (1990:3), Moçambique tem uma população de 15 milhões de habitantes, cuja maioria é constituída por jovens (a idade mediana é de 17 anos). Dos 15 milhões de habitante, 6,2 milhões têm uma idade entre 7-24 anos, isto é, a população em idade escolar.
Os desencontros estatísticos oficiais continuam no PCEB, texto de Agosto de 1990:5, citando o INE (1998:23), onde se diz que, de acordo com o censo de 1997, Moçambique tem uma população estimada em 16.542.700 de habitantes. Portanto, as estatísticas dificultam bastante a percepção do desenvolvimento populacional na área educacional. Por isso, na presente tese, estes números deverão ser analisados apenas como um farol e não como um porto.
A população moçambicana é predominantemente rural, multicultural e multilíngue em consequência dos diferentes grupos étno-linguísticos que a compõe, na sua maioria de origem bantu. Somente cerca de 1,2% da população moçambicana tem a língua oficial (Português) como materna. Cerca de 24% da população moçambicana fala(va) a língua portuguesa como língua segunda e, cerca de 75% apenas as línguas locais. Face à tal panorâmica, não se tem como exigir que o Português seja a única língua de ensino, embora se reconheça a sua importância como língua oficial e aparentemente de unidade nacional.
As línguas locais assumem, assim, uma grande importância para o ensino bilíngue que se impõe estabelecer, como forma de valorizar os conhecimentos e a cultura que os alunos possuem antes de entrarem na escola. A maioria, sobretudo os das zonas rurais, chegam à escola sem falarem Português. Refira-se que, de acordo com MARTINS (1992)
“... a maioria dos linguistas está de acordo em que, mesmo quando o objectivo é de utilizar no ensino uma língua diferente da materna, a política pedagogicamente mais eficaz consiste na utilização inicial da língua materna como língua de ensino, substituído-a progressivamente pela língua alvo” (20-21).
Para a maioria dos políticos, psicólogos, linguistas, sociólogos e psicolinguistas (TUSINE, et alii (org.), 1992) que se debruçaram sobre a problemática da língua do colono, estrangeira, como língua de ensino, referem que ela não é de fácil utilização, porque reflecte uma cultura exógena. Defendem que era de esperar que o Português não fosse indicado como o meio de comunicação mais afeiçoado à expressão clara do pensamento da maioria dos moçambicanos.
O Ministro da Educação Alcido Nguenya[48] reconhece que a maioria dos alunos tem as línguas nacionais como a sua primeira língua e, a não valorização desse aspecto no processo de ensino-aprendizagem, na escola oficial, cria imensas dificuldades para a transmissão dos conhecimentos, por parte dos professores, o que também cria dificuldades no processo de assimilação dos conhecimentos, por parte dos alunos. Por isso, urge a introdução da utilização das línguas nacionais, sobretudo na 1ª e 2ª Classes, porque «está provado» que quanto mais a criança dominar a língua materna, melhor dominará outras línguas.
De acordo com o Plano Curricular do Ensino Básico (1999), as autoridades educacionais reconhecem actualmente que,
"A questão da língua é um dos factores que maior influência exerce no processo de ensino-aprendizagem, sobretudo, nos primeiros anos de escolaridade, na medida em que a maior parte dos alunos moçambicanos que entra na escola pela primeira vez, fala uma língua materna diferente da língua de ensino" (6).
Este reconhecimento explícito pelas autoridades educacionais do país constitui um passo, pois há alguns anos atrás seria quase impossível uma autoridade governamental fazê-lo, deixando transparecer claramente que a política linguística escolhida para o desenvolvimento do sector da educação não fora a mais acertada. O facto de se ter excluído ou protelado o uso das línguas maternas no processo de ensino-aprendizagem revela, por si, que se condenava à exclusão àqueles que entravam para a escola oficia/formal sem falarem a língua de ensino e, consequentemente, a exclusão e a desqualificação do outro estava consumada.
Este reconhecimento explícito trará, como consequência, um outro impacto no seio das populações: a possibilidade de participação na solução dos problemas da educação, sobretudo no fornecimento de subsídios na selecção de conteúdos, métodos e meios, para tornar os currículos educacionais mais significativos, mais relevantes e mais próximos da realidade moçambicana. Portanto, o reconhecimento/assunção permitirá a participação zonal, recuperação etno-antropológica ou paradigma da cidadania e a mudança de atitudes para uma visão do patriotismo (MACHILI, 1998:107).
Acerca da assunção da desqualificação na educação em Moçambique como efeito de desvios, Carlos MACHILI (op. cit.) afirma que,
"A desqualificação do outro é real mas pode ser gradualmente eliminada se for assumida como efeito de desvios intencionais de executores e não do projecto de desenvolvimento da nação" (ibidem).
Ainda sobre a problemática da língua de ensino ser diferente das línguas através das quais as crianças aprenderam as expressar seus pensamentos, o Projecto de Escolarização Bilíngue em Moçambique (PEBIMO, 1996:1), lamenta "que muitas das competência e habilidades, sobretudo a competência comunicativa, adquiridas pelas crianças, antes de entrarem na escola, não sejam aproveitadas".
Aliada à problemática da necessidade de se valorizar as línguas maternas no processo do ensino-aprendizagem em Moçambique, como forma de reconstruir a escola e (re)inseri-la nos ethos, isto é nos diferentes ecossistemas culturais que constituem a sociedade moçambicana diversa, mas unida nessa diversidade, o Relatório das Pesquisas Antropológicas sobre a Interacção entre a Cultura Tradicional e a Escola Oficial, corrobora com o que tenho escrito, quer na minha tese de licenciatura, quer na presente. CONCEIÇÃO, R. et alii (1998:14) afirmam que "há um desfasamento da acção educativa relativamente à cultura e tradições culturais que influi no valor atribuído pelas comunidades à escola e na consequente retenção/abandono escolar".
Não há como separar a educação da cultura, principalmente quando se pretende uma educação libertadora em que o mestre não tem mais o papel de expurgar pela sua acção, em sala de aula, a cultura «inferior» de que o aluno é portador. De acordo com Paulo FREIRE (1998),
“Perguntar-nos em torno das relações entre identidade cultural, que tem sempre um corte de classe social, dos sujeitos da educação e a prática educativa é algo que se nos impõe. É que a identidade dos sujeitos tem que ver com as questões fundamentais do currículo, tanto oculto quanto o explícito e, obviamente, com questões de ensino-aprendizagem”(93).
Impõe-se que se pense na identidade cultural dos educandos e do necessário respeito que a ela se deve na prática pedagógica do educador. O educador que se preze como tal, não se sente superior aos alunos que sabe provirem de uma classe inferior à sua, principalmente os de origem camponesa e operária e tão pouco fica bajulando os que provêm de classes privilegiadas. Paulo Freire, acerca disto, dizia que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. E respeitar esses saberes, é, exactamente, valorizar o conhecimento de que as crianças são portadoras da sua socialização inicial na família e na comunidade. De facto, de acordo com MACHILI (1998:122), "o processo educativo é fecundo se for conduzido em sintonia com valores culturais da população-objecto".
A formação do homem tem de ser integral, permitindo-lhe inserção sócio-cultural e conferindo-lhe capacidades e habilidades para o mercado de trabalho, contrariamente à educação colonial, que visava sobretudo tornar o colonizado apenas útil para produzir bens úteis ao sistema capitalista, de acordo com FREIRE (1999:15), “... formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas”.
CAPÍTULO III
A EDUCAÇÃO AUTÓCTONE TRADICIONAL MACUA
3.1 O sentido educativo da educação autóctone tradicional Macua, na percepção dos entrevistados.
Os dados recolhidos durante o trabalho de campo para a presente pesquisa são bastante ricos em pormenores. Por isso, de acordo como o que escreveu BIKLEN & BOGDAN (1994), os mesmos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas. E porque o meu objectivo é investigar a educação autóctone tradicional em toda a sua complexidade e em contexto natural, depois dos registos das entrevistas, procurei estabelecer e desenvolver categorias de codificação, a partir do que foi dito pelos entrevistados, no que pude observar durante a interacção com as populações nos locais de entrevista e de observação dos ritos de iniciação. Foi a partir das categorias de codificação que pude "unificar" os dizeres e as observações dos vários intervenientes e situações contextuais da pesquisa.
No referente aos eixos conteúdos, métodos e meios seleccionei palavras e frases na procura de regularidades e padrões, bem como de tópicos presentes nos dados. Essas palavras e frases representam as categorias de codificação que me permitiram dar classificação aos dados recolhidos.
Conforme referenciei na apresentação da população e universo da pesquisa, nos locais de entrevista e observação foram entrevistados anciãos, autoridades tradicionais relevantes, pais, professores e mestres dos ritos de iniciação, principalmente sobre aspectos relevantes da educação tradicional autóctone Macua, incluindo os ritos de iniciação, considerados o apogeu do processo educativo autóctone tradicional Macua. Fundamentalmente, constituíram, tema das entrevistas e da observação durante o trabalho de campo os conteúdos, métodos e meios na transmissão das experiências/conhecimentos entre as novas gerações.
Assim, para permitir a distinção e codificação dos dados recolhidos quer das entrevistas e da observação no terreno, formei três grupos a que designei:
A) Pais.
B) Mestres dos ritos de iniciação.
C) Professores.
Para cada um dos grupos alvo constitui um roteiro de entrevista, que consta dos apêndices.
Nestes grupos foram seleccionados 7 pais e encarregados de educação, 4 Mestres dos ritos de iniciação de puberdade e 5 professores cujos requisitos obedecem os critérios anunciados na selecção da população alvo (os entrevistados são pais que passaram e submeteram seus filhos à educação autóctone tradicional, incluindo os ritos de iniciação; os mestres dos ritos de iniciação entrevistados são, necessariamente, de uma idade superior a 42 anos, porque o entrevistado tem que ter vivido o colonialismo e possuir memória dos acontecimentos anteriores e posteriores à independência nacional, ou seja, ter pelo menos 18 anos em 1975. Este critério foi também estendido aos professores entrevistados, pelas mesmas razões apresentadas para a selecção dos mestres da educação autóctone tradicional.
No grupo "A" foram entrevistados 7 pessoas, conforme a tabela que se segue.
Pais e encarregados de educação entrevistados
Nome do entrevistado
Sexo
Idade
Nível de escolarização
Data
Local da entrevista
António da Silva Domingos
M
49
2ª classe
7.10.2000
Murrupula
Rosa Paulo
F
42
Primário
7.10.2000
Murrupula
João da Rocha
M
68
Secundário
14.7.99
Natikhiri
José Marinho MPHAVARA
M
44
Primário
Fev. 2000
Cidade de Nampula
Ramalho Muhapa
M
45
Primário
14.7.99
Marrere
Jambo Puchehe
M
76
Primário
03/03/2001
Lumbo
Amade Assane
M
72
Primário
03/03/2001
Lumbo
Fonte: autor.
Segundo o roteiro de entrevista, António da Silva DOMINGOS, de 49 anos de idade, pai de 3 filhos, natural da localidade de Muquela, distrito de Murrupula, acha que a educação autóctone tradicional tem como principais conteúdos a moral, o trabalho prático relativo ao trabalho doméstico, construção e manutenção de casas, sequeiros, celeiros além de estratos para a arrumação de utensílios vários (infra-estruturas). Na educação tradicional, o ensino é integral, sem interrupção. No período entre 5-10 anos, as crianças aprendem a ajudar os pais nas tarefas do quotidiano e na produção para a subsistência da família (ERUKULU); as crianças aprendem em todo o momento, exceptuando nas horas em que dormem. As crianças não aprendem sobre a vida, aprendem a própria vida.
Durante os ritos de iniciação tem lugar a aprendizagem mais elaborada. Os rapazes depois dos ritos de iniciação voltam feitos "homens" e as raparigas saem "mulheres".
As crianças aprendem fazendo. Elas aprendem dos pais, fazendo, praticando o que lhes é dito para fazerem e o que vêm dos pais e os mais velhos fazendo. Os meios de aprendizagem na educação tradicional são objectos e utensílios do dia-a-dia.
A escola moçambicana actual é mais teórica que prática. O entrevistado DOMINGOS é corroborado por muitos dos pais entrevistados que defendem que nas primeiras classes devia-se ensinar às crianças o valor das nossas culturas, o modo de ser e estar das gentes, a importância dos ofícios, como o de carpinteiro, pedreiro, alfaiate, e mais. Portanto, tudo o que lhes pode ser útil no futuro em termos de profissões de "base".
A educação escolar deve ser tarefa de todos no sentido de continuidade do trabalho dos pais na família, estendendo-se até à escola, ao trabalho do professor. A comunidade deve também participar na educação, unindo-se aos esforços de todos os agentes educativos (pais, família, comunidade, escola, instituições humanitárias e religiosas).
O entrevistado António da SILVA afirma que a prática, a ligação entre o que crianças aprendem e o que a vida exige, seria capaz de enriquecer os ensinamentos da educação escolar; a educação de casa é o ponto de partida para a vida da pessoa no futuro. Antes, a educação tradicional separava as crianças por sexo na aprendizagem: os homens aprendiam tarefas próprias dos homens e as mulheres, tarefas para mulheres. Contudo, não se pretendia com isso inferiorizar um em relação a outra. Pretendia-se apenas demonstrar que havia tarefas e obrigações específicas para cada um na sociedade. Era uma educação para a responsabilidade.
A entrevistada ROSA Paulo corrobora com que os outros pais dizem a cerca da importância dos saberes locais na formação da personalidade das crianças. Defende que a educação oficial deve ter em conta esses saberes e acusa a educação escolar de desenraizar culturalmente as crianças, pois, forma para a ruptura entre elas e o ethos, porque ensina-as a desprezar o passado dos pais.
Os entrevistados José MPHAVARA, Ramalho MUHAPA, Jambo PUCHEHE e Amade ASSANE corroboram na necessidade de respeitar as diferenças culturais regionais e acreditam que ser diferente é próprio da natureza e, exemplificam recorrendo a existência de diferentes plantas, árvores, animais, cores, etc. Defendem que a educação escolar devia ser um meio para a realização do homem no seu campo existencial, cultural e político. Reconhecem que os valores universais são muito importantes, mas que devem ser adaptados à realidade moçambicana nas suas diferentes manifestações de vida.
Os entrevistados do grupo B), “Mestres dos ritos de Iniciação” para além de Aquilino CORRENTE, conhecido por NAWIIREYE e de YAPATERRO, muito referenciados em BONNET (1996), por serem nomes sonantes nos ritos de iniciação na Província de Nampula, entrevistei os mestres Ernesto ARMANDO, mais conhecido por YAMPWISSI e OHANO IAMPHUWA.
Mestres dos ritos de iniciação entrevistados
Nome do entrevistado
Sexo
Idade
Nível de escolarização
Data
Local da entrevista
Aquilino CORRENTE
M
Primário
01.01.2000
Rex/ cid. Nampula
Sebastião MUTHUPI
M
Primário
01.01.2000
Rex/ cid. Nampula
Ernesto ARMANDO
M
57
Primário
12.01.2001
MPHAVARA/Kharrupeia
OHANO YAMPUHUWA
M
56
O7.10.2000
Murrupula
Fonte: autor.
No grupo C)"PROFESSORES" foram seleccionados, dentre os vários, como no grupo anterior, cinco entrevistados.
Professores entrevistados
Nome do entrevistado
Sexo
Idade
Nível de escolarização
Data
Local da entrevista
Celestino GIRIMULA
M
43
Médio
9.07.2000
Nampula
Carlos WARUMA
M
58
Médio
9.07.2000
Nampula
Daniel Augusto MUKHORI
M
52
Médio
9.07.99
Nampula
Bernardo ERICA
M
60
6ª Classe
03/03/2001
Lumbo
Ricardo S. OLIVEIRA
M
58
Médio
10.07.2000
Nampula
Fonte: autor
As questões colocadas a estes entrevistados são referentes a esta população alvo, já referenciada. Assim, as respostas a seguir registadas obedecem à sequência do roteiro.
Celestino GERIMULA, de 43 anos de idade, tem 26 anos de serviço na educação. Foi, até 1999, director dos Recursos Humanos na Direcção Provincial de Educação de Nampula.
Ele diz que o SNE enferma de muitos males desde a sua concepção, principalmente no referente à selecção dos conteúdos e a sua execução prática. Entre os problemas que levam à agudização de taxas de reprovação, desistência e repetência no Ensino Básico podem ser indicados os seguintes: nas zonas rurais a distância entre a escola e as zonas de residência são bastante grandes, o que inibe a efectividade das crianças na escola; o custo de vida é bastante elevado, o que dificulta a frequência das aulas por causa da fome; a estrutura do currículo do ensino é bastante limitada, com conteúdos irrelevantes, o que leva a que as pessoas não acreditem no futuro a partir dos estudos. Para suprir as necessidades do dia-a-dia, os pais encorajam o(a)s filho(a)s a abandonar a escola, para se dedicarem a pequenos negócios (rapazes) e a casarem-se (raparigas), a fim de ajudarem a família.
GERIMULA afirma que, relativamente aos conteúdos, o ensino oficial deveria falar da vida real através da prática social, para influenciar os alunos na aprendizagem, ligando os aspectos teóricos aos aspectos práticos da vida.
Os ritos de iniciação constituem o apogeu da educação tradicional. Por eles se ensina a moral, o respeito ao próximo e aos mais velhos. Nos ritos de iniciação as crianças aprendem tudo sobre a vida. A escola oficial devia aproveitar tudo isto para, em primeiro lugar, melhorar o significado do que se ensina em relação ao contexto concreto em que vive o aluno e, consequentemente, melhorar a vida das comunidades, uma vez que, o que ele aprendesse na escola, poderia encontrar aplicabilidade na vida real, na sua aldeia, na sua comunidade.
3.2 Funcionamento do sistema de inclusão social e cultural das crianças e adolescentes.
Para a percepção do sistema de inclusão social e cultural das crianças e dos adolescentes, começarei por apresentar e caracterizar alguns conceitos de uso corrente em Moçambique, os mais específicos para o estudo, enquadrando-os no funcionamento da sociedade Macua a começar pela sua organização social.
O homem Macua, como ser social, não vive isolado, nem se pode conceber sozinho no mundo. Longe da sociedade, o Macua sente-se desorientado, porque a sua força reside na sociedade, longe da qual se sente alienado. Para o Macua, «ser» implica necessariamente «estar em relação com os outros».
De acordo com MARTINEZ (1989:61), "no indivíduo existe também um centro pessoal e não transferível, que se auto-realiza completamente na medida em que está aberto à relação e se relaciona de facto com outros seres".
Por isso, para compreender qualquer aspecto do povo Macua, é preciso conhecer adequadamente as suas estruturas sociais e políticas, as quais estabelecem as relações humanas.
a) Estrutura social Macua:
Para a descrição da estrutura social da etnia Macua, recorro aos escritos de do padre Francisco Lerma MARTINEZ (1989) que, entre outros europeus que estudaram a etnia em referência, revela isenção de paixões racistas, procurando apenas narrar os factos sem denotar o cunho eurocentrista na percepção dos fenómenos observados. Talvez o facto de ser padre aliado ao facto de ter escrito a obra em referência no período pós-independência o tenha liberto da carga de complexos de superioridade de que padeciam Soares de CASTRO (1941); Abel dos Santos BAPTISTA (1951) e A J. de Mello MACHADO (1970) em cujas obras, ao tentarem descrever o Macua denotam uma visão reducionista e reaccionária típica de colonialistas mal intencionados.
Portanto, recorro à Martinez para consubstanciar o que vivo, como fonte para testemunhar com um outro olhar, o que descrevo sobre a minha sociedade. Por isso, de acordo com MARTINEZ (1989),
"A sociedade Macua é constituída por uma justaposição de unidades familiares formadas por grupos de parentes unilineares, uxorilocais e exogâmicos. As linhagens ou segmentos clânicos são a base da estrutura social e da organização política e económica" (ibidem).
O indivíduo que pertence ao mesmo grupo uterino do ego designa-se Mmusi (plural: amusi), isto é, parente. Na socialização inicial da criança as relações de parentesco são muito importantes. São a primeira aprendizagem a que ela é submetida. Veremos, mais tarde, como se processa a integração dos jovens nesta complexa rede de relações de parentesco e o sentido que isso toma na sua cosmovisão.
O povo Macua é matrilinear. A matrilinhagem é constituída por NLOKO.
O termo NLOKO (plural: maloko), designa um grupo de filiação em que todos os membros se consideram descendentes, em linha uterina, duma antepassada comum conhecida e nomeada. Na sociedade Macua, cuja filiação é uterina, os filhos fazem parte do grupo de parentesco da mãe. Localmente, o NLOKO constitui-se em unidades mais pequenas designadas ERRUKULO.
O termo ERRUKULO (plural: irrukulo) significa barriga ou ventre. Designa um ramo de NLOKO, constituído por indivíduos que descendem de uma avó ou bisavó comum, conforme disse nos parágrafos anteriores. Portanto, na sociedade Macua a consanguinidade verdadeira é determinada pelos «irmãos do mesmo ventre» (ERRUKULO), membros autênticos da linha materna (MARTINEZ ibidem).
Todos os membros do conjunto de unidades uterinas (NLOKO) usam o mesmo apelido familiar, chamado Nihimo.
O termo Nihimo (plural: mahimo) é equivalente ao matriclã. Designa um conjunto de indivíduos que se consideram saídos unilinearmente em linha materna de uma antepassada mítica comum. Deriva do antepassado fundador do Nikholo (o condutor), o antepassado que conduziu o povo ao lugar onde actualmente se encontra; Este fundador é especialmente recordado nos ritos.
A pertença ao Nihimo adquire-se, normalmente, pelo nascimento e, duma forma geral, para toda a vida.
Na sociedade Macua, de filiação uterina, os filhos fazem parte de um grupo de parentesco da mãe. No passado, a qualidade de membro do Nihimo adquiria-se também por adopção, em especial de cativos ou de escravos. O Nihimo não está ligado a nenhuma área bem definida e só os seus segmentos têm realidade espacial: está disperso por várias localidades não contíguas.
O Nihimo é exogâmico e atotémico. Os mahimo dos amakhuwa (singular: Mmakhuwa) têm nomes próprios por que se distinguem uns dos outros. De acordo com o estudo de MARTINEZ (1989), CASTRO (1941) foram registados cerca de cinquenta mahimo Macua. Contudo, pelo «Mito do monte Namuli», todos são "irmãos", pertencem à mesma família, aquela que tem origem no mesmo monte e se multiplicou.
Como se pode depreender, o povo Macua é formado de vários grupos, sendo de destacar o grupo Macua do interior, Macua-metto e Macua-lòmwe. Há ainda subgrupos mais pequenos conhecidos por grupos de Rovuma, grupo Chaca, grupo Chirima e grupo Macua do litoral.
Segundo MARTINEZ (op. cit. p. 38), apesar da existência de vários grupos e subgrupos que formam o povo Macua, há entre eles uma unidade que é fundamentada pelos seguintes factores.
Unidade de origem - as tradições que nos transmitem o mito sobre a origem do mundo e do homem recolhidas nos vários estudos feitos sobre os Macua, nos últimos anos, referem-se à unidade original dos Macua, presente no «Mito do monte Namuli», comum a todos os grupos. Todos os Macua se referem ao Monte Namuli, de 2419 metros de altura, situado na serra do Guruè à norte da Província da Zambézia, como centro e lugar originário primordial.
«O mito do monte Namuli» conta-nos que o homem recém-criado olhava todos os dias à sua volta a extensa planície, bela, com toda a exuberância da espécie de vegetação. Um dia, na procura de satisfazer a sua curiosidade, decidiu descer o monte. Tropeçou, caiu e feriu-se tendo permanecido desmaiado por muito tempo. Ao acordar viu o seu sangue que, ao mistura-se com as águas de um riacho ali existente, formou um ser semelhante ao seu corpo: era a mulher! Assim nasceu o primeiro homem (MULOPWANA) e a primeira mulher (MUTHIANA). Da união conjugal deste primeiro casal nasceram outras pessoas que com o tempo, se multiplicaram e conquistaram novas terras. Esse povo era o povo AMAKHUWA. Este mito está sempre presente nos momentos mais importantes do ciclo vital: aparece na iniciação, nos ritos de cura, nos funerais, etc.
Unidade linguística - entre os diferentes grupos Macua há também diferenças dialectais; no entanto, como ramos de uma árvore frondosa, todas essa variantes dialectais pertencem à mesma árvore mãe: a língua emakhuwa. A prova desta unidade linguística, como explica o padre António P. PRATAS (1960:2), na sua Gramática da Língua Macua (e Seus Dialectos), são os nomes das pessoas, dos montes, dos rios, muitos deles derivados de nomes de animais e plantas, e toda a toponímia fundamentada em tais nomes. C. MAPLES (1880:), um pioneiros no estudo da língua emakhuwa, escrevia já no século passado:
"Dentro da [etnia] Macua, reconhecemos a existência de várias subdivisões, onde cada uma das subdivisões tem a sua e distinta marca de tatoo, mas possui uma língua comum que a une, pois as variações dialectais são notoriamente pequenas" (340)[49].
Homogeneidade Cultural - o estudo comparado da vida dos diferentes grupos Macua manifesta o pluralismo de formas e expressões culturais existentes nos respectivos grupos, devido ao desenvolvimento histórico próprio e á influência dos povos vizinhos. Trata-se de diferenças locais dentro de uma unidade cultural mais ampla, a sociedade Macua, reconhecida pelos estudos feitos.
b) Organização familiar
Num passado não muito distante, a organização sócio-familiar dos Macua era baseada no parentesco definido pela via uterina. O grupo de familiares uterinos compreendia todos os indivíduos de ambos os sexos, adultos ou crianças, convictos de que descendem por aquela via, de uma mesma antepassada. No sentido mais lato, havia o Nihimo, termo aceite por todos os que se dedicaram ao estudo deste assunto (Soares de CASTRO, 1941; Abel dos Santos BAPTISTA, 1951; A J. de Mello MACHADO, 1970; Francisco Lerma MARTINEZ, 1989, entre outros), para corresponder ao clã, um agrupamento de todos os indivíduos dispersos pelo vasto território étnico[50].
Quando falo de família, conceito empregue não no sentido que se lhe atribui na civilização ocidental, falo dum grupo dentro do qual pode decorrer a produção de meios de subsistência e a reprodução social, constituído por uma mulher, suas filhas casadas ou solteiras, filhos menores e filhas destas. É a este núcleo que se designa por ERRUKULO (barriga ou ventre). Assim, todos são pertencentes a uma avó comum, nascidos da mesma "barriga". Os filhos varões, atingida a maioridade, abandonam a aldeia e vão procurar mulheres em outras unidades familiares uterinas. Entre os Macua a exogamia era, e é hoje, rigorosamente observada.
A autoridade familiar pertence ao tio materno (ataata/plural: ashitaata). Na sociedade Macua, o avunculato é muito forte. Não se trata de matriarcado, pois em cada grupo familiar (NLOKO) há um homem que manda. Esse homem é o tio materno mais velho, quer dizer, o irmão uterino mais velho da mãe de um determinado ego.
Segundo MARTINEZ (1989)
"O conjunto de vários tios (ashitaata), formam o grupo de pessoas mais importantes, «os anciãos». O decanos destes é o chefe da linhagem, que recebe o nome de Nihumo (no plural, Mahumo).
Cada grupo familiar (NLOKO) possuía o seu território, recebido por herança do antepassado fundador. Este era chamado, genericamente, Nttethe (território linhageiro), e era acompanhado de um nome próprio. Os nomes que indicavam o lugar de origem de um determinado NLOKO, juntamente com o apelido (Nihimo), eram elementos decisivos para a identificação dos membros de uma linhagem.
A utilização do próprio território podia ser cedida a outros grupos familiares. Estes territórios podiam reconhecer-se por algumas características geográficas (rios, montes, bosques, lagoas, etc.)" (63).
Na sociedade Macua, o nascimento de uma criança é um dos acontecimentos mais importantes da vida. Ela é desejada e é motivo de regozijo. Os pais, os membros da família, a comunidade e a sociedade em geral, porque todos amam a vida e desejam que ela continue, cada vez que uma criança nasce é motivo de esperança da continuação e engrandecimento da etnia. Para MARTINEZ (op. cit.),
"... Um outro filho significa, para a família e para a sociedade, a esperança concreta de que a vida não acaba, é sinal de que os antepassados continuam a ser intermediários entre a fonte da vida e a sociedade. Por isso, o nascimento de uma criança é motivo de festa para toda a comunidade, dia de alegria para todos" (89).
Tanto o nascimento da criança como a sua (re)integração pelos ritos de iniciação, considerados entre os Macua dia do segundo nascimento, são momentos de festa em toda a comunidade.
A responsabilidade pelas crianças cabia ao tio materno mais velho porque na sociedade Macua o pai biológico é estranho à família clânica, para a qual havia vindo para se casar e para contribuir, como é óbvio, para o aumento dos efectivos do grupo familiar da sua mulher.
A educação dos filhos na tenra idade cabia às mulheres (da família uterina), em primeiro lugar da mãe. Os rapazes, uma vez atingida a "puberdade" (5-10 anos), conforme expliquei na fase introdutória, eram submetidos aos ritos de iniciação, processo que completava a socialização dos jovens, iniciado na família desde o seu nascimento, e serviam para, paulatinamente, irem sendo integrados social e culturalmente.
A socialização das raparigas começa muito mais cedo do que a dos rapazes, visto que a divisão de actividades por sexo é, logo de início, vincada. O sistema de inclusão social e cultural da rapariga tem início desde o seu nascimento. Muito nova ainda e porque sempre ao pé da mãe ou da avó, vai vivendo a vida duma mulher na sua sociedade. O rapaz, até mais ou menos atingir os cinco anos, terá "perdido muito tempo", antes de se iniciar nas lides próprias de varão. Apesar de a rapariga ser submetida aos ritos de iniciação mais tarde, com o aparecimento da primeira regra, a sua iniciação acontece para confirmar a sua integração. Os ritos apenas sancionam, legalizam o estado de adulta, porque o processo da sua integração vinha-se desenrolando.
Os ritos de iniciação de puberdade femininos são conduzidos exclusivamente por mulheres adultas (já submetidas aos mesmos ritos). Contudo, como expliquei na introdução, os conselhos de iniciação (IKANO) podem ser orientados por um mestre. Durante os ritos de iniciação, as raparigas aprendem os segredos da vida feminina, são iniciadas nos papéis de mulher, esposa e mãe.
As relações de parentesco são os primeiros "conteúdos" por que a criança é introduzida no sistema de inclusão, um longo processo que começa na família e tem continuidade na comunidade. Na sociedade Macua, a educação é tarefa de todos os membros adultos. Ser adulto significa ter passado pelos ritos de iniciação e ser reconhecido idóneo. Educa-se pelo bom exemplo, pela prática diária de atitudes socialmente correspondentes às expectativas do que é considerado ideal naquela sociedade.
O ethos, como tudo aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos, de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou manifestações culturais, parte do que tenho vindo a escrever nestes parágrafos correspondentes ao sistema de inclusão sócio-cultural, marca profundamente a educação autóctone tradicional a sociedade Macua.
3.2.1 O processo de educação autóctone tradicional Macua, da 1ª à 2ª infâncias
À semelhança do que ocorre em muitas etnias, a educação entre os Macua está relacionada, em cada um dos seus aspectos, com a vida colectiva em suas múltiplas dimensões.
Segundo MELIÀ (1979:12), "a educação indígena é ensinar e aprender cultura, durante toda a vida e em todos os aspectos. Por isso, a análise do sistema educativo de um povo indígena vem a confundir-se com o total da sua cultura". É que torna-se difícil estabelecer a fronteira entre o processo educativo e o decorrer da própria vida. Por isso, segundo SCHADEN (1976), apud MELIÀ (op. cit. p. 13), "para compreender o processo educativo numa [etnia] qualquer, seria necessário, a rigor, conhecer a fundo o sistema sócio-cultural a que ela corresponde". Eis a razão porquê comecei este capítulo caracterizando, embora resumidamente, os principais conceitos da organização sócio-cultural Macua.
Não é fácil estabelecer uma delimitação exacta da faixa etária no processo educativo autóctone por ele ser complexo. É quase que impossível estabelecer uma faixa de idade para a aprendizagem de um ou outro elemento da cultura e também separar a aprendizagem de um aspecto cultural de outro. A maior dificuldade reside, talvez, no facto de o povo Macua ter permanecido muito tempo iletrado, pois é predominantemente de tradição oral. Essa falta de sistematização por escrito deu azo às posições dos cronistas europeus que SIFUNA (op. cit.) criticou, pois confundir deliberadamente instrução e educação, na análise da educação autóctone africana, é miopia intencional com fins racistas e eurocentristas.
Tendo em conta as dificuldades acima referenciadas, adopto MELIÀ (op. cit.) que considera três etapas no processo educativo autóctone: a primeira seria a socialização, que assimila o indivíduo dentro da vida da etnia; a segunda, ritualização enquanto integra o indivíduo numa ordem simbólica e religiosa mais específica. As duas primeiras etapas vêm alimentar-se do que é tradicional, ao mesmo tempo que perpetuam essa tradição. A terceira etapa é a historização, quando a pessoa assume inovações que permitirão a sua auto-realização e, às vezes, o exercício de funções específicas únicas e singulares dentro da própria comunidade. Por exemplo, neste caso específico, a chefia (NIHUMO) da linhagem ou do clã. A função de chefia linhageira é hereditária, passa de tio uterino para sobrinho. Conforme BONNET (1996:13), "... nesta sociedade o tio materno é [o] principal tutor dos seus sobrinhos nos assuntos relacionados com a educação, casamento, herança e residência, enquanto que o pai é visto como aliado".
De acordo com FERNANDES (1975:36), a «inovação» e a «tradição», interpenetram-se de tal modo que uma conduz a outra. Daí poder-se afirmar que, a) toda a inovação, por mais radical que seja, se ancora no passado e se nutre de potencialidades dinâmicas contidas nas tradições; b) a inovação já nasce, culturalmente, como tradição, como «experiência sagrada» de um saber que transcende o indivíduo e o imediatismo do momento.
Por isso, na sociedade Macua, a criança da primeira infância, que situaremos entre os zero e os três/quatro anos, com muita frequência, não é objecto de especificação sexual, com excepção dos adornos e da indumentária que vai sendo gradualmente diferenciada. Linguisticamente, usa-se o termo comum MWANA, para indicar o infante menino ou menina. A educação de hábitos motores, o estreito relacionamento com a mãe constituem, geralmente, as principais características neste período.
Na segunda infância, o processo de aprendizagem apresenta dois marcos: actividades imitativas da vida adulta e o jogo. Segundo BONNET (op. cit.)
"Estas actividades imitativas e jogos preparam a criança para a vida real e contribuem para o desenvolvimento da sua agilidade psicomotora e das suas faculdades de observação e invenção. Constroem seus conhecimentos a partir da manipulação de miniaturas da realidade" (10).
Acerca do assunto, MELIÀ (1979.) afirma que é
"... [uma] imitação da vida do adulto pelo jogo e a imitação pelo trabalho participado. A criança indígena faz em miniatura o que o adulto faz. Vive no jogo a vida dos adultos. Aprende as actividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire as habilidades de usar e fazer instrumentos e utensílios de seu trabalho, de acordo com a divisão do sexo" (14).
De acordo com essa divisão, os rapazes, imitando actividades dominantes como a caça, pesca, cestaria, navegação, etc., fazem lanças, flechas e arcos, fisgas, montam armadilhas; constroem palhotas, carrinhos de caniço, esculpem em barro; imitando a mãe, as raparigas pilam e peneiram cereais imaginários ou reais, fazem "comidinha", constroem seus adornos, brincam de mães com suas bonecas amarradas com capulana às costas, de donas de casa, professoras, etc.
3.2.2 O processo da educação autóctone tradicional Macua, da 2ª infância à puberdade
A segunda infância do rapaz e da rapariga não decorre da mesma maneira, como se pode depreender do exposto nos últimos parágrafos, embora deva acrescentar que nem mesmo na primeira infância teriam sido iguais.
No rapaz, é quase impossível, conforme disse, estabelecer a fronteira entre a segunda infância e a puberdade, porque ambas subsistem no mesmo campo de desenvolvimento da personalidade e na ambivalência da simultaneidade de ser/estar, ao mesmo tempo criança e "adulto" em construção, pela socialização. Isto é, o rapaz, até os cinco anos pode, pela lei do consuedutinário, adquirir o estatuto de adulto. Até cinco anos ou mais, só continua criança aquele que não foi submetido aos ritos de iniciação. Como podemos ver, um menino de 5 anos, depois da iniciação, na sociedade Macua, já não é criança. Mas, em termos de idade cronológica e fisiológica, ele é ainda criança. Em termos de idade mental e cultural, o rapaz é adulto e a sociedade reconhece-o como tal, com todos os direitos e deveres inerentes. Porém, o rapaz "adulto" brinca entre seus coetâneos em uma situação em que a "criança" dentro de si convive com o "adulto" na mesma pessoa. Não se trata de dupla personalidade, mas sim de personalidade integrada.
Impõe-se dizer que essa "convivência" é rigorosamente acompanhada pelo seu principal tutor, seu tio materno, pelo padrinho de iniciação, além da comunidade, para que o comportamento do rapaz, traduzido em atitudes, seja adequado ao seu estatuto de iniciado, de "adulto".
No rapaz, a puberdade surge com a iniciação, ou seja, com a sua participação nos ritos de iniciação da puberdade, designados por MASSOMA, que se supõe uma educação intencionalmente organizada, relativamente intensiva, onde o rapaz é preparado para a vida, conforme veremos mais adiante.
Na rapariga, como fiz questão de referenciar, a puberdade é biológica, isto é, a maturidade fisiológica revela-se quando a rapariga "apanha" a primeira regra menstrual, que serve de sinal à mãe, como tendo chegado o momento para a realização dos ritos de iniciação.
Esta é uma fase intensa de jogo. A criança brinca de trabalho e aprende a encarar de frente o trabalho. A menina brinca com o brinquedo que é réplica do instrumento de trabalho da mãe, da tia, da mulher. O rapaz também brinca, imitando o ofício do pai, do tio, dos homens. Os seus brinquedos são exactamente a réplica dos instrumentos de trabalho dos homens.
A aprendizagem, nesta fase, já assume um carácter mais oficial. O rapaz aprende regras de higiene, normas de conduta perante coetâneos e os mais velhos, participa em trabalhos no campo, pesca, caça. Aprende a construir a casa, os celeiros, o curral, pasta o gado, cuida da roupa, vai para os ritos de iniciação e entra no ensino oficial. Dá-se, também, muita ênfase ao desenvolvimento da capacidade linguística.
De acordo com MACHADO (1970), o rapaz
"... iniciado, embora de tenros anos, é homem «de jure», com todos os direitos do varão, inclusive os de liberdade sexual. Pelo contrário, o não iniciado, mesmo avançado em anos, é juridicamente criança, não lhe é reconhecida idoneidade, todos os direitos sociais dos homens lhe são negados" (203).
A rapariga aprende desde cedo as tarefas reservadas ao seu sexo: lava louça, varre o pátio, acarreta a água. No campo, é responsável pela provisão da lenha, ajuda na cozinha, cuida dos irmãos mais novos, entra no sistema de ensino oficial por volta dos 7/8 anos e, aos 10/13 anos, com a primeira menstruação é submetida aos ritos de iniciação.
A entrada para a escola oficial no campo, geralmente ocorre muito tarde, não sendo os 7/8 anos aqui indicados muitas vezes observados. Em Moçambique a idade oficial para o ingresso é de 7 anos, devido a muitos factores como: inexistência de escolas próximas da área de residência, falta de dinheiro para a matrícula, para a compra de material didáctico e de roupa, para não falar do calçado, que ainda continua sendo objecto de luxo para milhares de crianças moçambicanas.
Apesar de o livro para o Ensino Básico ser gratuito, a partir de 1996, constrangimentos de vária ordem têm impedido a efectiva realização desta importante medida do MINED. Muitas vezes as zonas recônditas iniciam o ano lectivo sem que os livros tenham chegado às mãos dos alunos e mesmo dos professores, por causa de intransitabilidade das vias de acesso, principalmente no período das chuvas.
Portanto, na fase que antecede a realização dos ritos de puberdade, procura-se dar às crianças uma educação cada vez mais elaborada, mais cuidada, com vista a manter, elevar e preservar a cultura, de forma mais intensificada. A forma mais oficializada da educação autóctone tradicional atinge o seu apogeu com a realização dos ritos de iniciação.
3.3 Descrição densa dos ritos de iniciação da puberdade
Até ao momento da iniciação, a educação das crianças faz-se geralmente de modo informal, mas já arrasta, como disse, uma certa intencionalidade no que respeita à preparação específica para a vida, segundo o sexo.
Com o advento da puberdade, os ritos de iniciação constituem o acto social de aprendizagem intencionalmente organizado das crianças autóctones, mediante um cerimonial oculto para os não iniciados e para as mulheres[51]. O(a) menino(a) é iniciado(a) nos segredos da vida.
Os ritos de iniciação só são públicos no acto de encerramento numa cerimónia aberta ao público, que marca o regresso dos neófitos, durante a qual dão-se conselhos de iniciação de encerramento.
A cerimónia de encerramento decorre no EPWARRO, no pátio da casa da autoridade gentílica. Também pode decorrer na casa do régulo, do NIHUMO, ou na casa de um dos chefes de família relevante - escolhido pelo seu exemplo durante os trabalhos no acampamento de iniciação. Portanto, os ritos de iniciação são públicos apenas na sessão de encerramento, nos conselhos de iniciação, denominados por IKANO SOOKHUMA[52] ,ou OKHUMA WAALUUKHU, o que quer dizer, conselhos de saída dos iniciandos.
A iniciação aparece como período de educação intencionalmente organizada, uma verdadeira escola, com mestre(a)s, permanência num espaço geográfico determinado à semelhança da escola, no sentido ocidental do termo.
Antigamente, os ritos de iniciação eram geralmente realizados no mato, nas margens de um rio, lagoa ou praia. Actualmente, devido à urbanização, são também realizados em casas isoladas da curiosidade dos não-iniciados. Geralmente escolhe-se uma zona afastada do bulício das aglomerações urbanas. No campo, continuam sendo realizados nos moldes anteriores, ou seja, nas florestas fechadas, com acampamentos permanentes na orla marítima ou dos rios. É condição importante que nestes locais abundem animais para a caça e/ou o peixe para a prática da pesca. O isolamento que se impõe, é para evitar olhares não autorizados, principalmente de pessoas não iniciadas.
Os ritos de iniciação dos rapazes duravam seis ou doze meses. Actualmente, por causa do ingresso das crianças na escola oficial, realizam-se durante as férias escolares e duram cerca de trinta dias. Os das raparigas duravam e continuam a durar poucos dias. A diferença de duração do «período de margem»[53] entre os ritos de iniciação dos dois sexos deve-se, segundo o mestre de iniciação YANAWIREYE[54] e corroborado pela mestra Sofia DAVID (conhecida por APIYA NAKHUTTE)[55], é a principal iniciação. Para o rapaz acontece uma e única vez, enquanto a rapariga terá, ao longo da sua vida, vários ritos de passagem, entre os quais: os ritos de casamento, gravidez, parto.
O período de margem é o espaço de tempo exclusivamente dedicado à preparação dos jovens para a vida, e não «exclusivamente de iniciação da criança nos segredos da vida sexual e práticas ocultas da vida primitiva», como escreve o major MACHADO (op. cit. p. 203), numa visão reaccionária, típica dos militares portugueses que sempre olharam os autóctones como povos inferiores, úteis apenas para o trabalho forçado.
Estas cerimónias constituem verdadeiros ritos de passagem. O indivíduo a eles submetido passa juridicamente, com base no consuetudinário, da idade de criança à idade de adulto. Passa do anonimato infantil ao reconhecimento social.
Os ritos de iniciação dos rapazes são colectivos, devido às despesas que implicam, a logística em comida que os acampamentos exigem, além de dinheiro para o pagamento ao MWENE, mestres, padrinhos e para aquisição de roupas a festa para o dia do encerramento. Os ritos de iniciação só se realizavam quando na aldeia houvesse um número suficiente de rapazes, na faixa etária entre os cinco e os catorze anos. Por isso eram realizados periodicamente, de quatro ou de cinco em cinco anos.
Os ritos de iniciação das raparigas realizam-se quando estas atingem a primeira regra menstrual, e muitas vezes assumem um carácter de ensino individual, porque pode ser realizada para uma única inicianda, embora também as cerimónias se realizem para um grupo de meninas. A individualização está ligada ao facto de ser condição a primeira regra menstrual. Como tal, a cerimónia de "ser explicada", isto é OHIMEERIA é sempre individual.
Actualmente, os ritos de iniciação dos rapazes realizam-se todos os anos. Embora continuem a ser em grupo, reflectem um carácter individualista que caracteriza a população urbana e semi-urbana: interferência das religiões e grupos de interesse. Os da religião muçulmana realizam as suas cerimónias entre eles; e os cristãos, idem.
Os conselhos de iniciação (IKANO), nas zonas urbanizadas, entre os fortemente influenciados pela religião, são dados, ou por anciãos da Igreja, ou por AMAMO (plural de IMAMO) da mesquita. Quer sejam cerimónias marcadamente para cristãos, quer para muçulmanos, os conselhos de iniciação têm um factor comum: versam sobre a moral, normas de conduta social, o saber ser e estar. Contudo, este processo da juventude arrasta consigo aspectos negativos, entre os quais o «divisionismo» religioso, com todas as consequências a ele inerentes.
3.3.1 Ritos de iniciação de puberdade dos rapazes (MASSOMA)
As crianças, conforme disse anteriormente, nascem como elementos potenciais que precisam de ser preparadas para a sua plena integração na sociedade. Por isso, é preciso criar condições para que essa integração ocorra sem grandes percalços, logo que reunam atributos que lhes permitam cumprir a sua missão na sociedade, como membros de pleno direito. A puberdade, com o aparecimento dos primeiros sintomas de adulto, marca o início das cerimónias de integração na sociedade.
Os ritos de iniciação dos rapazes, entre os Macua, tomam o nome genérico de MASSOMA. Podem também tomar o nome de EKHALAWA, ou, simplesmente, IKOMA, e os iniciandos são ALUUKHU.
A realização dos ritos de iniciação de puberdade é feita periodicamente, quando na escala etária entre os cinco e os dez anos há um número suficiente de rapazes. Contudo, é de realçar que, quando por qualquer razão um jovem é impedido de participar nos ritos, naquela faixa etária, deverá fazê-lo logo que surja a ocasião, pois ninguém deve ser posto de lado. Salvo casos de deficiência mental grave. Portanto, na educação tradicional não há exclusão. Todos têm o direito de serem iniciados.
A iniciação dos rapazes realiza-se em tempo de colheita, quando os celeiros estão a "abarrotar" de comida. Isso facilita a logística das "escolas" iniciáticas.
Convém esclarecer que quando falo de ritos de iniciação de puberdade dos rapazes, convém esclarecer que não o faço no sentido etimológico da palavra "puberdade", pois na faixa etária referenciada (5-10 anos), o rapaz ainda não terá atingido a maturidade fisiológica. Trata-se, sim, de uma puberdade "legal", que provém do reconhecimento social e do facto de se ter conquistado o direito de ser considerado adulto. O estado de adulto é uma qualidade simbólica que se conquista, depois de se ter passado com sucesso, pela resistência que os ritos de iniciação exigem.
Decidida a realização dos ritos de iniciação ao nível da cúpula da chefia tradicional (MWENE, APWIYAMWENE, ALIPA A MASSOMA, MAHUMO)[56], depois de avaliada a existência do número suficiente de rapazes, anuncia-se publicamente a convocação da MASSOMA, através do rufar do batuque KHAVETTE ou NTTHIPA, um batuque grande (no tamanho e na função). O rufar deste tipo de batuque serve para anunciar grandes acontecimentos como a morte ou entronização de um MWENE, a declaração de guerra, a morte de um inimigo poderoso, a morte de um leão, a anunciação de ritos de iniciação, ou de um período de poluição colectiva.
3.3.1.1 A tensão psicológica no período de preparação
Anunciado e marcado o período da realização dos ritos de iniciação, segue-se uma etapa frenética de preparação designada, em Macua, por EHUHU YA NTTOTTONTTO, ou seja, tempo de preparação.
No seio de cada família junta-se comida, indicam-se os rapazes a submeter aos ritos e os padrinhos, recolhe-se o dinheiro para o pagamento ao MWENE, aos ALIPA A MASSOMA, ALIPA A IKANO (conselheiros dos ritos de iniciação), padrinhos e outras despesas (roupa para o iniciando, festa de encerramento, oferendas, etc). Estes preparativos ocorrem sem que se veicule alguma informação substancial ao candidato aos ritos. O rapaz sabe apenas que lhe tocou a vez, quando lhe é rapado o cabelo. Para o rapaz está tudo envolto no segredo dos deuses.
Para o neófito que já toma a designação de LUUKHU (iniciando), é um período de grande ansiedade ambivalente: por um lado a ansiedade de cumprir os ritos de iniciação e adquirir o estatuto de homem e, por outro, o receio do desconhecido. Sabe apenas que vai para o mato «colher mel» (ORRAVO), e sabe também que quem colhe mel pelo método tradicional está sujeito a ferroadas das abelhas. Nem os seus irmãos lhe bafejam a mínima informação do que lhe acontecerá nos dias que se seguem. A catarse nos familiares dos iniciados e que passaram por esta ansiedade, mantém-se reprimida. O segredo é total e o LUUKHU sofre, em silêncio. É proibido dizer os segredos dos ritos aos não iniciados.
O rapaz repara que todos na família lhe prestam atenção especial, mas ninguém lhe adianta nada. Ao cair da noite, é levado ao santuário familiar, para a oração e a oferenda de farinha (MUKUTTHO) aos antepassados que a ocasião impõe. Na oferenda, conforme anuncia o oficiante da cerimónia, que tem de ser o tio materno, a família procede à entrega do neófito aos antepassados, para que o protejam neste momento especial do seu crescimento e que volte saudável e sábio da «longa viagem». Por vezes, pode ser uma viagem sem regresso: pode morrer de doenças como a malária, mas, principalmente da infecção provocada pela circuncisão, Antigamente era frequente, devido à cirurgia com material não esterilizado e falta de assistência médica e medicamentosa.
É um período de extrema apreensão, não só para o LUUKHU, mas principalmente, para a mãe, que sabe que aquela pode ser a última ocasião que vê o filho. E tem também consciência de que a cumplicidade afectiva entre eles chegou ao fim pois, depois da iniciação do rapaz, entre eles passam a reinar relações de evitamento e de profundo respeito. A dor e a alegria vivem no mesmo plano. Alegria, porque para mãe é honra saber que o filho já é homem e que depois dos ritos de iniciação, ele estará presente no seu enterro. É uma situação de violência psicológica, tanto contra o neófito, como para a mãe.
Os ritos de iniciação constituem momentos de ressurgimento de sentimentos recalcados, da existência entre os pais, de um terceiro excluído: durante os ritos de iniciação femininos, porque o pai não pode tomar parte dos ritos da filha, sente-se excluído da educação da sua própria filha; desta feita, nos ritos de iniciação do rapaz, não há como evitar que a mãe reviva o complexo de édipo[57], um suposto sentimento de desprezo.
O suposto desprezo pela mulher não é senão a sua secundarização, que existe em muitas sociedades tradicionais e não só, também reproduzida ao longo dos tempos através de atitudes estereotipadas. A mulher sente-se marginalizada no processo educativo do seu filho, durante e depois dos ritos iniciáticos de puberdade. Ela é rejeitada pois, habituada ao filho ao longo da infância, de repente este é-lhe retirado para que passe a pertencer à «sociedade dos homens».
Em certas sociedades, esta separação é carregada de violência psicológica e dramatizada pelas regras costumeiras fazendo reviver, na mãe, o complexo de castração que, em Psicanálise, no sexo masculino significa o medo infantil de perder os órgãos genitais. No sexo feminino, a imaginação de que a rapariga possuía outrora pénis, mas que o perdeu devido à castração. O complexo de castração, presume-se, é o resultado do medo de perder os órgãos sexuais, experimentado pela criança, devido aos seus desejos sexuais proibidos em relação ao progenitor do sexo oposto. Na mulher, este complexo, ao ser revivido, pode assumir um carácter de ciúmes pelos homens, ao sentir-se marginalizada nas grandes decisões da vida social, entre as quais às relativas à iniciação dos filhos (rapazes), apenas por ser mulher.
Normalmente, depois dos ritos, o filho não volta às intimidades do amor materno. As relações entre mãe e filho caracterizam-se, como já disse, por atitudes de respeito e de evitamento ou afastamento, atitudes socialmente prescritas, que caracterizam as relações entre diferentes classes de consanguíneos e aliados. No sistema matrilinear, este tipo de relações atinge o seu apogeu na relação tio materno e os filhos da irmã (avunculato).
Na sociedade matrilinear, o tio materno é o principal tutor dos seus sobrinhos nos assuntos relacionados com a educação, casamento, herança e residência, enquanto que o pai é visto como aliado, embora essa concepção tenda a mudar com a introdução do sistema de produção capitalista[58]. Portanto, nos ritos de iniciação dos filhos, os sentimentos de frustração tanto existem do lado da mãe como no do pai. Esse sentimento é aplacado apenas pela interiorização dos valores culturais que se impõem, e devem ser respeitados pelos dois, segundo os usos e costumes, o que não quer dizer que, no plano psicossomático, esse sentimento esteja erradicado. Ele permanece latente, assumindo maior intensidade nestas ocasiões.
3.3.1.2 A hora da despedida dos ALUUKHU
No dia seguinte à cerimónia de MUKUTTHO, no santuário familiar (OMPILANI), todos os familiares iniciados que quisessem, com excepção dos pais, do tio materno e do padrinho do iniciando cuja presença é obrigatória, acompanham o neófito à casa do MWENE, local de concentração de todos os candidatos à iniciação da aldeia, para a grande despedida. O MWENE, na ocasião, dirigia a cerimónia de entrega dos iniciandos aos grandes espíritos dos antepassados da etnia. É um momento de uma solenidade ímpar.
O MWENE oficiante deitava um pouco de farinha do MUKUTTHO na cabeça rapada de cada candidato, o que simbolizava a entrega solene à guarda dos antepassados. Depois deste acto, os candidatos, padrinhos e acompanhantes partiam, deixando para trás, as mães de coração partido e lágrimas marejando seus rostos.
Recordo-me perfeitamente, - como se fosse hoje! - que eu era o terceiro, (depois do meu irmãozinho) da "fila indiana" que se formara a caminho do desconhecido. À entrada da orla florestal, olhei para trás, para ver minha mãe e vi-a, bastante comovida, apoiada por uma tia minha, ao lado de outras tantas mães comovidas. Incontidamente, lágrimas saltaram-me dos olhos, e chorei copiosamente. Foi um acto irreflectido porque, logo a seguir, apesar de não ter sido o único, fui fortemente xingado: disseram-me que, se quisesse, podia voltar para o colo da mamã, porque aquela era viagem só para machos e não para choramingas. Creio ter sido a última vez que chorei. Tudo o que passei a seguir foi enfrentado com estoicismo e muita obstinação. Que menino não quer ser HOMEM?
3.3.1.3 No local da circuncisão (OMIRINI)
Durante a caminhada para o local da circuncisão, à noite, para além do batuque estridente que os acompanhantes tocam para anunciar a passagem da comitiva dos iniciandos, um ou outro acompanhante gritava ORRAVO! o que significa mel! Esse grito era correspondido por outros, a uma certa distância, o que durante a noite escura como breu, aumentava o pavor dos já apavorados iniciandos. A palavra de ordem era: só os verdadeiros homens empreendiam semelhante odisseia e, como tal, se os rapazes pretendem ser homens era preciso demonstrarem coragem.
Durante a jornada, por vezes, não se parava para comer. A jornada é extenuante. Às vezes, a caminhada dura todo o dia. Para que as comitivas não se percam e como forma de facilitar a localização, a uma grande distância do acampamento, já se ouvem na lonjura, sons difusos de tambores e tantãs em experiência de afinação. A chegada ao local da circuncisão, geralmente, ocorre noite adentro, para evitar que um dia, os rapazes possam reconhecer o local. “Nunca ninguém viu o local do seu nascimento, muito menos seu cordão umbilical”, é a explicação do mestre YAPATERO[59] corroborado por outros entrevistados. É tabu voltar ao local em que um homem foi circuncidado.
O local escolhido pelos mestres, para a circuncisão, fica no meio duma floresta fechada, entre montanhas e de difícil acesso.
Geralmente, o local da operação cirúrgica (OMIRINI), situa-se à beira de um grande rio, ornado de árvores. Antigamente, era também condição, que houvesse um morro de muchém (o falo da terra).
A localização do acampamento da circuncisão numa zona com as características geográficas acima descritas, permite que à margem do rio e à sombra das árvores, os circuncidados possam descansar à espera do anoitecer, para seguirem viagem de regresso às matas circunvizinhas das suas aldeais onde estabelecem os acampamentos para a cura das feridas e para as instruções. Os acampamentos nas matas circunvizinhas das aldeias facilitam o abastecimento em comida.
Chegados ao local da circuncisão (do latim circuncidere: cortar à volta), os rapazes são acomodados em barracas de capim (MISHASHA) que os seus acompanhantes constroem para o efeito.
Neste acampamento, podem permanecer dois ou mais dias, antes do corte do prepúcio, dependendo do número de iniciandos, por ordem de chegada das aldeias.
Durante a noite, à volta de uma grande fogueira dança-se NSHEMURO, uma dança realizada pelos mestres da MASSOMA, com a participação dos acompanhantes, à qual os neófitos e seus acompanhantes devem assistir. É uma dança que acentua a tensão psicológica dos rapazes uma vez que estes desconhecem totalmente o que lhes espera a seguir, embora desconfiem de que algo doloroso lhes irá acontecer. Tudo leva a crer que é por isso que os ritos de iniciação se realizam quando os rapazes são ainda muito novos. Nessa idade, as crianças são mais facilmente ludibriadas porque confiam excessivamente no que os adultos afirmam. Além disso, é mais fácil a cicatrização porque os rapazes não apanham erecção sexual, segundo Marinho MPHAVARA[60].
Dois dançarinos disfarçados de leopardos, isto é, vestidos com peles de leopardos, evolucionam-se no círculo formado pelos ALUUKHU e seus acompanhantes, ao compasso de canções e batucadas.
Como diz Aquilino CORRENTE (YANAWIREYE)[61], citado em BONNET (op. cit. p. 37) “Os homens disfarçam-se de leopardos como símbolo de força, de autoridade, de astúcia. Por exemplo, o MWENE usa a pele do leopardo para reencarnar a astúcia e a autoridade que o leopardo possui”.
As canções apelam à coragem. Os ensinamentos são feitos a partir da manipulação da motivação dos ALUUKHU. A pressão psicológica que envolve os rapazes é tanta, que os leva a fixar os ensinamentos, mantendo-os gravados na memória por toda a vida e sempre revividos pela memória contextual.
O «rugido» ameaçador dos «leopardos» torna vivos os ensinamentos, contidos nas canções sob a forma de narrações épicas, histórias, lendas, envolvendo pessoas que contribuíram para o engrandecimento da etnia, cantadas em forma de fábulas, enigmas, etc. A actuação dos dançarinos mantém os ALUUKHU cada vez mais despertos na calada da noite, e assim a assimilação é maior, pela associação ao momento ímpar em que vivem.
Para o mestre YANAWIREYE, a recorrência ao disfarce e à imitação de feras estarrecedoras “visa essencialmente incutir nos rapazes a obediência e o respeito”. É uma acção que visa manipular a vontade, o ânimo dos ALUUKHU para mantê-los "motivados". É um método que visa levar os iniciandos a uma aprendizagem involuntária, apelando para a participação de todo o corpo. Pelo estado emocional bastante forte que se cria, o estado optimal de motivação para a aprendizagem (incorporação?), para a retenção dos ensinamentos é maior. A representação cria nos ALUUKHU e em todos os presentes, sentimentos e ânimos que correspondam aos conteúdos que os mestres pretendem transmitir.
Começa exactamente nesta fase, o que se chama por iniciação nos símbolos da etnia: interiorização "violenta", simbólica das tradições, dos mitos, da história, do conhecimento sobre o ciclo vital e as suas fases (nascimento, puberdade, matrimónio, doença e morte) e o comportamento face aos superiores, notáveis e aos mais velhos. Embora ainda de forma subtil, os mestres vão introduzindo uma linguagem esotérica própria.
O LUUKHU que durante a preparação vinha sendo tratado com bastante leveza, a partir do momento em que se despediu da mãe no alpendre real, na praça pública do MWENE, apercebe-se que os seus acompanhantes o tratam com certa aspereza.
O seu padrinho é o responsável para lhe ir cutucando e explicando o significado de cada nova fase: que o sofrimento, a dor, fazem parte de fazer-se homem. Na iniciação, segundo a expressão usada por MARTINEZ (1989:110), citando SANON, "... a inteligência, o ambiente e o corpo unem-se para a construção do homem total"[62].
Pode-se dizer que todo o ser humano, na complexidade do seu ser e na riqueza da sua personalidade, colabora na construção do homem novo, que sairá da iniciação. O iniciando, no endurecimento das novas exigências vai arraigando forças e vontade de resistir a todo o desafio que lhe é colocado, a ponto de sofrer na carne e no espírito, sem um único queixume, as "humilhações" a que se sujeita. E vai construindo a "couraça" psicológica interna necessária para aguentar coisas piores, se necessário for. E é exactamente isso o que a iniciação exige: desenvolver a capacidade de resistência e a paciência (cabeça fria) nos momentos críticos da vida.
É por isso que os ritos de iniciação constituem, em primeiro lugar, ritos de separação, com os quais o indivíduo abandona o seu anterior estatuto social, a vida pueril, para ingressar no mundo dos adultos. Ser adulto significa ter visto ou vivido tudo, não se espantar perante qualquer fenómeno; em segundo lugar, são ritos liminares, pelos quais o indivíduo vive uma transformação da sua personalidade em clima de separação física e social, uma vez que, tendo provado ser capaz de assumir momentos dramáticos, terá demonstrado a sua entrega total aos propósitos preliminares do engrandecimento simbólico da etnia, da sociedade, para e na qual passará a existir como membro de pleno direito. E, em terceiro lugar, são ritos de agregação na situação normal da sociedade. O LUUKHU, ao deixar para trás o período marginal e ambíguo, agrega-se à vida social, na nova condição de adulto, membro da comunidade, para todos os efeitos.
Toda a encenação inicial no local da circuncisão visa preparar a conformação do LUUKHU sobre a importância do momento que atravessa: ter chegado a sua hora de deixar, naquele local, parte de si mesmo. O LUUKHU fica conformado, a partir deste momento, de que não há outro caminho senão sujeitar-se. A conformação é tal que, ao longo da pesquisa para o presente trabalho, não me recordo de ter ouvido falar de casos de deserção. Se algum iniciando desertasse seria, no mínimo, vexado por toda a vida e rotulado de cobarde. Ninguém, entre os Macua, aceita ser considerado anti-social a vida inteira, por ter fugido da MASSOMA. É, no mínimo, humilhante. Um indivíduo Macua fugido dos ritos de iniciação nunca teria sossego, perante o vexame de viver sempre apontado pelo dedo acusador da comunidade, como MMARAVI[63] e com agravante de ter fugido da iniciação.
Os mestres YAMPUISSI[64], YANAWIREYE, YAPATERO e YAMPUHUWA corroboram de que o indivíduo Macua, que fuja da iniciação, só pode ser portador de deficiência mental. Se não era, a partir do momento em que foge, passa a sê-lo, porque transforma-se em pessoa mentalmente débil.
3.3.1.4 Circuncisão (OKWASSA/OTHIKILA ENTUUSU): a dor de ser HOMEM
Segundo os mestres YANAWIREYE, MPWISI e YAMPUHUWA, no dia da chegada ao local da circuncisão, ou um pouco antes da circuncisão, os ALUUKHU tomam um remédio denominado EPILIKO ou EPOHI, mistura de, entre outros, farinha de milho ou mapira, feijão e plantas medicinais tradicionais. Trata-se de uma mistela de sabor e apresentação desagradáveis que os ALUUKHU devem tomar sem vomitar, provando a sua aptidão para enfrentar as restantes situações da iniciação.
Nas primeiras horas da manhã seguinte, do dia da chegada ao local da circuncisão, os candidatos são formados em fila indiana, e a operação decorre conforme se segue: os ajudantes do MULIPA A MASSOMA ou os ANAMAIKHUUPI[65] vão agarrando, os candidatos um por um, da fila que se forma em frente à barraca da operação cirúrgica e, uma vez lá dentro da barraca, fora das vistas dos outros iniciandos, despem-nos. Ao lado de um morro de muchém, derrubam o iniciando e imobilizam-no. o MULIPA A MASSOMA, coadjuvado pelos seus ajudantes, num gesto rápido, corta o prepúcio que atira para um buraco do morro de muchém.
O morro de muchém tem um significado simbólico entre os Macua. Na sociedade Macua, na linguagem isotérica da iniciação, o morro de muchém é dito como sendo o falo da terra, ou seja o local onde ela tem erecção (VAMMEMA ELAPO). Na percepção dos mestres de iniciação, o morro de muchém, é o falo da terra porque "tesa" quando as térmitas o constroem e elevam a sua altura. É a única parte da crosta terrestre africana que tem essa capacidade, exceptuando as terras vulcânicas. Com as chuvas, o morro amolece, desfalece e as térmites tornam a ergue-lo. É a manifestação da vida da natureza. Por isso, os prepúcios cortados dos neófitos são introduzidos no buraco do morro, para que o falo do menino, doravante, "tese" conforme manda a natureza.
MACHADO (1970), descreve o momento da circuncisão da seguinte maneira:
“Formados os rapazes a uma certa distância do local, os velhos e os conselheiros presentes procuram iludi-los sobre a sorte que os espera. E quando o rapazinho é convidado a seguir o padrinho, fá-lo, de início, confiado. Não tarda, porém que chegue ao local do suplício e se aperceba do seu destino. Mas o padrinho segura-o e tapa-lhe os olhos com a mão e apresenta-o ao operador. E este, com o auxílio dos ajudantes, atira o rapaz ao chão. Nesta posição, manietado, ou sobre as pernas do operador, que o subjuga colocando-lhe a cabeça debaixo do seu braço, enquanto os auxiliares e padrinho o seguram, o rapaz é circuncidado. A algazarra dos batuques é infernal e abafa os gritos da vítima, de modo que os não escutem, à distância, os restantes pacientes” (207).
Como se pode depreender, aos olhos de Machado a circuncisão é um suplício, porque ele não pode compreender o significado da dor do corte prepucial, feito sem se recorrer à anestesia.
Dantes o corte era feito com materiais não esterilizados e sem anestesia, o que provocava infecções e outras doenças que podiam até ocasionar mortes entre o iniciandos. Hoje em dia a circuncisão é feita com assistência de pessoal paramédico (enfermeiros), que ganham muito dinheiro por essas alturas dos ritos de iniciação, pois cada neófito chega a pagar uma importância de cerca de 100.000,00Mts. Por vezes, também, a circuncisão é feita no hospital ou em unidades sanitárias.
Há quem defenda que com a introdução de anestesia nos ritos de iniciação o LUUKHU perde a dor necessária, comparando-a com a que provoca o primeiro pranto do bebé depois do parto. Tudo está relacionado com o valor simbólico que se atribui à dor necessária de fazer-se homem. “A iniciação é o segundo nascimento do homem”, enfatizam os mestres e pais entrevistados.
De acordo com o entrevistado Henrique TARUMA, referenciado em BONNET (1996:38), na sociedade Macua praticavam-se três tipos de ablações do prepúcio: ablação completa do prepúcio, predominante no litoral islamizado, ablação parcial e apenas o corte do freio prepucial, predominante no interior. Contudo, mesmo no litoral, em algumas regiões, como é o caso de Moria, Mitequenhane, Mepava e nas terras do régulo Pajaquera, no distrito de Memba, existem comunidades que praticavam a ablação parcial ou apenas o corte do freio
Actualmente predomina a ablação prepucial completa em quase todas as regiões da Província de Nampula embora não possa excluir a existência de bolsas de comunidades que pratiquem a ablação parcial ou o corte do freio. Dos entrevistados ficou claro que, actualmente, dá-se grande importância ao corte prepucial total pelo facto de que isso garante a higiene e previne certas doenças de transmissão sexual, além de que isso permite uma uniformização do período de permanência nos acampamentos e dos eventos ligados à aprendizagens específicas da iniciação.
A explicação desta fonte, nega a ideia de que os ritos de iniciação se resumam apenas à circuncisão, como objectivo principal.
Logo após a circuncisão, o operador põe um remédio em pó (ETUUTHA[66]) na língua do iniciando. Este remédio destina-se a potenciar o LUUKHU a ter filhos no futuro. O circunciso é posto, em seguida, aos cuidados do seu padrinho que assiste a operação a uma distância, e lhe coloca, uma rodilha (MAKHORO) feita de corda brava no pénis, amarrado à cintura, para evitar o movimento pendular do membro, quando o circuncidado estiver a andar. O padrinho deve, igualmente, confeccionar um receptáculo com a folha de uma árvore chamada MUIEEPE, em forma de funil, mas sem a parte de vazamento, que o LUUKHU deve manter debaixo do pénis para recolher o sangue e impedir que este escorra pelo chão.
Em grupos, por áreas geográficas de proveniência, os ALUUKU sentados à uma certa distância do local da operação cirúrgica, aguardam os restantes iniciandos do seu grupo. Batem com as palmas da mão no chão debaixo do pénis, para que a poeira que se levanta, das margens do rio[67], se prenda à ferida para ajudar a sua cicatrização. Aqui começa a dança NAMUTTORRO executada pelos acompanhantes. Com o batimento dos pés no chão vão levantado poeira que, ao colar-se à ferida, ajuda-a a cicatrizar. Outro remédio usado para tal é o ESSESSERE ou ELIYO, uma planta muito resistente à seca, semelhante à planta de sisal, mas sem o pico no término das folhas, mas, em compensação, com as folhas debruadas em jeito de dentinhos de serrote, avermelhados, nas bordas. É uma planta acinzentada, cuja seiva é muito amarga e se supõe possuir uma grande capacidade bactericida e, consequentemente, curativa. Acerca do modo de estancar a hemorragia, MACHADO (1970) deixando, em parte, transparecer a ignorância dos factos, escreveu:
“O operador executa certos toques obscenos no pénis do rapazito; depois puxa-lhe o prepúcio, distende-o para a frente, cortando-o em seguida. A faca empregada na operação chega a ser feita com o aro de uma pipa!
... para estancar a hemorragia resultante, a ferida é esfregada com terra, formando-se uma carapaça de lama amassada em sangue” (207).
Embora seja verdade que as facas utilizadas eram toscas, elas eram sujeitas a um trabalho semelhante ao do ferreiro (bigorna e fogo) para as adaptações necessárias à circuncisão. Não havia esterilização no sentido moderno do termo, mas a faca era queimada até ao rubro depois de cada operação, conforme os mestres entrevistados acerca do assunto. Não corresponde à verdade quando Machado diz que se esfregava a ferida com terra. O que se fazia era que o iniciando, sentado no chão e com as pernas abertas, batesse com as palmas das mãos o chão, debaixo do pénis, para que a poeira se fosse prendendo, paulatinamente à ferida, conforme expliquei.
O papel do padrinho (MALIYE) como educador e conselheiro começa logo após a sua indicação em casa antes de sair da aldeia. Mas, depois da operação cirúrgica, assume maior rigor. Aconselha o seu afilhado a não chorar, dizendo-lhe que dali em diante começa o seu verdadeiro nascimento, que todos os verdadeiros homens passaram por aquelas provações. Cada padrinho é o principal responsável pela observância rigorosa dos cuidados para a cicatrização da ferida do seu afilhado. Embora essa cicatrização não dependa apenas da dedicação do padrinho, ele é considerado o braço direito dos mestres para a observância das regras de se ser/estar no acampamento.
Antigamente, muitas vezes a ferida infectava, resultando por vezes em mortes. Mas isso era interpretado como sendo o resultado de alguma acção de forças do mal adversárias ou de algum antepassado não satisfeito com os rituais preliminares realizados e na última das hipóteses, como incumprimento da observância de certos tabus como, por exemplo, da violação da abstinência sexual que é decretada para os pais dos neófitos e outros directamente envolvidos na realização dos ritos de iniciação.
A intervenção/colaboração do Estado, através dos serviços de saúde pública, poderia contribuir para reduzir a possibilidade de ocorrência de doenças ou mortes durante os ritos de iniciação. O estado deveria promover encontros com os mestres dos ritos de iniciação para a necessária sensibilização/informação sobre os perigos de uso de material não esterilizado, da utilização da mesma faca para a circuncisão de várias crianças, etc.
Doenças como o tétano, a SIDA/HIV e outros, podem ser facilmente transmitidos durante a iniciação porque, em algumas regiões, o material cirúrgico utilizado no corte prepucial, não é esterilizado. A anestesia, em algumas regiões é escassa ou inexistente o que leva a especulação de preços, por parte de enfermeiros e outros funcionários desonestos da Saúde. Portanto, o Estado ao continuar a fingir que ignora oficialmente a existência dos ritos de iniciação e o seu papel social, perde uma grande oportunidade de demostrar o seu empenhamento na realização da cultura popular e quiçá, de se redimir pelo desprezo da importância dos saberes locais das diferentes regiões do país.
Na ablação prepucial, a dor no momento do corte é tão violenta que alguns neófitos chegam mesmo a urinar ou defecar. Os gritos de dor são abafados pelos acompanhantes, que gritam, cantam e tocam batuques. Fazem tudo para que os que ainda não sabem o que se passa do outro lado do barracão, se convençam que algum iniciando incauto não soube aparar as ferroadas das abelhas, ao retirar o mel da colmeia.
Os ritos de iniciação fazem parte da cultura africana. Na África do Sul, o corte prepucial também é efectuado quase da mesma forma que entre os Macua. Nelson MANDELA (1995) descreve da seguinte maneira o que lhe aconteceu:
"Eu estava tenso e ansioso, incerto como reagiria quando chegasse o momento crítico. Recuar ou chorar era sinal de fraqueza e um estigma por toda a vida adulta. Eu estava determinado a não me desgraçar nem desgraçar o grupo ou o meu tutor. A circuncisão é um julgamento de bravura e estoicismo; não se usa nenhum anestésico e o homem tem de sofrer em silêncio. (...) havia só dois meninos antes de o [cincuncidador] chegar a mim e minha consciência deve ter se apagado por um momento porque, quando me dei conta, o velho já estava ajoelhado diante de mim. (...) Sem uma palavra, segurou o meu prepúcio, puxou-o para diante e baixou a azagaia com um movimento único. Senti uma espécie de fogo explodir nas veias; a dor foi tão intensa que enterrei o queixo no peito; (...) recobrei-me e bradei: "NDIYINDODA" ("Sou Homem") (...) fiz o melhor que pude para esconder minha agonia. Os meninos podem chorar, mas os homens escondem a dor" (32).
O valor simbólico do corte prepucial brutal resume-se no seguinte: Não existe nada que seja bom e duradoiro que não custe sacrifício. O fazer-se adulto implica aguentar o sofrimento. A dor física localizada tem de ser suportada, pois as dores mais violentas são as que afectam a alma, as agruras da vida que o sujeito dali em diante irá enfrentar. O sangue derramado simboliza o sacrifício sacramental individual e colectivo aos antepassados, de cada um e de todos os iniciandos, para a fertilidade da terra, para o enriquecimento da etnia. Desde os tempos mais antigos da mitologia africana, o sacrifício do sangue jovem foi considerado como exigência sublime para acalmar, aplacar a ira dos deuses, condição sem a qual o convívio salutar entre os vivos e os mortos pode ser posto em causa, principalmente quando se pretendia realizar uma cerimónia de grande envergadura, como são os ritos de iniciação da puberdade.
Estas cerimónias são marcadas por rituais em que têm que ser evocados os notáveis antepassados da etnia, além do antepassado fundador do NLOKO de cada neófito presente (durante a cerimónia de MUKUTTHO ao nível de cada ERRUKULO).
3.3.1.5 No primeiro acampamento (ONAMUHAKWANI)
A primeira prova de resistência física ocorre na caminhada do local da circuncisão para o primeiro acampamento. Por vezes, estes dois pontos tinham uma separação de vários quilómetros. A marcha era feita ao anoitecer, para se evitarem cruzamentos com pessoas não iniciadas ou com mulheres. Como forma de se prevenir estes inconvenientes, quando a comitiva passava perto de alguma aldeia, a marcha era acompanhada de grande algazarra de gritos (com batucadas e insultos à mistura), sinal de que estavam passando os «destemidos», o que fazia com que as pessoas (mulheres e crianças se escondessem dentro das casas).
A prova de resistência física incluía, entre outras, a resistência à fome. Os iniciandos e seus acompanhantes permaneciam, em jejum durante todo o dia, porque, geralmente, eles chegavam ao local do acampamento, previamente seleccionado, a altas horas da noite. É que, entre os ALUUKHU, quase ninguém sente fome por causa das dores da ferida e do cansaço da jornada.
De acordo com BONNET (1996), chegados ao local do acampamento, iniciava-se a construção do barracão (NAMUHAKWA). Este barracão só podia ser construído com a chegada dos iniciandos. Mas também ocorria construir-se antes destes chegarem, embora fosse muito raro. Depois de realizado o trabalho do OMIRINI iniciava-se a construção do barracão. O que os ALUUKHU deviam interiorizar como ensinamento, era que nunca se devia cavar um túmulo, antes da morte da pessoa. Esta é a explicação dos educadores tradicionais YANAWIREYE e YAPATERO. Repare-se que, a partida dos iniciandos para os ritos de iniciação, diz-se, entre os Macua, WAARRIHA ANAMWANE, o que literalmente significa lançar (ou deitar fora) as crianças à sua sorte. Para se ter uma nova planta, é preciso lançar a semente à terra. Só lançando-se as crianças à terra, se permitiria o seu (re)nascimento como homens novos.
Por analogia, a entrega das crianças à floresta ou busca da sabedoria, as dimensões do corpo são metaforizadas ao número de ALUUKHU envolvido para a construção do barracão conhecendo-se o seu número exacto, e ao (re)nascer de uma nova pessoa depois de “engolida” por deuses.
A primeira fase do período de margem decorria neste acampamento, construído no meio da floresta cerrada, inacessível aos olhos estranhos. Situava-se à margem ou entre rios ou ainda junto à praia.
Este acampamento tem um grande significado para a vida do iniciando. A vivência neste acampamento será recordado por toda a vida. Pela segunda vez na vida, o homem anda completamente pelado em público. Embora restrito aos mestres e acompanhantes, não deixa de ser significativo o facto de que, depois de dois dias, torna-se natural o indivíduo andar pelo acampamento completamente nu sem se ruborizar.
Apesar da violência simbólica e por vezes castigos severos e disciplina rigorosa a que os neófitos estão sujeitos, principalmente perpetrados pelos acompanhantes, sob o olhar de cumplicidade dos mestres, é preciso entender que o ambiente que se vive nos acampamentos de iniciação tem um carácter espartano (que tem ou lembra a severidade da educação e costumes espartanos), de disciplina militar. Ora, os acompanhantes, pertencendo a uma geração que passou por estes tratos, procuram também manter e transmitir a experiência da disciplina rigorosa vivida à nova geração de neófitos.
Apesar do rigor e da disciplina pedagógica dos mestres e acompanhantes, não há registo de deserções por parte dos ALUUKHU. O que muitos entrevistados dizem é que não era possível fugir dos acampamentos por duas razões: a primeira prende-se com o facto de que toda a região em que se montava o acampamento era «cercada» pelo curandeiro-mor do "mwenado", para que tanto feitiços de forças inimigas, feras e ofídios não pudessem entrar; a segunda razão é que, nenhum iniciando desejaria perder a oportunidade de se tornar HOMEM e ver-se reconhecido na aldeia e na vida social em geral. A MASSOMA é oportunidade única para aos olhos da comunidade, um rapaz se tornar Homem
A «protecção» do território era feita na calada da noite, pelo curandeiro-mor do "mwenado" e seus ajudantes, presenciada apenas pelo MWENE e APWIYAMWENE, dias antes, no momento da escolha do terreno para o acampamento. “Trata-se de uma cerimónia mágico-religiosa que visa tornar o território invulnerável às forças e feras do mal, estranhas ao reinado”, conforme o mestre YANAWIREYE corroborado por outros entrevistados.
O barracão NAMUHAKWA, a primeira «escola» do acampamento, é uma construção de uma «água» de cobertura, isto é, com uma face; de três paredes, em forma rectangular, com o alçado frontal aberto. Por dentro constrói-se um "banco-cama", de uma ponta a outra, isto é, um banco com as costas reclinadas, a um certo ângulo, que permita aos ALUUKHU tanto sentarem como deitarem-se, recostados, durante a noite. Para cada ALUUKHU reserva-se um espaço, demarcado por estacas, nas quais cada um amarrará suas pernas, abertas, ao dormir, à noite, para evitar aleijar-se. Este banco toma o nome de EKHAPWERA, o que significa "curral".
Ao denominar-se "curral" ao barracão, pretende-se dar o seguinte significado: os ALUUKHU são comparados a porcos: ao anoitecer, são enclausurados numa cerca construída de estacas, o que de certa maneira se assemelhava à situação dos iniciandos; por outra, durante o período de cura das feridas, aos ALUUKHU não era permitido tomar banho, alegadamente para evitar que molhassem as feridas e provocassem infecções[68].
3.3.1.6 A instrução
A vida nos acampamentos de iniciação começa muito cedo e termina muito tarde. Inicia com a higiene individual, seguida de canções e danças. As canções são em linguagem codificada seguidas de tradução, repetitivamente, iniciadas pelos tutores que os iniciandos respondem em coro, repetindo ou descodificando a linguagem esotérica. A linguagem das canções é simbólica, com recorrência a figuras de estilo, com predominância de comparações, metáforas e o uso de exemplos proverbiais. As danças são autênticas representações das cenas do quotidiano. Todo o corpo participa nos ensinamentos, como escreve SANON, apud MARTINEZ (1989:120): «o corpo é um instrumento do saber»[69].
Enquanto as feridas não saram, os ALUUKHU aprendem a cantar, sempre com recurso à linguagem esotérica, e os tutores dançam nus à sua volta, - os mais idosos não se despem, apresentam-se vestidos apenas de tangas - levantando poeira com o batimento dos pés. O ritmo das mãos dos iniciandos ao baterem no chão marca o compasso da dança NTURUKWE ou NIPWETE, “a dança do sofrimento, a dança de OTTHULAMELIA[70]”, segundo Arrafa ALI[71].
Conforme aquele entrevistado, com estas atitudes os dançarinos procuram provocar a revolta do iniciando ao máximo, para demonstrar-lhe que o ambiente não é o mesmo que o da sua casa, que entrou em estado de anonimato extremo, um estado de poluição que precisa de ser expurgado, um estado que eles (os ALUUKHU) precisam expiar, penando.
Em pequenos grupos, à volta dos anciãos[72], os ALUUKHU a sabedoria dos pedagogos. É o período da interiorização da linguagem e do saber sobre a vida. A experiência dos velhos é a base em que assenta a teorização vital.
Os ensinamentos incluem, segundo MARTINEZ (op. cit.), e por mim vivenciados no terreno,
“iniciação nas tradições do povo, mitos de origem, história do povo, lendas e narrativas sobre personagens importantes; Iniciação à vida: conhecimentos sobre (...) nascimento, puberdade, matrimónio, doença e morte; Iniciação social: O comportamento [futuro perante a sociedade]” (ibidem).
Depois da cura das feridas, os iniciandos aprendem técnicas de caça e da pesca. É uma aprendizagem essencialmente prática, pois aprendem a caçar e a pescar caçando e pescando. Jogam e nadam nas horas livres, que são os intervalos entre duas actividades, pois a regra é ocupá-los, aproveitando-se o pouco tempo de que se dispõe para uma formação integral da sua personalidade. Os momentos da ludicidade são aproveitados para a preparação da autodefesa através de jogos.
Durante o tempo de permanência neste acampamento (ONAMUHAKWANI), os iniciandos aprendem também a cantar e a tocar vários instrumentos musicais, entre os quais IPHIVI (plural de ephivi), batuques ou tambores como KHUMBWE, ACUCU (plural de cucu), PETTHENI. Depois da cicatrização aprendem também a dançar com os mestres e tutores, na preparação da festa do dia da saída.
O tambor é um instrumento muito importante nos ritos de iniciação. Os Macua, durante a iniciação, usam-no para marcar o compasso e coordenar a cadência dos movimentos. Desperta as atenções e domina os sentidos. Seja a toda ca e funda de tambores de grande porte como KHAVETTE ou o batuque de MUNAHIWE, ou o berro estridente de CUCU ou PETTHENI, a ansiedade e interesse provocados exteriorizam-se de imediato. Há uma fascinação mítica, atávica, que liga o Macua ao tambor. Parafraseando Edgar Nasi Pereira (2000:81), milénios de ancestralidade, práticas longínquas de magia pejadas de significado e potencialidades ignotas, ou até a simples habituação lúdica, grudam a alma não só do Macua, mas de todo o africano, ao som que acompanha quase todos os actos importantes da sua vida sócio-familiar e religiosa, desde o nascimento até muito depois da morte.
Os ensinamentos dados no primeiro acampamento de iniciação (ONAMUHAKWANI) pelos pedagogos tradicionais, incluem conselhos sobre os diversos aspectos da vida que se resumem no que se segue: aspectos morais, preservação do meio ambiente através de acções que respeitem o equilíbrio ecológico: caça e pesca com períodos de defeso e rotativas por zonas, para permitir a regeneração das espécies; métodos de evitar queimadas desnecessárias; higiene e conservação dos cursos de água e rios, como propriedade comum; rodízio das terras de cultura, para evitar o seu desgaste; resolução de conflitos e jurisprudência representadas através de fábulas; lendas e narrativas sobre a história local e de outros povos; aspectos sobre a religião tradicional, os mitos; a música, danças tradicionais e artesanato; aprendem a confeccionar roupa com a casca de árvores (NAKOTTO); a fazer fogo com material natural - paus da ervilheira (MPWIIRI) com troncos de EVELO e a educação sexual.
As «aulas» são caracterizadas por uma linguagem agressiva, carregada de insultos, injúrias e humilhações. Isto tem em vista, conduzir aos ALUUKHU à sua memorização, a longo prazo, através da fixação involuntária, associando o aprendido com a situação não muito agradável de iniciando, de sofrimento. A fixação sensata resultará da curiosidade de saber o sentido das palavras codificadas e das representações do desconhecido, para a compreensão dos factos. “Este método visa também moldar nos iniciandos a paciência, a tolerância, a ponderação. Molda-lhes a vontade e corrige-lhes as faltas” (Henriques TARUMA, Arrafa ALI, YANAWIREYE corroborados por muitos dos entrevistados).
Ainda sobre os métodos usados na iniciação relativos à correcção, MARTINEZ (1989:121), escreveu: “... os ensinamentos têm também a intenção de prevenir vícios e faltas na vida dos iniciandos; para isso são usados os insultos, as injúrias, as críticas e os castigos”.
Depois de muitos anos soube, através dos mais velhos, com quem tenho privado nestas andanças de aprendiz de pesquisador, que a comida no acampamento é muitas vezes seleccionada. Como os iniciados não devem comer tudo, alguns pratos geralmente vindos da aldeia, são comidos pelos acompanhantes. Por um lado, são orientações dos curandeiros para que os ALUUKHU, enquanto estiverem no processo de cura, não comam refeições com óleo nem sal ou açúcar. Quanto às bebidas, só devem beber água de KUHARE, filtro mágico destinado a precaver os iniciandos contra os malefícios provenientes dos alimentos preparados por alguma mulher menstruada que porventura, se tenha atrevido a cozinhá-los. Mas por outro segredaram-me também que, por vezes, a água de beber é misturada com lodo por causa de "exageros" dos acompanhantes que com isso pretendem «testar» a humildade dos iniciandos. Só que este "teste" deve ser consentido, tolerado pelas regras do jogo na iniciação. A preocupação dominante é zelar para que se respeitem os costumes ancestrais, o que por vezes conduz a alguns exageros, mas sem nenhuma maldade.
Como já tive a ocasião de referir, os iniciandos são tratados com muita aspereza, havendo o propósito de os submeter a prova o mais duras possível para, dizem, «os preparar para a idade de homens». A este propósito, MACHADO (1970), escreveu o seguinte, embora com certo exagero - no referente à alimentação,
“Os familiares varões (somente) [já iniciados], podem visitar o local e fornecer alguma comida – somente a indispensável para não morrerem de fome. Mas não lhes é permitido usar para com os rapazes qualquer carinho ou facultar qualquer conforto. Pelo contrário, deverão usar da maior dureza no trato” (207).
Alguns destes rudes preceitos visam a submissão dos jovens à autoridade dos antigos, à mística tribal e “nihímica” (do NIHIMO)[73], à severa disciplina e respeito pelas leis ancestrais, ao desenvolvimento da capacidade de sofrimento e rusticidade (no sentido de simplicidade) dos homens. De certa maneira, será bom nunca desprezá-los. Mas isto arrasta consigo o apelo à submissão que quase toda a acção pedagógica arbitrária estabelece, o que pode debilitar a iniciativa e a criatividade quando se pretende construir um ambiente democrático.
3.3.1.7 O segundo espaço educativo (ONVERANI)
Concluídas as instruções do primeiro acampamento, os ALUUKHU transitam para o segundo espaço pedagógico, um segundo barracão que se constrói nas imediações do barracão anterior, denominado NVERA. A mudança de acampamento significa a cicatrização completa das feridas de todos os iniciandos; a conclusão dos ensinamentos específicos do primeiro espaço pedagógico (ONAMUHAKWANI), e a transição para outro tipo de aprendizagem.
Depois da cicatrização do pénis e dos ensinamentos referentes ao primeiro espaço educativo, os ALUUKHU mudam-se para o segundo espaço educativo, um barracão de maiores proporções que um grupo de acompanhantes guiados por anciãos e curandeiros constroem não muito distante do local do primeiro. O barracão tem a forma circular ou quadrangular, em cujo mastro principal o curandeiro pendura remédios e drogas "protectores" do acampamento. Estes remédios e drogas, para além de protegerem o recinto de feras e feitiços, também impede que chova durante o dia do ritual que se seguirá.
No dia de mudança do primeiro barracão, as mães vão até a orla da floresta ou nas proximidades do alpendre real - EPWARRO (âgora), local em que se separaram dos seus filhos, no dia do início do período de margem, onde preparam uma refeição especial. Esta refeição, constituída de massa de milho ou mapira ou de milho (ESHIMA), acompanhada com caril de galinha, preferencialmente, é transportada para o acampamento pelos ajudantes logísticos (rapazes, familiares dos iniciandos, que ajudam nos trabalhos do acampamento, principalmente no transporte de alimentos).
Ao cair do dia, depois da refeição preparada pelas mães na orla florestal, inicia a "aula" denominada MILEPO, já com os ALUUKHU instalados no novo barracão (NVERA).
MILEPO consiste na teorização da origem da vida e das coisas. Os mestres recorrem, como parte do "material didáctico" para esta sessão os seguintes meios: uma peneira, um pedaço de pano branco, a farinha de mapira e o facão. O pano é estendido no chão e fixo por pequenas estacas, além dos ossos e da massa, sobras da refeição especial. Dada a complexidade dos eventos que ocorrem neste ritual, é quase impossível descrever todo o seu sentido. Por isso limitar-me-ei a narrar o que considerei pertinente para a presente pesquisa.
Sobre o pano branco, constroem-se dois anéis de pirâmides de farinha de mapira. São dez pequenas a rodearem uma maior ao centro (construída sobre um ovo); esta pirâmide é rodeada por um conjunto de outras cinco pirâmides, formando um pentágono. A construção destas pirâmides é feita com o auxílio de um facão próprio para o efeito. A farinha é previamente molhada, para evitar-se que se espalhe pela acção do vento. Todas as pirâmides são depois ornadas de EKHAMA (pó a cores – preta e vermelha). A preparação do MILEPO é uma cerimónia à parte, que é preparada entre os ALIPA A IKANO, a um canto do alpendre real. A “construção” das pirâmides do MILEPO, é acompanhada de canções e o tocar de batuques. As pirâmides são tapadas com uma peneira, sobre a qual também se constroem outros símbolos – com a configuração de um feto, podendo distinguir-se os membros inferiores, superiores, olhos e a boca. À semelhança dos anteriores, estes símbolos são ornados com sulcos de pó a cores (EKHAMA).
É a partir destas pirâmides sulcadas de preto e vermelho, que o(a) mestre(a), recorrendo aos métodos expositivo e à dramatização (representações psico e sócio-dramáticas), predominantemente, faz a leitura simbólica do ciclo da vida. O mestre destapa as pirâmides e o(a)s iniciando(a)s um(a) de cada vez, acompanhado(a)s pelo(a) tutor(a) (NAMUKO) contam as pirâmides. Conta seis pirâmides da esquerda para a direita, apontando-as com o dedo mínimo seguido-se os restantes dedos da mão direita. Conta, com o uso da mão direita, as cinco pirâmides que circundam a pirâmide-mãe. A contagem termina na sexta que é a pirâmide-mãe. Portanto, são os cinco dedos da mão direita, mais um, o dedo mínimo da mão esquerda.
O sistema numérico Macua é baseado em períodos de cinco. Durante a sessão de MILEPO, a aprendizagem da contagem faz-se, como disse, pelos dedos da mão. Assim, temos:
1 (EMOSSA)
2 (PIILI)
3 (THAARU)
4 (ISHESHE)
5 (ITHANU)
Chegados ao número cinco, a contagem continua da seguinte maneira: cinco mais um; cinco mais dois, e por aí em diante, conforme a seguinte tabuada.
5+1=6 ITHANU NI EMOSSA;
5+2=7 ITHANU NI PIILI;
5+3=8 ITHANU NI TTHARU;
5+4=9 ITHANU NI SHESHE e
5+5=10 MULOOKO (ITHANU NI ITHANU)[74]
Depois, a contagem continua, mas, sempre com base em cinco números:
10+1=11 MULOOKO NI EMOSSA;
10+2=12 MULOOKO NI PIILI;
10+3=13 MULOOKO NI TTHARRU;
10+4=14 MULOOKO NI ISHESHE e
10+5=15 MULOOKO NI ITHANU.
Segue-se, depois, a contagem na casa dos dez mais cinco e mais um, dez mais cinco e mais dois, dez mais cinco e mais três, conforme se pode observar:
10+5+1=16 MULOOKO NI ITHANU NI EMOSSA;
10+5+2=17 MULOOKO NI ITHAMU NI PIILI;
10+5+3=18 MULOOKO NI ITHANU NI TTHARRU;
10+5+4=19 MULOOKO NI ITHANU NI ISHESHE e
10+5+5=20 MILOOKO (pl de MULOOKO) MIILI (MILOOKO NI ITHANU NI ITHANU).
E a contagem prossegue:
(10+10)+1= 20+1=21 MILOOKO MIILI NI EMOSSA;
(10+10)+2=20+2=22 MILOOKO (MIILI NI PIILI);
........................................................................................
A leitura dos fenómenos da vida, que se faz durante a sessão de MILEPO, é diversa e multidisciplinar.
A contagem das seis pirâmides refere-se, de acordo com os mestres dos conselhos de iniciação (ALIPA A IKANO), à contagem dos seis dias em que decorre o período de uma mulher. O(a)s iniciando(a)s devem saber e observar os tabus e proibições ligados ao período de poluição e contaminação, conforme se interpreta na cultura popular Macua.
O que importa reter neste modo de contagem é a aprendizagem directa: a partir de elementos presentes, apontando-os, relacionando-os com o número de dedos que temos, construirmos um saber vivo e vivenciado.
Quanto às cores, em algumas regiões, em vez do pó a cores para ornamentar as pirâmides do MILEPO, recorre-se também a fios de missanga de diferentes cores: vermelha e preta, os símbolos das fases do período menstrual, de acordo com o mestre YAPWIRIPWIRY[75].
Durante esta sessão, sobretudo, os ensinamentos versam sobre a origem da vida. De acordo com o mesmo, corroborando com outros mestres, é durante os esta sessão que se ensina aos ALUUKHU que a vida tem origem no ovo. Portanto, no decorrer do MILEPO, os mestres explicam aos iniciandos, que a vida tem origem no ovo, a partir da união das gâmetas masculina (espermatozóide) e feminina (óvulo), formando o ovo ou zigoto. Contudo, o processo de parto, constitui tabu para as raparigas até a sua própria experiência.
A sessão de MILEPO prossegue com a representação de um enterro, conforme se descreve: os restos da massa e os ossos de galinha são utilizados, pelo ALIPA A IKANO, para moldar um «cadáver» (MURUTTHU) que servirá como meio didáctico para ensinar aos iniciandos como se enterra um morto. Nesta sessão «aula», entre os ajudantes do curandeiro, alguém cai prostrado, em agonia, fingindo-se morto. Os ALUUKHU são instados a não fugir porque devem demonstrar coragem de HOMENS. O mestre, depois, faz uma prelecção, demonstrando como se endireita a boca do morto, como se lhe deve fechar os olhos, como se lhe deve endireitar os membros, massajando-lhe o corpo para evitar a rigidez. Seguindo todas as regras inerentes à diferenciação do corpo de feminino ou masculino, o mestre ensina como se deve vestir o corpo com mortalha de pano cru.
Nos casos em que morre alguém no acampamento, embora seja muito raro, a aprendizagem é feita a partir do corpo do defunto, não precisando representar-se.
Antigamente, como o período de margem durava muito tempo, podia ocorrer a morte de alguém, entre os iniciandos, o que se aproveita para se ensinar aos iniciandos como se lida com um cadáver desde o seu último suspiro ao seu enterro. No meu caso concreto, não morreu ninguém pelo que os mestres tiveram que recorrer à representação. De acordo o Dr. Calisto PACHELEQUE, citado em BONNET (1996:44), “as mortes que ocorrem no acampamento têm várias origens, entre as quais doenças e infecções resultantes das feridas da circuncisão”.
Por vezes as mortes que ocorrem são imputados aos familiares por desobediência ao regrado consuetudinário para rituais de grande envergadura. Dir-se-á, então, que o LUUKHU foi sacrificado pelos parentes que, o trocaram pelos prazeres mundanos ao desobedecerem os tabus da MASSOMA.
Para a representação do enterro, na sessão de MILEPO, o mestre utilizando o «cadáver» moldado com os restos da comida, massa e de ossos, abre uma cova em forma de campa, e representa o enterro com toda a solenidade que a ocasião exige.
Durante esta sessão, os iniciandos aprendem, também, a direccionar a cabeça do morto e a posição do corpo, quando deitado na cova: Os muçulmanos colocam o corpo no sentido nascente-poente, isto é, com a cabeça a indicar o Este e os pés o Oeste, deitado para o lado direito com uma das orelhas a tocar a terra. Contrariamente, os cristãos enterram seus mortos deitando-os de costas, no caixão com a cabeça indicando o Poente e os pés o Nascente. Tapa-se o buraco com a participação de todos. Instrui-se os iniciandos a colocar paus ou madeira preparada para o efeito (testemunhos), nas cabeceiras da campa para evitar que com o tempo, se enterre outro corpo no mesmo espaço. Explica-se aos iniciandos depois, que no dia seguinte ao do enterro é preciso visitar a campa, segundo o mestre YANAWIREYE.
Estes ensinamentos devem ser aprendidos e fixados na memória pelos ALUUKHU. A aplicação deste saber é feita na vida prática. Se o LUUKHU na vida prática não demonstrar ou não provar que passou pela «escola» da vida, corre o risco de ser considerado MMARAVI ou MSSUNKO ou MMARAVI (não iniciado), grave insulto entre os Macua. É que a avaliação da iniciação é contínua (durante e depois do processo iniciático). O feed-back do processo obtém-se na vida prática, na relação comunidade-indivíduo, na medida em que o indivíduo, ao sair da iniciação, deverá revelar qualidades comportamentais, atitudes, hábitos e habilidades próprios de adulto na sua comunidade. Deverá esmerar-se para ser percebido como tal; por outro lado, a comunidade espera do indivíduo um comportamento que se adeque com as suas aspirações, isto é, de acordo com o perfil que ela exige para que um homem seja reconhecido como adulto, socialmente integrado, pela acção da Educação Tradicional durante os ritos de iniciação da puberdade. Aqui reside a consequência de DURKHEIM da educação: o carácter social do termo.
A sessão de MILEPO termina com a destruição da campa, pelo mestre dos conselhos de iniciação (ALIPA A IKANO) que, ao ritmo da batucada, dança por cima da mesma, significando que, o aprendido é um segredo, e como tal, deve ficar entre os presentes. O mestre explica aos ALUUKHU que nunca em brincadeiras, devem repetir o que ali viveram. Que a morte é coisa séria.
3.3.1.7.1 A prova de coragem: afagar a juba do leão (OMWASSULA KHARRAMU ou MWATTO).
À noite, depois das aprendizagens referentes ao enterro na sessão de MILEPO, os iniciandos e seus mestres transitam para o barracão NVERA. Neste barracão decorrerá a sessão da prova de coragem, designada OMWASULA KHARRAMU (tosquiar o leão). Esta sessão consiste no seguinte: na escuridão, a um canto do barracão, são colocados troncos de bananeiras. Do outro lado do barracão, ficam bem protegidos, indivíduos disfarçados que imitam o rugir de feras. Os ALUUKHU, perfilados a uma boa distância, partem um por um, empunhando azagaias, guiados e incitados pelos padrinhos em direcção ao barracão. O iniciando deve entrar sozinho no barracão e «azagaiar» uma das feras - deve acertar num dos troncos. É uma situação aterradora, pois o iniciando julga mesmo tratar-se de animais ferozes. Se o neófito não reunir a coragem suficiente para entrar ou se falhar o alvo, é severamente xingado, enxovalhado. É uma grande vergonha, e o padrinho (MALIYE) é rotulado de «fraco», pois não imprimiu a coragem suficiente e o significado de ser HOMEM durante o seu trabalho. Não cumpriu cabalmente o seu papel. Este caso, embora raro, às vezes acontece.
É um momento aterrador ímpar. Apanhei um dos meus maiores sustos da minha vida. A meu lado, o meu padrinho mantinha um silêncio sepulcral, não tugia nem mugia. Nem ao menos instruir-me como evitar que a «fera» me devorasse. Nem uma palavra, exceptuando o incitar-me a ser corajoso, e «azagaiar» o animal logo que o tivesse perto de mim, para evitar falhar. Quando me tocou a vez de avançar para a escuridão, ia numa ambivalência indescritível. Entre fugir e ser xingado, optei por avançar e morrer lutando contra a fera. Quando vi o vulto, acerca de 5-6 metros atirei-me a ele, enterrando as azagaias nele, numa luta de vida ou de morte. Gritei vitória, conforme o estabelecido. Não sei se o grito saiu direito ou se revelara meu medo. Saí para o outro lado da escuridão e fui adulado. Senti-me HOMEM.
Nesta fase, os ALUUKHU perdem quase por completo o medo. O orgulho que se vai arreigando é deveras incomensurável. Antes da sessão de OMWASULA KHARAMO, a informação que circula é que, o mestre de iniciação viria para enfiar uma espécie de sovela, em brasa, nos órgãos dos circuncisos para expurgar as últimas impurezas – um boato alimentado propositadamente pelos acompanhantes, para criar um clima de medo entre os iniciandos. Mas o sentimento que prevalece entre os ALUKHU é que o pior passara.
A dureza dos ritos de iniciação, seja ela física ou psicológica, dói no início. Com o andar do tempo, ela torna-se tão banal. A violência simbólica vai sendo filtrada para a necessidade de devotamento, de sobrevivência, de afirmação.
A ira (in)contida dos ALUUKHU, avolumada dia após dia, contra a vida dura e a disciplina de ferro imposta no acampamento é canalizada e investida no sentimento de sacrifício voluntário do que há de egoístico nos desejos e tendências naturais do homem, em proveito de uma pessoa, causa ou ideia. O castigo aplicado colectivamente serve para catalisar a coesão entre os iniciandos e, entre estes e a sociedade. No fim dos ritos de iniciação, os rapazes que passam juntos esses eventos são muito solidários e constituem uma dada classe de idade.
3.3.1.7.2 Os conselhos de iniciação (IKANO)
À noite, sentados em fila dentro do barracão NVERA, inicia-se a sessão dos conselhos de iniciação, ou seja, os IKANO, orientados pelos ALIPA A IKANO (mestres dos conselhos de iniciação), incluindo os ALIPA OWIIPA (os que cantam). Estes preparam os ALUUKHU para a recepção da mensagem do NAMALAKA (mestre principal dos conselhos de iniciação). Nesta fase, a aspereza dos tutores, no seu relacionamento com os iniciandos, parece reduzida ao mínimo, embora prevaleça um ambiente de certo rigor disciplinar. O respeito é uma exigência permanente. Contudo, a conversa entre tutores e seus "afilhados" é mais aberta. Isto deve-se ao sentimento de estar próximo o dia da saída. Cada LUUKHU procura cumprir todas as exigências dos mestres com a maior prontidão possível. Fá-lo não por "medo", mas pela interiorização do valor dos ensinamentos. O LUUKHU sente-se adulto, apesar de ainda andar semi-nu.
Os ensinamentos dados pelo NAMALAKA são feitos oralmente e visam preparar os jovens circuncisos para o futuro, como exercer os seus direitos e os seus deveres, o que podem e devem fazer e o que não devem fazer, os MWIKHO (proibições a observar), como é o caso de não revelar os segredos da iniciação. Por exemplo, o que estou fazendo, ao escrever sobre os ritos de iniciação, revelando os detalhes dum processo que só era do domínio de "eruditos", poderia ser considerado heresia, passível de condenações na lei baseada no consuetudinário. Porém, ocorrem mudanças na percepção dos mais velhos. A visão já não é a mesma dos anos anteriores.
A consciencialização de que só é possível imortalizar (conservar, manter e desenvolver) o nosso passado cultural, deixando os registos sob a forma de escrita é uma realidade. As nossas “bibliotecas vivas”, os mais velhos, sabem que não é possível manter por mais tempo a tradição oral sob as mesmas formas do passado, num mundo que tende a globalizar-se cada vez mais. Ademais, os velhos vão tomando consciência de que a vida é bastante curta em relação à longevidade que a transmissão do conhecimento exige apenas pela via da oralidade. O livro vai ganhando seu espaço. A comunicação pela fala, sobretudo a que era realizada face-a-face baseada apenas na expressão oral e na experiência dos mestres da educação tradicional, vai exigindo cada vez mais a presença da escrita (livro) como factor complementar no processo do ensino-aprendizagem e como fonte de auto-instrução.
Os conselhos de iniciação são intercalados com canções que são entoadas em linguagem esotérica. As estrofes são compostas de palavras codificadas que os iniciandos respondem em coro, traduzindo os enigmas, dando sentido às palavras do mestre. Os cantores têm dupla função: por um lado descodificar as mensagens contidas nos IKANO e por outro, manter os ALUUKHU despertos durante toda a noite, além de mantê-los num estado optimal favorável à fixação dos conteúdos.
Trata-se de canções carregadas de palavras de não muito decoro, como as seguintes linhas, conforme o meu estudo (BONNET op. cit.), o demostram:
"KARWAAKA MUNOKUINYEPA?
Quando eu vier, copularão comigo?
...................................................
KIRA NIKUWA ESHEENI?
O que significa pântano?
KIRA NANYOKO?
Refiro-me a vestíbulo vaginal?" (47).
Batendo ritmicamente as palmas das mãos, ou tocando por fricção das mãos o nó de um caniço aquático denominado ETTHERE, cortado em faixas, cujo som se assemelha ao batimento de palmas de mão, os rapazes respondem:
"NNIMONYEPANI AIYO.
Sim, havemos de «coitu facere».
..................................
NIKUWA NOONANA.
O pântano encharcado.
NINKKALA MWA NANYOKO ANY?
Parece a coisa da?..." (ibidem).
Este diálogo, por não ser normal, de palavras proibidas pela ordem social estabelecida, acaba constituindo uma oportunidade para os rapazes insultarem aqueles que, desde o início do «período de margem» o fizeram, sem que os ALUUKHU retaliassem. Sentem-se também autorizados a usar palavras dos já iniciados, dos adultos, o que os anima, ou motiva. Quando os mestres e os iniciandos pronunciam estas palavras injuriosas, os tocadores dos batuques e os cantores sobem de tom, para abafá-las (as palavras), passando imperceptíveis aos ouvidos dos não "distraídos".
O sentido daquelas palavras, é o de querer saber se os rapazes estão ou não preparados para a sessão, isto é, se irão ou não, entender a linguagem dos adultos, ao que os rapazes respondem estarem já maduros para o que der e vier. À primeira vista, parecem insultos proferidos gratuitamente. Contudo, como se pode entender, encerram um significado especial: é uma linguagem codificada.
Apesar das canções conterem estrofes de insultos e injúrias, terminam em conteúdos de moral – respeito (WUUMALA) ao próximo, aos mais velhos, aos pais ou ao padrinho - e um sentido ético, uma vez que os mestres, apelam à observância de normas de conduta social e de valores universais, e de convivência salutar entre os homens. Pretende-se inculcar no iniciando ideias sobre o saber ser e estar. É preocupação central dos mestres que os iniciandos, ao saírem da iniciação, desenvolvam bons hábitos, que se comportem como a sociedade espera dum adulto. Que suas atitudes correspondam com o seu novo estatuto.
3.3.1.8 O encerramento da "escola" da vida: a queima do NVERA e do passado pueril
Na manhã que se segue à cerimónia dos conselhos de iniciação, ocorrida no acampamento, a comitiva abandona este local, em fila, em direcção a um rio, para o banho purificador. Depois do banho, os iniciandos vestem-se de roupa nova comprada para a ocasião da reintegração social.
Durante a caminhada para o rio, em marcha acelerada, os ALUUKHU são instados a não olhar para trás. Para trás fica o passado pueril que juntamente com tudo o que lá se usou, e o barracão NVERA é incinerado pelo curandeiro. Os rapazes não deverão olhar para trás, pois podem ficar cegos e sofrer de impotência, ou esterilidade, segundo os mestres. As labaredas simbolizam o fim da vida de criança dos iniciandos e o começo da vida adulta. Portanto, olhando para trás, podem reencarnar o passado.
Abandonar este espaço em que vivi acontecimentos marcantes profundos, e, ainda por cima, vê-lo em labaredas, provocou-me um sentimento de vazio e uma nostalgia de quebrar o coração. Os ensinamentos ali adquiridos transformaram-se em sentimento de profunda identificação com toda a natureza circundante, como se fizesse parte integrante do meu ego.
Há uma lenda (mítica) que se conta acerca do local do banho purificador. Antigamente o banho era feito numa grande lagoa ou num rio. Esse local era conhecido por OMURRO (no rio) ou ONTTHYANI (na lagoa) OMMALA ALUUKHU, isto é, no rio ou na lagoa onde "os iniciandos morrem". Esta lenda estava associada à história das mortes que, eventualmente, ocorriam nos acampamentos de iniciação. Para evitar que os mestres e acompanhantes fossem inculpados pela morte dos neófitos durante os ritos de iniciação, contava-se às mães que os filhos tinham sido engolidos por uma cobra mítica aquática, de grandes dimensões chamada NIKHURRAPELA. A cobra era dita como uma representante da divindade, que era enviada para a cobrança de um "sacrificado" entre os iniciandos. Portanto, o LUUKHU desaparecia como o sacrifício necessário para o engrandecimento da etnia, da sociedade. E não eram necessárias mais palavras para justificar-se os desaparecimentos. Isto estava ligado ao tal silêncio que se exigia dos participantes, de não revelarem o que se passa(va) nos ritos de iniciação, na escola da vida.
Depois do banho, vestidos e perfumados, os ALUUKHU recebem dos padrinhos instruções consolidativas do aprendido de que nunca devem revelar o que viram, ouviram e fizeram durante o período de margem. Assim, depois de vestidos, empunhando o bastão MOSHORORO, que simboliza maioridade e virilidade, dirigem-se ao alpendre real, EPWARRO, onde decorrerão os últimos conselhos, os conselhos de reintegração social.
MOSHORORO (símbolo fálico) é um bastão enfeitado com penas de aves raras, que o LUUKHU confecciona nos últimos dias de acampamento, sob a batuta do padrinho, e tem o valor simbólico de certificado de maioridade.
O primeiro acto sexual do iniciando, depois dos ritos de iniciação, designa-se WUNTA MOSHORORO (partir o bastão). Dantes, era direito da esposa do padrinho iniciar sexualmente o LUUKHU, afilhado do marido, a fim de se certificar sobre as suas aptidões sexuais É uma prática em desuso. Esta forma de violência também ocorria com relação às raparigas submetidas aos ritos de iniciação. Na região do distrito de Malema, segundo Rosa MAIÓPWE[76], as raparigas eram iniciadas sexualmente por um sujeito, dito curandeiro, um hábito também há muito banido.
3.3.1.9 Do banho purificador aos IKANO de reintegração
Os conselhos de iniciação são repetidos no alpendre real, na presença de todos os pais e marcam o fim do período de margem ou de segregação.
Pode-se dizer que os conselhos de iniciação dados no alpendre real têm a função de permitir o domínio e consolidação de toda a teorização vital aprendida durante o período de margem e na última noite do NVERA visto que os ALIPA A IKANO repetem a matéria com maior labor. Um facto muito importante é que estes conselhos decorrem na presença das mães e de todos os membros da comunidade «adulta» que queiram participar, revivendo também, os momentos marcantes das aprendizagens durante os ritos de iniciação.
Constitui também um momento de reflexão e confirmação para as mães e os presentes: porque todos devem questionar-se se têm aplicado correctamente, na vida prática, tudo o que aprenderam, e que resultados têm obtido (auto-avaliação); por outro lado, é um rito que confirma, perante eles, que os rapazes foram realmente iniciados sobre a vida.
À semelhança dos conselhos de iniciação dados no NVERA, os conselhos no EPWARRO (alpendre) do MWENE (autoridade tradicional), duram toda a noite. A população festeja o regresso e a reintegração dos seus jovens.
3.3.1.10 O regresso à casa: festa na aldeia (OKHUMA WA'LUUKHU)
Realizados os rituais do alpendre real, os últimos IKANO, cada família leva seu(s) filho(s) de regresso à casa, em cuja varanda o LUUKHU pendura o bastão MOSHORORO.
O regresso é marcado por um ambiente festivo. A festa agrega a família, há um banquete memorável e danças como NSOPE, TTEPETTE, NSIRIPWITI, entre outras.
Chegados à casa, sentados num alpendre, construído e engalanado para o efeito, seguem-se as agraciações (ITTHUVO). Os padrinhos são agraciados com dinheiro e outras prendas.
A festa prolonga-se pela noite adentro. É o reconhecimento social, a reintegração social do LUUKHU que deixa para trás um período diferente, reintegrando-se na vida social, com um novo estatuto e um novo nome. Durante a iniciação, os Macua podem mudar de nome por duas vezes, o que varia de grupo para grupo. O jovem regressa com estatuto de adulto, membro de pleno direito da sociedade, no seio da qual sabe ser e estar, sabendo-se avaliado em cada acto. O novo membro sabe que deverá revelar novas atitudes, habilidades, novos hábitos adquiridos durante os ritos de iniciação.
A comunidade inteira participa na reintegração social do jovem homem novo, que volta com a personalidade vincada, preparado para a vida, já «adulto».
BERNARDI (1997), sobre a questão, escreveu o seguinte:
“Os efeitos da iniciação são de ordem psicológica e de ordem estrutural. O jovem quando sai da iniciação, leva arreigado no espírito o sentido de dignidade que o separa já dos rapazes [não iniciados], e o seu comportamento reflecte esta consciência como se fosse verdadeiramente homem novo” (97).
Aos olhos da comunidade é, de facto, verdadeiramente homem novo, pela mudança de «status» social que a MASSOMA lhe atribui com todos os direitos e deveres a ele inerentes.
3.3.2 Ritos de iniciação de puberdade das raparigas (IKOMA)
Escrever sobre os ritos de iniciação das raparigas é tarefa deveras difícil, por duas razões: a primeira está relacionada com o segredo que envolve esses ritos, cuja realização permanece, ao longo dos tempos, apenas no domínio das mestras dos ritos de iniciação e das mulheres. As raparigas a eles submetidas em tenra idade, quando entrevistadas, dificilmente revelam com precisão o que realmente ocorre. A segunda razão reside no facto de ser quase impossível descrever os ritos iniciáticos femininos a partir de fora, isto é, a partir de informações de terceiros. Ainda não há mulher Macua que se tenha dedicado à pesquisa e divulgação do assunto.
Muitas Mulheres (já iniciadas) quando entrevistadas, quase que nada revelam de substancial. Pode haver três explicações para tal atitude, embora não exclua uma quarta possibilidade: a primeira pode estar relacionada com a necessidade de observação do tabu. O silêncio que os segredos da iniciação impõem; a segunda pode ser que se tenham esquecido dos pormenores, visto terem passado pelos ritos em tenra idade. Mas a situação parece-me pouco provável que todas sofram de amnésia. Pode-se entender o esquecimento parcial dos factos, mas esquecerem-se todas elas de importantes informações que fazem parte do quotidiano da vida inteira, é inacreditável; a terceira pode ser a dificuldade de expor a público suas intimidades. Eu inclino-me para a primeira e a última das possibilidades: a observação rigorosa do tabu, no sentido de proibição convencional imposta por tradição ou costume a certos actos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como sagrados, especiais ou impuros e que não pode ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social.
Já em 1993 enfrentei essa dificuldade. Outros pesquisadores haviam-me alertado sobre o facto. Acreditava na minha capacidade de interacção. Porém apesar de tudo, esta pesquisa ficará também muito incompleta, embora seja de reconhecer que houve avanços, principalmente ao adoptar o método participativo, explicando às entrevistadas a importância de deixarmos registados pela escrita, factos históricos da nossa educação autóctone tradicional, com vista a passar o conhecimento cultural apenas sob domínio das nossas "bibliotecas vivas", dos mais velhos para as novas gerações, visto que a morte de cada idoso equivale a queima e perda irremediável de uma biblioteca, com todas as consequências daí resultantes, exactamente porque as pessoas são relutantes em falar de certos assuntos.
A passagem do testemunho para novas mestras é feita no seio de parentes consanguíneos, de mãe para filha ou tia para sobrinha uterina e exige anos de prática ao lado da mestra; a segunda razão reside no facto de os ritos de iniciação serem exclusivamente de assistência feminina. Nenhum homem poderá gabar-se de ter presenciado totalmente os ritos de iniciação, senão os conselheiros (ALIPA A IKANO), que podem ser do sexo masculino, mas mesmo esses, sofrem restrições. E, entre os autores que se terão debruçado sobre o fenómeno, não tenho conhecimento da existência de mulheres pesquisadoras, o que torna quase impossível fazer uma descrição precisa. Penso que é por esta razão, que nos refugiamos na sempre “cómoda” saída de que os «ritos de iniciação femininos são menos complexos, menos espectaculares», em vez de dizer que a informação sobre eles é de difícil acesso. Desvendar os segredos dos ritos de iniciação constitui um grande desafio para os investigadores.
À semelhança dos ritos de iniciação dos rapazes, a realização dos ritos iniciáticos da puberdade femininos era sancionada pelas autoridades gentílicas. Hoje, com a urbanização acelerada e com a debilitação das autoridades tradicionais, - pelo modernismo das autoridades constitucionais -, os ritos de iniciação perderam o carácter colectivo de outrora. Uma única família pode organizar ritos para uma ou duas filhas, assumindo assim um carácter particular, privado. Apenas os ritos de iniciação dos rapazes continuam a ter um carácter de grupo, colectivo.
As meninas têm, geralmente, os seus ritos de iniciação de puberdade menos aparatosos, menos espectaculares, se comparados com os dos rapazes. Têm um «período de margem» ou isolamento mais curto. Pensamos que isto se deve ao facto de a mulher começar muito cedo com a sua socialização específica, isto é, a diferenciação sexual por actividade nas raparigas começa muito mais cedo do que a dos rapazes. Desde os primórdios da vida, ela é sujeita a uma educação mais orientada. Sob os cuidados da mãe ou da avó, ela vai assumindo as tarefas próprias da mulher na família, no lar. Contrariamente, o rapaz, até aos seis ou sete anos ainda anda «agarrado» à capulana da mãe e brinca entre as meninas.
Como disse, a rapariga, desde muito cedo, é habituada a cuidar dos seus irmãos mais novos, aprende a cuidar do lar: acarreta água do rio ou do chafariz, lava a loiça, cozinha, etc. Observando-a a brincar, sozinha ou em grupo, vêmo-la sempre assumindo o papel de dona de casa, o papel de mãe. Monologa com sua boneca, admoestando-a por uma «traquinice» cometida, como se de um filho se tratasse.
No verdadeiro sentido da palavra, a rapariga é confinada a um espaço bem limitado. Ela perde parte da sua liberdade, da igualdade com o homem, logo após o seu nascimento, quando os pais se apercebem que o ser recém nascido é do sexo feminino.
Nas sociedades africanas tradicionais, a violência contra a mulher assume contornos ideológicos, que se fundam na mitologia. A mulher é sempre vista como aquela que tem um papel secundário na vida social (quer em sistema matrilinear, quer em sistema patrilinear, principalmente no último).
A mulher foi sempre excluída, desde as primeiras sociedades, por causa das suas características fisiológicas, principalmente a diferença na força física em relação ao homem e da maternidade. A mulher, ao invés de participar na caça, lado a lado com o parceiro, foi remetida a trabalhos que não exigiam maior aplicação física. Foi remetida à recolecção e aos cuidados dos animais domésticos de pequeno porte, além de cuidar dos filhos e dos idosos. Portanto, os primórdios da divisão social do trabalho remeteram-na a papéis sociais que até hoje os homens teimam em manter. Ela é, desde tenra idade, acostumada a submeter-se. Como podemos ver, a luta da mulher pela igualdade e reconhecimento vem de tempos muito remotos.
Com o advento da puberdade, os ritos de iniciação a ela referentes, não apanham as raparigas tão desprevenidas como os meninos. Aliás, os ritos iniciáticos das raparigas só ocorrem quando elas atingem a sua maturidade biológica ou fisiológica, isto é, quando ocorre a primeira menstruação. Nesta idade, a sua experiência social já é mais alargada, a sua socialização é mais desenvolvida em relação ao rapaz ao entrar na iniciação.
Em Moçambique não há informação da existência da clitoridectomia. Entre as Macua não existe a clitoridectomia (excisão do clitóris), isto é, a circuncisão feminina, nem mesmo nas comunidades islamizadas, à semelhança do que ocorre em alguns países da África Ocidental.
A circuncisão feminina ou clitoridectomia é praticada em alguns países, Ghana, Mali, Nigéria, Sudão, Tanzânia e justificada como sendo uma lei do Alcorão, o que é desmentido por alguns muçulmanos entrevistados que acham que, de acordo um anónimo apud BONNET (1996),
“Isso pode ser o reflexo de uma interpretação muito subjectiva de alguns fundamentalistas que acham que a mulher sem o clitóris é um passo dado para a moralização da sociedade, porque acham que a mulher não sentirá o prazer sexual e toda a tentação a ele inerente. Assim, o seu papel de propriedade do marido e reprodutora de filhos não sofre fissuras, o que é uma visão lamentável” (54).
Sobre a clitoridectomia, Rosa Maiopwe, corroborada por Marta Mendes e Lurdes Kanyaua, referenciadas por BONNET (op. cit. ibidem), indagaram como poderiam aceitar a amputação do clítoris das filhas, se isso choca com os seus preceitos culturais. Pelo contrário, cultivam o hábito de distender os pequenos lábios vulvares (ITHUNA) com o óleo ou a massa das sementes da planta KHARAMUTTA, IPHARI ou NACHORA (IPHICI), ou ainda óleo de sementes de rícino (MUKHURRYA), para que atinjam maior tamanho possível, pois neles reside a sua realização sexual e a do marido. Como se pode depreender, no dizer destas entrevistadas, a hipertrofia do clitóris é considerada condição para a felicidade da mulher, na sua relação com o marido.
A rapariga, em contacto com as mais velhas, apercebe-se de que estas ostentam tatuagens nas coxas e na barriga. Repara que a mãe usa missangas na cinta e no pescoço além de outros adornos. Socializa sua importância e sua função. Quando atinge a idade convencional, é também tatuada e passa a usar seus próprios adornos, identificando-se com o que vive no seu quotidiano. Esta identificação resulta de uma aprendizagem efectiva pela absorção dos inputs culturais. É uma aprendizagem participativa, apesar de ser fortemente impositiva.
Os ritos Macua de iniciação femininos realizam-se em várias etapas bem definidas, separadas entre si por longos períodos, pelo que podemos falar de um amplo processo de iniciação, assinalado por alguns ritos mais importantes (MARTINEZ, 1989:139). Estes ritos diferem também de região para região. Contudo, convergem todos num ponto comum: visam preparar as jovens para a vida, sancionando o seu ingresso na comunidade dos adultos. Acerca destes ritos MARTINEZ (op. cit.), escreveu:
“Trata-se de ritos de separação do mundo infantil e assexuado e ritos de agregação à sociedade, como pessoa adulta e como mulher. Estes ritos coincidem, nos seus momentos mais importantes, com certos períodos mais característicos do desenvolvimento psicológico da jovem, sem, todavia, se chegar a uma identificação de puberdade física e puberdade social” (ibidem).
A iniciação feminina compreende as seguintes fases: A explicação ou OHIMERIA ou OTTIKITTHIA; OPOPHEIWA; WIINELIWA ou OSHILEIWA. A última, é uma cerimónia mais alargada que inclui os conselhos de iniciação IKANO, além de OKHUMA e OSSINGUIA: ritos de preparação para a vida conjugal praticados entre os Macuas do interior e islamizados.
O número e o tipo dos ritos de iniciação feminina variam de comunidade para comunidade, como é o caso da prática de incisões no clítoris de alguns grupos Macua do interior que em outros grupos não se realiza. O tempo de duração das danças relativas à iniciação também varia de grupo para grupo. Não há tempo fixo determinado. Durante os encontros nocturnos, as mestras procuram ensinar à rapariga os conhecimentos necessários para a nova etapa da sua vida.
3.3.2.1 Primeiro rito pós-menstruação: a sessão de explicação (OHIMEERIA ou OHIMEERIWA)
Logo que a mãe toma conhecimento da ocorrência da primeira menstruação da filha (WUULA), eufórica comunica à madrinha da sua filha (MALYE ou POSIYE), a chegada da sua menina à condição de ser mulher. À noite, quando o pai volta das suas ocupações, é informado da boa nova. Segue-se o período de preparação do dinheiro para a sessão de OHIMEERIWA, para pagar as mestras e custear o lanche que é dado às convidadas na ocasião. É uma cerimónia simples e restrita, presenciada pela mestra principal (NAMUKO MUULUPALE) com mais quatro ou cinco ajudantes (ANAMUKO), pela madrinha e por uma anciã, chamada MULIPA A NIVAKA (a mulher da lança), além de vizinhas convidadas.
Nesta sessão, a rapariga começa por sofrer um cerrado interrogatório. Uma investigação acompanhada de ameaças na tentativa de se saber se o fluxo sanguíneo não fora provocado por uma relação sexual clandestina. Durante este interrogatório a rapariga pode sofrer sevícias. Só depois de concluído tratar-se de uma menstruação natural (a primeira), a mestra principal (ou NAMUKO MULUPALE) explica à rapariga o significado do primeiro fluxo menstrual.
Segundo Arina RAMADANE[77], corroborada por outras, os ensinamentos consistem, fundamentalmente, no seguinte:
- Explicação sobre o facto fisiológico da menstruação e sobre os cuidados higiénicos que a jovem deve ter dali para frente.
- Como se deve comportar com as outras pessoas da comunidade: durante a menstruação não deve fazer movimentos bruscos susceptíveis de fazer cair o penso higiénico; deve sentar-se, caminhar e comportar-se em público com muito recato, porque está a viver um período especial de segregação e marginalização na sua vida; deve falar em voz baixa e com a cabeça ligeiramente reclinada;
- A forma de vestir: durante o período, a rapariga muda radicalmente de forma de vestir. As raparigas do interior usam roupa velha, não se pode embelezar usando objectos de adorno como pulseiras, anéis colares, etc. e em algumas regiões, nem se deve pentear ou trançar o cabelo; no litoral, a rapariga, durante o dia, fica dentro da casa. Durante este período de margem, a rapariga maquilha-se, pintando todo o corpo com MSIRO, cosmético tradicional, massa de um tronco de uma árvore do mesmo nome. Trata-se de tipo de arbusto de cujo pedaço de tronco se esfrega sobre uma pedra, fazendo-se uma massa esbranquiçada. Esta massa branqueia e amacia a pele. Ainda durante este período, em algumas regiões do interior, a rapariga é tatuada nas coxas ou na região púbica, distende os grandes lábios vaginais, que os mais velhos, nas conversas em privado, dizem provocar muito gozo;
- Trabalhos caseiros: preparação da comida, limpeza e cuidados de casa;
- Por vezes como as raparigas passam pelos ritos de iniciação depois de casadas, ficam proibidas as relações sexuais durante este período.
Isto tudo é para indicar à gente o período especial em que se encontra.
A mestra explica à rapariga que tal fenómeno representa o fim da infância e que deve evitar «brincar» com rapazes, porque está apta a conceber. A mestra ensina-lhe o uso do NAKAPA ou MUKONTTA (penso higiénico), e a manter a higiene corporal. Ensina-lhe também sobre a necessidade de manter o penso fora da vista de outras pessoas.
A instrução das regras de uso do penso é representada pela mestra que se despe e simula a colocação correcta do penso.
A rapariga é instruída sobre as regras comportamentais a observar em público: durante o período não deve passar por cima de alguém, não deve pôr sal na comida, porque pode provocar doenças graves às pessoas que comerem o que ela salgou, inclusive hérnia ao homem (no entender de algumas entrevistadas). No meu entender, é um discurso que pretende justificar o tabu de «estado de poluição», segundo o qual uma mulher no período menstrual encontra-se num estado de poluição, período em que deve observar algumas proibições. Entre as proibições está uma absoluta abstinência de manter relações sexuais, mesmo quando casada.
3.3.2.2 Período de margem (OPOPHEIWA OU OVOLOIHIWA IMWALI)
É uma cerimónia que junta muitas mulheres (já iniciadas), durante a qual cantam e dançam, numa euforia desmedida, soltando ILULU - grito gutural das mulheres em sinal de alegria. Aliás os gritos ILULU são parte integrante dos ritos de iniciação femininos das Macua.
Este ritual visa assinalar o começo do período de margem, um período de segregação social, marcado pelo rito de separação. A rapariga manter-se-á sempre dentro de casa ou no quintal para não se avistar com pessoas estranhas. Assim, diz-se que «entrou dentro de casa» (OVOLOWA MPAA ou APOPHEIWA). Quer dizer, separa-se das convivências habituais, do mundo da infância, da ignorância. Antigamente, o isolamento era quase total e durava um ano.
Depois do rito de OPOPHEIWA, as raparigas mantêm-se dentro de casa, cumprindo o seu «período de margem», que termina após a realização dos outros ritos de iniciação.
Durante o longo retiro, por todo o tempo que estiver enclausurada, a rapariga só pode ser visitada por mulheres. A mãe e as amigas consagram-se então no ensino da donzela, que é instruída em tudo o que interessa ao seu papel na comunidade e à função de mulher.
A mestra dos ritos de iniciação e suas auxiliares, representando o homem e a mulher, exemplificam todas as situações da vida familiar, todas as cenas da vida conjugal. A vida íntima, os deveres da mulher para com o marido e os processos para conseguir maior prazer. Nada é esquecido. Simulam-se todos os desejos susceptíveis a um marido ardente e a forma de os satisfazer. Acerca do que se ensina nesta sessão, MACHADO (op. cit.), escreveu:
“É durante este tempo que a rapariguita se entretém e as amigas que a visitam, a puxar e a distender os lábios vaginais ([ithuna]), que chegam, na mulher adulta, a atingir o desenvolvimento de 10 centímetros e mais! A prática dá-lhe prazer; mas sobretudo aumentará o prazer do futuro marido, que muito apreciará, se a mulher apresentar grande desenvolvimento dos ditos órgãos. E nos preâmbulos amorosos que antecedem a cópula terá lugar o onanismo conjugal que ambos não dispensarão («puxar [ithuna]»)” (213).
Para a desgraça da rapariga, não se lhe ensina como «ser para si», mas sim, «ser para o outro». Alguns ensinamentos dos ritos de iniciação são uma espécie de instrumentalização sexual que inconscientemente se vão interiorizando na rapariga, o que a tornam submissa aos caprichos do companheiro, inclusive a aceitação passiva e fatalista da poligamia do marido. O culto exacerbado dos encantos carnais limitam outros valores e capacidades que deviam ser incentivados na rapariga, como por exemplo, a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, o aprender e exercer uma profissão.
Na sociedade tradicional Macua, os divórcios são muito frequentes, exactamente pela precariedade das bases culturais em que assentam os casamentos tradicionais. O homem pode, por regra consuetudinária, bastante impregnada pelas regras do Alcorão, ter sete esposas. Por vezes isso resulta em abandono de ninhadas de filhos, entregues à sua sorte.
As rápidas mudanças sócio-culturais que se operam em Moçambique, vão provocando profundas fissuras na sua estrutura familiar. O sistema matrilinear no qual assenta a organização familiar da sociedade Macua, ressente-se fortemente das influências das mudanças que se operam no conceito de família. A família alargada, onde os sobrinhos uterinos faziam parte do agregado do tio materno, vai sendo substituída, aos poucos, pela família restrita aos cônjuges e filhos.
O sistema matrilinear da sociedade tradicional está a ser abalado pela base económica do sistema capitalista. Embora o tio materno continue sendo o principal tutor dos sobrinhos, filhos da irmã uterina, já não pode assumir totalmente o sustento daqueles. Consequentemente, estas crianças vão engrossar a legião dos meninos da rua fenómeno que até há pouco tempo era raro assistir nas cidades onde predominantemente vive a sociedade Macua, as situadas na Província de Nampula. Mesmo no período da recente guerra terminada em 1992, o fenómeno "meninos da rua" ou "crianças abandonadas" não existia como nas restantes cidades do Paes, onde predominam as sociedades de sistema patrilinear.
A modernidade, baseada em valores universais de justiça social, impõe mudanças na estrutura tradicional e a mulher, ao ser ensinada nos ritos de iniciação a «ser para o outro» e não a «ser também para si», perpetua a sua dependência em relação ao marido, daí a necessidade urgente de mudanças em alguns conteúdos da educação autóctone tradicional, principalmente na imposição arbitrária de um modo de ser dogmático, arcaico, fundamentalista. Isso poderia, talvez, contribuir para uma nova ordem nas relações de parentesco, o que revalorizaria a mulher e o casamento.
É importante abrir um parênteses para explicar um facto muito importante: no interior, as raparigas entram no período de segregação social logo depois do rito de OHIMEERIWA. No entanto, no litoral fazem-no logo após OPOPHEIA ou OPOPHEIWA. Contudo, depois de ouvir várias entrevistadas, fiquei com a ideia de que OHIMERIWA e OPOPHEIA são a mesma coisa, pois as actividades pedagógicas que se realizam neles, não diferem muito. O problema é o das diferenças dialectais e culturais regionais, como me referi anteriormente.
3.3.2.3 Ritos de "ser dançada" (WIINELIWA OU OSHILEIWA)
Estes ritos podem durar dois ou três dias e são mais abrangentes em termos de conteúdo, do número de iniciandas (IMWALI) bem como das mulheres que vêm “iniciar” ou "dançar" as neófitas. WIINELIWA significa literalmente "ser dançada". Não tem tradução em português. Aliás, traduzindo o termo WIINELIWA não teria o mesmo "sabor" que quando dito em Macua,
Enquanto decorre o período de preparação dos ritos principais, mais raparigas que tenham tido a primeira regra menstrual juntam-se às outras, para (juntas) serem iniciadas, isto é, participarem nos mesmos ritos de iniciação. Todavia, os ritos podem ser singulares, realizados para uma única rapariga e por isso por vezes assumem um carácter de ensino individual.
Os ritos relativos à WIINELIWA iniciam com o sacrifício tradicional (MUKUTTHO) à semelhança dos rapazes para pedir aos antepassados que protejam as meninas e para que tudo decorra sem sobressaltos.
As danças são executadas com as mestras e IMWALI seminuas, vestidas apenas de tangas (MUKONTTA). Danças como NEKOOKHUNYO, MAKYEKYE e outras marcam os ensinamentos.
É o dia de tagarelar, palestrar, galhofar. As senhoras exibem seus "artefactos": missangas e tatuagens. Há também uma iniciação sexual: Ao som da batucada e das canções os corpos ensinam às neófitas movimentos lascivos (OKHONYA), eróticos. Com um pau esculpido em forma de pénis, as raparigas aprendem como «tratar» seus maridos depois de casadas. “A linguagem é obscena, isto é, as mulheres chamam as coisas pelos nomes e só em raras ocasiões recorrem ao eufemismo, por exemplo dizer "bicho" ao referir-se ao órgão genital” (Rosa MAIOPWE).
WIINELIWA ou IKOMA SOLUPALE, traduzido literalmente, significa "ser dançada" ou "danças grandes". Elas marcam um dos últimos ritos de iniciação da puberdade femininos. Como diz Sofia DAVID, vulgo APIA NAKHUTTE[78], apud BONNET (1996:58-59), “... trata-se de ritos de consolidação (IKOMA SOOLIPIHA), de reforço dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida, incluindo os do OHIMEERIWA e OPOPHEIWA”.
As raparigas, vestidas só de tangas de PAAFUTA ou KANIIKI (pano cru), seguradas na cinta por um fio de MKHUTTA, espécie de palmeira brava (o que na língua local se diz: NKONTTA WA PAAFUTA NI NSIFI NA MKHUTTA ou simplesmente OWATELA MUKOTTA), são perfiladas à frente das senhoras convidadas. É chocante estar-se nu à frente de pessoas desconhecidas ou por quem sempre nutrimos e rendemos o respeito. As raparigas sentem-se desnudadas até à alma. À sua frente, as mestras cantam e dançam, representando várias situações da vida para que elas assimilem os procedimentos.
As canções de iniciação são, como disse anteriormente, em linguagem esotérica com insultos e injúrias à mistura. As canções e as representações psico e sociodramáticas constituem os principais meios da realização da função didáctica da transmissão (mediação) e assimilação.
Do quarto onde permanecem encafuadas para o quintal onde decorrerão os principais ensinamentos, as iniciandas saem dançando NEKWAKWINYO, uma dança que se executa com os cotovelos e joelhos apoiados no chão, uma posição que, para além de incómoda, é bastante dolorosa. Por vezes, as pedrinhas de areia penetram lacerando os joelhos e os cotovelos. Ai da inicianda que se levantar ou queixar-se de dores! Ela e a madrinha passarão maus bocados.
Ao cair da noite, dançam KAARRARE, MORRO, MAKYEKYE, e sob orientação da mestra, aprendem os segredos do fogo. Trata-se de uma "aula" cantada e dançada, com a mestra a narrar, sob a forma de fábula, de provérbios, o surgimento do fogo e o seu significado na vida da humanidade. Importa esclarecer que a dança MORRO (fogo), em alguns grupos Macua, só se realiza durante os ritos de OKHUMA.
À semelhança do que ocorre nos ritos iniciáticos dos rapazes, também às raparigas se ensina o método de fazer fogo com o uso de NIVAKO. Durante os ritos de iniciação, o fogo que a(o) curandeira(o) acende por fricção da ervilheira, utilizado para iluminação e para se afinarem os batuques, é conservado através da planta EVELO ou a palha de coco. Este fogo tem um grande valor simbólico. É referido como «fogo novo». No final dos ritos, as populações levam-no em tochas para as suas casas, para iluminação e para cozinharem. Simboliza vida nova para os seus lares.
3.3.2.3.1 A prova do passado comportamental
Na madrugada do dia do encerramento, as IMWALI, as mestras e as madrinhas (ASHIMAALY) dirigem-se a uma mata próxima, onde as mestras repetem os ensinamentos sobre o modo de ser e estar. O comportamento negativo anterior das neófitas é fortemente criticado. As raparigas e suas madrinhas, depois de terem sido instruídas para o que se segue, na companhia de suas cunhadas, caso sejam casadas ou noivadas[79], vão procurar uma planta designada NSHILEA MWALI. Ao arrancar esta planta, a rapariga que encontrar uma raiz aprumada, sem outras raízes a enrolarem-se-lhe, é tida como de bom passado comportamental, de bom remédio (MURETTE WORRERA). Mas a rapariga que encontrar uma raiz fasciculada, com outras raízes nela enrodilhadas é ridicularizada e chamada de prostituta e outros epítetos pouco abonatórios, pois significa que não tem um passado comportamental bom, que já teve vários homens e, por conseguinte, o remédio é mau (MURETTE WOOTAKHALA).
Antigamente, a mestra vergastava e repreendia severamente a rapariga que tivesse encontrado a raiz fasciculada, pelo que deveria confessar as suas faltas. As outras, as de raízes aprumadas eram felicitadas pelo seu passado. Nenhuma das entrevistadas soube explicar como se provava a veracidade dos factos que levavam à condenação as raparigas de raízes fasciculadas, o que nos leva a pensar que se tratava de encontrar uma forma de representar uma situação de mau comportamento, mesmo que não fosse real, apenas para inculcar nas raparigas a ideia de que é necessário evitar a infidelidade e que existe uma força extraordinária que sempre sanciona o que é irreverente. Trata-se de uma forma de moralização. Contudo, as mestras e todas as entrevistadas acreditam na veracidade da raiz da planta NSHILEA MWALI.
Durante a sua permanência no mato, os ensinamentos referentes à higiene íntima feminina são repisados. Com recorrência a figuras de estilo, as mestras metaforizam o mau cheiro que uma mulher pode exalar se não observar, com rigor, as regras higiénicas, comparando-a com o odor do zorrilho (Conepatus suffocans) ou civeta (Civettietis civetta), conhecido por ONYIPI, pequeno animal carnívoro, com um cheiro muito forte e bastante desagradável que, no entretanto é caçado.
Depois desta sessão, a comitiva regressa ao cair da noite, dirigindo-se para o alpendre real, onde terão lugar os conselhos de iniciação (IKANO).
Os ensinamentos do OMIRINI terminam ao anoitecer, possivelmente para dar tempo à(o) mestra(e) conselheira(o) (MULIPA A IKANO) para se preparar, isto é, preparar o rito de MILEPO (aula de leitura e contagem dos símbolos do ciclo vital).
3.3.2.3.2 Os conselhos de iniciação (IKANO)
Os IKANO são acompanhados de canções e batucadas. Inicialmente as canções e batucadas são para acompanhar a construção das pirâmides de MILEPO. Os meios usados nesta sessão são os mesmos que se usam nos ritos de iniciação dos rapazes. A sequência dos acontecimentos é quase idêntica: o pano é estendido no chão e fixo por pequenas estacas. Sobre este pano constroem-se as pirâmides de farinha de mapira, dispostas em duas circunferências concêntricas. Ao todo as pirâmides são dezasseis, sendo no primeiro anel dez pequenas. No segundo anel (interior) estão cinco, a rodearem a maior ao centro, formando um pentágono. Todas as pirâmides são ornadas de EKHAMA (pó a cores – preta e vermelha).
A construção das pirâmides é feita com o auxílio de dois tipos de facões, próprios para o efeito: um com e outro sem ponta. A farinha é previamente molhada para se evitar que se espalhe pela acção do vento. A preparação do MILEPO é uma cerimónia à parte, é preparada entre os ALIPA A IKANO, a um canto do alpendre real, longe das mulheres e das iniciandas. Conforme vão completando as pirâmides, os mestres vão andando em roda à volta das mesmas. Concluída a construção, as pirâmides são tapadas com uma peneira sobre a qual também se constroem outros símbolos que, à semelhança dos anteriores, são ornados com sulcos do pó a cores. É uma codificação simbólica muito sofisticada.
É a partir destas pirâmides sulcadas de preto e vermelho que o(a) mestre(a), recorrendo predominantemente aos métodos expositivo e à dramatização (representações psico e sócio-dramáticas), faz a leitura dos fenómenos da vida, sob o olhar atento das "alunas", suas madrinhas e todo(a)s (o)as presentes. Segundo MARTINEZ (1989),
"O povo Macua sente-se profundamente unido ao conjunto da natureza e de maneira especial às forças vitais. Na sua cosmovisão, considera a vida (EKUMI) como o eixo da roda da existência e como a meta para a qual todos os homens caminham, e para onde todos os indivíduos e toda a comunidade regressa, pois dali saíram um dia. Por consequência, tudo o que possa desenvolver e enriquecer a vida é considerado um valor fundamental; e, ao invés, tudo aquilo que, na sociedade, de alguma maneira, a possa ofuscar ou destruir é considerado como uma desgraça, um mal e contravalor fundamental.
A vida é, portanto, a lei fundamental e a aspiração suprema da sociedade Macua; a vida penetra toda a textura comunitária, está presente em cada uma das estruturas sociais e aparece nas suas expressões culturais, caracterizando a sua maneira de ser, de pensar e de estar no mundo" (83).
Nos ritos de iniciação, a vida é motivo de constantes abordagens. A iniciação é a própria vida. Na óptica de MARTINEZ (op. cit.: 87), "viver é, pois, um processo de separação e de incorporação, uma sucessão de saídas e entradas relacionadas entre si, um contínuo morrer e renascer". Para a realização desta mudança contínua dos membros da sociedade, sem perigo para a coesão interna e para a continuação da própria comunidade, a sociedade estabelece uma série de normas e mecanismos: os "ritos de passagem", dos quais o ritos de iniciação constituem seu apogeu, fazem parte desses mecanismos.
A. Van GENNEP, referenciado por MARTINEZ (op. cit.), afirma que nos "ritos de passagem" passa-se de um fase à outra num contexto rico de símbolos e imagens. A sacralidade de cada momento é protegida por uma série de proibições e de normas positivas.
Em algumas regiões, para a "aula" sobre a vida, usam-se também fios de missanga de diferentes cores: vermelha e preta (os símbolos das fases do período menstrual), segundo o mestre YAPWIRIPWIRY[80], corroborando YANAWIREYE,
“... o ciclo biológico, ele é idêntico em todas as sociedades: nascimento, puberdade, matrimónio e morte. (...) ensinamos as IMWALI que a vida tem origem no ovo, a partir da sua formação, a partir da união dos órgãos genitais do homem e da mulher. Contudo, às raparigas não se explica o processo do parto, constituindo tabu até a altura própria”.
Apesar de os ritos de iniciação femininos serem reservados à presença exclusiva das mulheres e nenhum homem poder presenciar, abre-se uma excepção no que se refere aos ritos do IKANO, isto é, os conselhos às raparigas podem ser dados por homens. O contrário só pode acontecer quando são ritos finais, aqueles que são para casais. Há casos em que uma mestra orienta IKANO finais, para rapazes e raparigas. São os IKANO SO'KHUMA realizados em conjunto para marido e mulher.
Os métodos usados são muito semelhantes aos aplicados nos IKANO dos rapazes. Os conselhos são dados em forma de representação, o que visa desenvolver a empatia ou a capacidade de desempenhar correctamente os papéis de esposa e mãe. O(a)s mestre(a)s explicam e ensinam às IMWALI - as várias tarefas específicas da vida no lar; o papel (próprio) da mulher no processo de produção agrícola, no que se refere à sementeira e colheita; as tarefas da mulher na construção de uma casa (acarretar água, amassar o barro, rebocar e, por vezes, também pintar as paredes); as normas de protocolo (o comportamento nas viagens, perante estranhos, a vida em sociedade em geral); como cumprimentar os nobres MAHUMO, os adultos e todas as outras pessoas; como receber ou entregar qualquer objecto (com as duas mãos), seja de e para quem for; as proibições ou tabus (MIIKHO), os perigos do incesto e as leis da exogamia[81]; como agir em situação de conflitos de vária índole (conjugais, inter-familiares, etc.).
As raparigas, cheias de sono por causa de noites consecutivas sem dormir convenientemente, vão batendo palmas, cantando em coro, repetindo ou descodificando as palavras da mestra ou do mestre (ALIPA A IKANO ou ALIPA OOLAKA), repetindo inclusive os gestos das mestras. O corpo também participa na aprendizagem, uma vez que os ritos de iniciação valem-se de uma pedagogia de acção, onde todos os sentidos são chamados a intervir. O cansaço, o sono, as injúrias constantes visam que as iniciandas atinjam o transe necessário para "interiorização" involuntária dos conteúdos.
No final da sessão de IKANO, as raparigas têm de identificar, entre as peles de tantos animais que o ALIPA A IKANO usa, a do ONHIPI, o que significa que o bicho foi identificado, isto é, que a lição sobre a higiene íntima feminina foi assimilada. Se uma inicianda confunde e falha, indicando outra pele, a madrinha paga em dinheiro a falta de aplicação da sua afilhada.
Os ensinamentos dados nos IKANO têm por finalidade moldar a personalidade das IMWALI. O uso da linguagem que por vezes toma a forma de injúrias e insultos é para imprimir nas jovens sentimentos de humildade e a correcção (Sofia DAVID conhecida por APIA NAKHUTTE).
Seja como for, é preciso reconhecer que o rigor e a disciplina que se impõem nos ritos de iniciação parecem atentar contra os direitos do indivíduo. As mudanças na postura da rispidez das mestras e das suas acompanhantes seriam consideradas como "moleza" o que poderia contribuir para diminuir o sentimento de humildade e a necessária correcção e mudança comportamental que se pretende imprimir nas iniciandas.
3.3.2.3.3 O banho purificador
Cumpridas todas as cerimónias dos ritos de «ser dançada», incluindo os IKANO, de manhã cedo as raparigas, suas mestras e suas madrinhas, dirigem-se ao rio para o banho purificador. Hoje, como consequência da urbanização, nas cidades usam-se casas de banho comuns ou constroem-se para o efeito casas de banho de paus e capim.
O banho purificador, marcava o fim do período de margem, da segregação social. É o nascimento social, a reintegração, a aceitação no mundo das adultas, uma vez que a mulher Macua, enquanto não tenha passado pelos ritos de iniciação da puberdade, é considerada criança, mesmo que se case e tenha filhos, uma situação análoga à dos ritos de iniciação dos rapazes.
No rio, depois do banho, as IMWALI cortam o cabelo da orla do couro (ERRULA). No interior, as raparigas, depois do banho purificador, vestidas de roupas novas, perfumadas, regressam à aldeia, para as suas casas onde, entretanto, as varandas são engalanadas com capulanas multicolores para a festa do encerramento dos ritos daquela fase.
3.3.2.4 A festa de encerramento e reintegração social
Realizadas todas as cerimónias dos ritos denominadas WIINELIWA, os ensinamentos de OMIRINI, os IKANO, o banho purificador e a mudança de nome[82], de regresso à casa segue-se a cerimónia de oferendas (OTTHUVA). Estendem-se capulanas à frente de cada inicianda, sentadas na esteira ao lado de suas madrinhas. As presentes, principalmente as parentes, oferecem prendas às madrinhas das IMWALI, prendas que podem ser monetárias, objectos de adorno, capulanas, lenços, galinhas, etc.
Trata-se de uma cerimónia de agradecimento, "reconciliação" e (re)integração entre afilhada e sua madrinha, para recomeçarem a falar-se, uma vez que as suas relações durante os ritos de iniciação eram relações de evitamento e afastamento, traduzidas num respeito profundo (WUUMAALA), em que a inicianda não dirige a palavra à madrinha, limitando-se a escutar e cumprir as instruções dadas por esta.
Segundo o Dicionário de Etnologia, de Michel PANOF et. alii. (1973), a relação de evitamento está prescrita em numerosas sociedades entre certos tipos de parentes (consanguíneos ou por afinidade). Esta relação pode manifestar-se através de uma simples interdição de contactos físicos entre eles ou, pelo contrário, através de toda uma gama de proibições (evitar pronunciar o nome do parente em causa, evitar encontrar-se debaixo do mesmo tecto com ele, evitar cruzar-se com ele na rua, etc.).
Os tipos de parentes que estão sujeitos ao evitamento, no maior número de sociedades, são irmãos e as irmãs e os genros e as sogras.
Na sociedade Macua, as relações de evitamento são mais vincadas durante alguns ritos de passagem, sobretudo durante os ritos de iniciação, principalmente entre o iniciando e seu padrinho. A razão disso está no facto de tratar-se de um momento de interiorização intensiva de normas de conduta social, entre os quais o respeito profundo pelas pessoas portadoras de um status especial, como é o caso do padrinho ou da madrinha dos ritos de iniciação (e por extensão, o mestre, os curandeiros, os anciãos, autoridades autóctones, a sogra, o tio materno, mãe, etc.).
Como durante os ritos de iniciação as relações entre neófito(a)s e mestre(a)s são de evitamento, as IMWALI, só podem falar entre si e em surdina. Durante os ensinamentos, elas só ouvem, vêem e cumprem as orientações à risca. "... não falam seja com quem for, porque ainda estão a nascer", de acordo com Mbwattiatto HASSUBA[83], apud BONNET (1996:64)
Entretanto, decorrem à volta, várias danças e as melhores dançarinas são também agraciadas com valores monetários e outros prémios.
Depois desta cerimónia, segue-se um banquete em que todos comem e bebem. É uma festa de toda a aldeia, marcando a reintegração social das IMWALI, o ingresso para o mundo dos adultos. Actualmente, nas cidades onde tudo se compra, a festa restringe-se apenas aos familiares e convidados devido aos custos que elas acarretam.
3.4 O valor social dos ritos da iniciação de puberdade na sociedade Macua
Inicio esta parte definindo o termo rito e analisando os ritos de iniciação de puberdade de acordo com o pensamento teórico/antropológico de VAN GENNEP (1909), BERNARDI (1997) e MARTINEZ (1989), sobretudo o primeiro, que forjou e popularizou a expressão ritos de passagem, para designar os ritos que acompanham a passagem de uma pessoa de um estado para o outro ou de um estatuto a outro.
O rito está associado a actos (actividades) regulares ligados à mudança de status, condição social, de lugar, de posição, do estado de saúde e está sempre carregado de significações simbólicas. Os símbolos rituais podem ser entendidos como tipos de instrumentos mediadores que capacitam o indivíduo a moldar a realidade. De acordo com McLAREN (1992), referenciando MUNN, (1973:510), TURNER (1979b:146-147, 1974c:55), RAPPORT (1979:212),
"Tais símbolos possuem um grande poder conotativo pelo próprio facto de serem multivalentes, físseis, incongruentes, polissémicos, inefáveis, imponderáveis e intangíveis. Eles podem entrar em acção simbólica e são capazes de circular visões do mundo complexas. Eles podem condensar a representação de muitas coisas através de uma única formulação, de unificar significados discrepantes e polarizar significados em pólos normativos e psicológicos. Através de um intercâmbio entre os pólos afectivos e normativos do símbolo ritual, o obrigatório é tornado desejável, o conceitual recebe o poder do experiencial e o experiencial recebe a orientação do conceitual" (33).
Ainda sobre a palavra rito, segundo o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, significa o conjunto de cerimónias que se praticam numa região; culto; qualquer cerimonial; praxe; etiqueta.
O Dicionário electrónico AURÉLIO-SÉCULO XXI indica a palavra rito como significando qualquer cerimónia de carácter sacro ou simbólico que segue preceitos estabelecidos como por exemplo, ritos mágicos, ritos de cura, ritos funerários, etc.
A este conjunto de significados, apenas os que afirmam que rito é o conjunto de cerimónias que se praticam numa determinada região, cerimónia de carácter sacro ou simbólico que segue preceitos estabelecidos, como, por exemplo, os ritos mágicos, ritos de cura, ritos funerários, etc., são os que se identificam com o sentido que pretendo nesta pesquisa, em consonância com o valor social que está subjacente não só aos ritos de iniciação, como em toda a cultura.
A cultura não é apenas um conceito mais vasto e complexo da sociedade; esta assume ainda a forma daquela. Isto é, também a sociedade é uma manifestação tipicamente cultural. Tomando em consideração estas considerações antropológicas, podemos classificar a sociedade Macua como, de acordo com BERNARDI (1997:35) "o conjunto dos sistemas normativos das relações humanas que traduzem e accionam os valores e as interpretações culturais em instituições sociais".
Na problemática antropológica, o conceito de valor é objecto de contínua discussão e muitas são as análises a que este conceito se presta. A palavra tem interesse económico, sociológico e filosófico. De acordo com BERNARDI (op. cit.,)
"em economia o valor é preço determinável em termos de troca e de moeda; em sociologia, é considerado valor todo o elemento da estrutura social; em filosofia, é valor aquilo que importa o espírito, em contraste com o «facto», que deixa o espírito indiferente" (36).
Como se pode depreender, todos estes significados estão implícitos directa ou indirectamente na dimensão antropológica, ou seja, no valor simbólico dos ritos de iniciação e da educação tradicional em geral, como elementos da estrutura social, e aquilo que satisfaz o espírito entre o povo Macua. Portanto, a formulação de um valor é uma dinâmica cultural, à semelhança da avaliação que na sociedade Macua fazemos (eu e os da minha etnia) sobre a educação.
Na sociedade Macua educação significa uma dimensão de construção de homem ideal, cujos hábitos e habilidades (saber, saber fazer/ser/estar) o integram plenamente na sociedade, de forma participativa. Por isso, qualquer elemento constitutivo da cultura - como o é a educação tradicional (incluindo os ritos de iniciação), se transforma num valor. Por isso, e de acordo com BERNARDI (op. cit.),
"as interpretações teóricas do cosmos, geralmente expressas nos mitos e nos ditos sapienciais, as instituições da estrutura duma sociedade, os próprios objectos materiais, quer utensílios quer cerimoniais, representam todos bens culturais e constituem valores" (ibidem).
Em Moçambique e em toda a África bantu, o rito está ligado à mudança de status, posição social e até de lugar, de estados (animado e inanimado) conforme disse.
O valor social dos ritos de iniciação na sociedade Macua, senão em todas as sociedades do norte de Moçambique é, sem dúvida, muito grande. Esta constatação não se testemunha apenas pelo facto de os ritos de iniciação terem resistido a duas investidas de perseguições e incompreensões - pelas autoridades coloniais e pelo governo revolucionário da FRELIMO, após os primeiros anos da Independência Nacional, ao longo da nossa história. MAFR et alii (1996) reforçam esta colocação ao referirem que,
“Após a independência de Moçambique foram proibidos muitos hábitos, usos e costumes sobretudo a cerimónia de IMWALI – Iniciação. O povo não deveria realizar absolutamente este tipo de cerimónia de iniciação. As raparigas apanhavam a primeira menstruação e faziam partos enquanto não estavam iniciadas ...” (160).
Se bem que a primeira investida, a colonial, pretendia quebrar os laços culturais que nos unem à ancestralidade, o que marcou uma etapa de resistência popular contra a invasão, imposição de valores estrangeiros e esvaziamento cultural; a outra, a tentativa de eliminar as práticas ”obscurantistas e vergonhosas” da tradição, incluindo os ritos de iniciação, pelo governo revolucionário da FRELIMO, foi igualmente marcada pela mesma resistência e igual repúdio popular. Embora esta última investida fosse justificada como tendo por objectivo irradicar o ”obscurantismo no seio do povo”, para sobre seus escombros se construir o “homem novo“ em Moçambique pode-se afirmar que, ambos os processos de marginalização, eram uma forma de violência contra os valores simbólicos da cultura popular.
O que afirmo no parágrafo acima é consubstanciado por factos que procurei narrar ao longo desta pesquisa, com informações bem documentadas, quer de escritos oficiais e outros autores, quer trazidas da minha tese de licenciatura, além das constatações factuais durante o trabalho de campo.
Numa situação de grande demanda de educação em Moçambique, particularmente no norte do país, em Nampula, palco da presente pesquisa, onde os problemas ao nível do Ensino Básico não se resumem apenas na insatisfação do número de escola, em termos de espaço físico que não chega para albergar todas as crianças em idade escolar. A falta de espaço alia-se à irrelevância dos conteúdos há muito divorciados da realidade cultural e vivencial dos alunos e à adopção dos métodos e meios de ensino estéreis e há muito caducos. Tudo isto acrescido a factores como a pobreza, o casamento prematuro, a gravidez das raparigas em idade escolar, a idade avançada das crianças para o ingresso na escola oficial, a falta de possibilidade de continuar para além do Ensino Básico (5ª Classe), a corrupção sexual[84] e material do professor e de outros funcionários da educação, marcam profundamente a vida das pessoas.
Como consequência destes e outros problemas, a escola oficial é caracterizada por uma grande evasão escolar, pelas desistências em massa e pela repetência da mesma classe, são marcas do quotidiano da escola oficial moçambicana.
Embora estes factores sejam muito importantes na análise do fracasso da escola oficial, são os conteúdos, métodos e meios, aqueles que merecem minha especial atenção, por serem algumas das traves mestras da resolução dos problemas da insatisfação escolar.
Sobre a insatisfação popular por causa da irrelevância do que se ensina na escola oficial onde, segundo vários entrevistados, os conteúdos não têm validade (aplicabilidade) prática na vida das pessoas e, consequentemente, as desistências que se verificam no nosso sistema escolar, o fenómeno tem o seu paralelo oposto na aderência massiva das populações aos ritos de iniciação. De acordo com os entrevistados, a razão óbvia disso é que, o saber, o saber fazer, saber ser e saber estar, como qualidades resultantes da acção educativa durante os ritos de iniciação, são evidentes nas crianças submetidas àqueles ritos aos olhos das populações. Contudo, esta afirmação não pretende dizer que as populações dispensam o valor da educação oficial. O problema é que a educação oficial está aquém de corresponder com os anseios contextuais e culturais do ethos.
Sobre o problema da inobservância dos valores culturais locais na concepção dos currícula educacionais, NGOENHA (2000), observa e indaga:
"Os conteúdos educacionais em Moçambique têm fortes componentes universais. A componente da(s) cultura(s) local(ais) moçambicana(s) ou é residual ou existem nós de estrangulamento para a sua inclusão. ...Moçambique é um mosaico de culturas: que papel jogam estas culturas na concepção do projecto educativo, nos curricula, na formação de professores? Que papel joga a escola no meio em que se encontra? Constitui uma instituição que responde às características culturais locais ou apresenta-se como um «pára-quedista histórico», representando apenas a universalidade e modernidade" ... (208).
O autor em referência, tendo em conta que uma das componentes da cultura são as línguas, questiona, também, sobre o papel que elas jogaram e jogam na educação.
Competências como ler, escrever, contar e as boas maneiras são as qualidades mínimas que se exigem da acção educativa da escola oficial que, entretanto não são tão evidentes, na maioria das crianças, ao terminarem o Ensino Básico. Em contraposição os rapazes e as raparigas, depois dos ritos de iniciação da puberdade, demonstram aptidões para a resolução prática dos problemas decorrentes da vida prática concreta: trazem consigo arraigada uma mudança comportamental que não deixa marcas para dúvidas: para além de competência linguística, sabem cumprimentar e respeitar as pessoas nos seus diferentes estatutos sociais, ou seja, sabem ser e estar nas diferentes situações da vida; se alguém estiver doente sabem como agir, conhecem suas obrigações para com os doentes, os idosos, senhoras e crianças.
Os “graduados” da educação autóctone não se atrapalham em situações de grande pressão psicológica, como por exemplo, em casos de doença repentina de uma pessoa. Eles socorrem-na como mandam as regras aprendidas durante o “período de margem”; participam activamente nas cerimónias fúnebres e com a solenidade devida; são elementos activos na preparação do túmulo ou mesmo na lavagem do corpo, participam no transporte do corpo para o cemitério, são membros activos no enterro, deitando areia no momento oportuno, no tapamento da campa; cumprem o período de vela e dormem em condições difíceis na casa, durante os três dias que a tradição Macua recomenda nos casos de falecimento. Enfim, o indivíduo submetido aos ritos de iniciação demonstra atitudes práticas dentro dos deveres e obrigações de um membro adulto na sociedade.
Sobre as atitudes comportamentais dos neófitos, no dia do encerramento dos ritos de iniciação ouvi e (re)vive uma canção entoada para enaltecer o seu regresso, que diz o seguinte: «meus filhos cresceram, se adoeço ou morro hoje tenho a garantia de que saberão como agir e estarão presentes no meu funeral, observando se me enterram numa cova com uma profundidade condigna, para que o meu corpo não seja devorado por animais».
Esta canção é entoada por ocasião do rito de passagem de agregação. As mulheres soltando ILULU, som gutural estridente, próprio para as ocasiões de júbilo, cantam conforme se segue:
CANÇÃO:
Anaaka ahiinnuwa...
Kakhwa koovithiwua...
................................
Koovithiwua!
Koovithiwua!
...............................
Anaaka ahiinnuwa...
Kakhwa koovithiwua...
.............................
Ao som da batucada, de canções e de risos de júbilo, a festa prolonga-se noite dentro. No campo ou na cidade, os adultos avivam as vozes e a alegria com OTHEKA (espécie de cerveja tradicional) e outras bebidas. Todos comem e bebem. É a festa anual de reintegração de novos membros "adultos" que irão reforçar e engrandecer as famílias, a comunidade, a etnia.
A importância social dos ritos de iniciação está patente neste factos que, embora pareçam triviais, marcam profundamente a vida das pessoas. Em sociedades iletradas de que os Macua faziam e ainda fazem parte, a iniciação ou ritos de iniciação, constituía e constitui ainda um período sistemático de instrução, análogo ao período escolar das sociedades letradas. A acção educativa da iniciação tem demostrado tanta eficácia formativa em oposição à da educação escolar, de tal modo que, actualmente, ignorar a sua existência em Moçambique é arriscar-se ao descrédito popular, pelo menos no que concerne à política educativa. A eficácia estrutural da iniciação é de tal efeito que, o candidato que termina os ritos de iniciação com sucesso, sabe exactamente qual é a sua posição social e pode participar plenamente na vida normal da sociedade (BERNARDI 1997:96).
Os entrevistados António da Silva DOMINGOS (49 anos), Rosa PAULO conhecida por ANAMA COHARI (42), do distrito interior de Murrupula, cerca de 82 Kms da cidade de Nampula e José Marinho MPHAVARA (44), da cidade de Nampula, do grupo de pais; Bernardo ERICA (60), do grupo de professores, do distrito costeiro do Lumbo, à entrada da Ilha de Moçambique (distando da cidade de Nampula cerca de 185 Kms), OHANO YAMPHUA (56) na região de Murrupula e de Ernesto ARMANDO, conhecido por MPWISSI (57), de Kharrupeia, região de MPHAVARA, arredores da cidade de Nampula, mestres dos ritos de iniciação, seleccionados tendo em conta as diferentes regiões em que decorreu o trabalho de campo, corroboram acerca da insatisfação e da irrelevância do que a escola oficial oferece como currículo do Ensino Básico. Mas, também corroboram que aqueles que não tenham passado pelos ritos de iniciação são considerados socialmente crianças. Na sua óptica, as competências demonstradas após o cumprimento dos ritos de iniciação são elucidativas de que a educação autóctone tradicional é muito importante para uma educação de raiz e que tem de ser valorizada na educação formal.
O paralelismo divergente entre a educação autóctone tradicional e a educação oficial está no facto de que, enquanto a última fracassa na sua necessária e incontestável missão, os ritos de iniciação vão ganhando cada vez mais adeptos. A educação escolar ainda não demonstrou tanta eficácia formativa como os ritos de iniciação, estes considerados o apogeu da educação autóctone tradicional. Sobre a ineficácia e o sentido social da educação oficial, talvez seja legítimo corroborar com NGOENHA (2000) ao questionar: "que Educação para Moçambique?"
NGOENHA (op. cit.), parece corroborar comigo, ao afirmar que
"a educação em Moçambique é um projecto que precisa de ser repensado na sua globalidade e no quadro das condições concretas, com vista a identificar os momentos disfuncionais do actual sistema em relação à realidade e ao tecido social" (199).
Em Moçambique, a educação oficial tem sido concebida como um objecto de estudo fechado, deixando de fora as realidades culturais, económicas e políticas. Estas dimensões condicionam estruturalmente o campo da educação, embora não a constituam completamente, mas a influenciam. Sobretudo a dimensão cultural está em primeiro lugar porque no facto educativo tem o seu substracto nas normas e nos valores instituídos de uma dada sociedade. Por isso, não se pode conceber um projecto de educação que não dependa do projecto de sociedade em que está inserido.
3.4.1 Escolas iniciáticas: aderência popular massiva
Em Janeiro de 2000 visitei duas importantes “escolas” de iniciação: a do bairro da Texmoque nas matas à sul da fábrica do mesmo nome e a de MPHAVARA, bairro de Kharrupeia, nas bermas do rio MPHAVARA. Ambas as "escolas" estavam situadas nos arredores da cidade de Nampula. Na primeira “escola” estavam “inscritos” cerca de trinta meninos. Na “escola” iniciática de MPHAVARA estavam “matriculados” cento e cinco iniciandos! Estes números demonstram por si a importância social dos ritos de iniciação. Há uma grande procura dos acampamentos dos ritos de iniciação no período compreendido entre os meses que precedem os exames finais escolares (Novembro/Dezembro) e o que antecede o início do ano escolar (Janeiro/Fevereiro).
Embora as autoridades oficiais saibam da existência dos ritos de iniciação e de centenas de meninos e meninas que todos os anos são a eles submetidos, não há estatísticas oficiais que ajudem a projectar o índice de crescimento anual da população que se submete a estes ritos, o que deixa uma grande lacuna informativa sobre o fenómeno. Sabendo-se que estas cerimónias têm grande importância na inserção sócio-cultural dos jovens Macua e não só, seria muito importante que houvesse o registo estatístico, o que ajudaria em futuros estudos antropológicos, educacionais, sociológicos, etc.
Na óptica do Macua, os ritos de iniciação compreendidos como a “escola da vida” completam a integração sócio-cultural, pois, apenas pela educação escolar a socialização dos jovens ficaria bastante incompleta. Esta percepção deveria motivar pesquisas para a compreensão das razões que sustentam a importância que se dá aos ritos de iniciação numa época em que poucas são as crianças que frequentam com sucesso a escola oficial.
Pode-se, portanto, afirmar que o objectivo primordial da iniciação é a inserção sócio-cultural dos "adolescentes", por ocasião do reconhecimento da chegada da maturidade fisiológica. O iniciando é instruído a tomar parte activa na vida social. É por esta razão que, no período de iniciação (da MASSOMA - para os rapazes e de IKOMA, para as raparigas), ensinam-se-lhes, sob a orientação de mestre(a)s, as tradições e os segredos da comunidade. Segundo BERNARDI (ibidem), podem distinguir-se três tipos de iniciação: instrutiva, dramática e por visão. Eu não diria três tipos de iniciação, mas que nos mesmos ritos de iniciação, o(a)s mestre(a)s recorrem à conjugação de diferentes métodos de mediação dos conteúdos, como objecto de conhecimento que podem ser esses a que Bernardi faz alusão.
Na conjugação das várias técnicas de abordagem dos conteúdos a mais comum é a iniciação instrutiva, na qual o neófito recebe ensinamentos teóricos não só sobre as tradições, mas também sobre o comportamento que deverá observar na sua vida futura - o saber e o saber ser entrelaçam-se na construção do homem ideal; na iniciação dramática, o(a)s mestre(a)s servem-se da acção cénica (a que eu chamo por representações psico e sócio-dramáticas)[85] para imprimir na mente do iniciando (LUUKHU) ou da inicianda (EMWALI) os ensinamentos tradicionais com recorrência a cenas por vezes chocantes e carregadas de violência simbólica, acompanhadas de música e canções de expressões bastante fortes, onde o corpo não só é objecto mas também meio de aprendizagem, a fim de que dele os jovens extraiam toda a força vital.
Por exemplo, entre as Macua é usual ensinar-se aos jovens a higiene íntima recorrendo-se à ONHYPI - animal de cheiro nauseabundo muito forte, (nome de um pequeno animal carnívoro: zorrilho ou civeta - gato-de-algália). Com recorrência à pele deste animal ou untando-se com algum produto mal cheiroso, o(a) mestre(a) passa entre as iniciandas para que estas sintam o forte odor. Por vezes o cheiro é tão forte que mesmo os presentes se vêm forçados a tapar as narinas. A lição é que devem ser prudentes se não observarem a higiene corporal íntima podem acabar vivendo solteiras, sem companheiro que as suporte para o resto da vida.
A iniciação por visão refere-se à instrução da acuidade visual, educando a vista para pequenos pormenores como um sulco na areia, que pode passar despercebido para um olhar incauto, possa ser percebido como a passagem de uma cobra; o tufo esquisito de folhas num ramo, numa árvore, que à primeira vista parece inofensivo, pode esconder uma cobra, um leopardo, etc. A iniciação visual pode mesmo englobar a interpretação de sonhos.
Portanto, a iniciação não é um acto único, mas uma série de estádios. Entre os elementos que compõem a iniciação há quase sempre uma prova física como é o caso da circuncisão. Contudo, a iniciação implica muito mais do que uma simples dor física, pois, iniciação significa maturidade física aliada à maturidade de carácter.
Como afirma BERNARDI (1997),
"Os efeitos da iniciação são de ordem psicológica e de ordem estrutural. O[a] jovem, quando sai da iniciação [deverá levar] arraigado[a] no espírito o sentido de dignidade que o[a] separa já dos rapazes [ou raparigas não iniciados], e o seu comportamento [deverá reflectir] esta consciência como se fosse verdadeiramente um homem novo" (97).
Ter passado pelos ritos de iniciação representa uma novidade de vida que é a mudança de estatuto social. Com a iniciação, muitos são os acontecimentos que marcam uma mudança de condição social, de lugar , de posição (BERNARDI, op. cit., p.98).
MARTINEZ (1989), BERNARDI (1997), referenciando Van GENNEP (1909), afirmam que este "denominou os actos e as cerimónias que solenizam estas mudanças de «ritos de passagem». Como se pode depreender, trata-se de uma classificação genérica que compreende três fases:
a) ritos de separação, que se referem aos rituais que marcam a escolha dos candidatos a MASSOMA, a partir do momento em que são rapados e "separados" dos restantes membros da comunidade, a partir do acto que soleniza a despedida dos rapazes iniciandos (ALUUKHU), na orla da floresta, descritos em 3.3.1.2, em direcção ao desconhecido. Na rapariga inicianda (EMWALI), os ritos de separação ou de segregação começam exactamente quando ela apanha a primeira regra menstrual e é "desprezada", alegadamente por ter tido um fluxo sanguíneo de origem "duvidosa", como preparação para entrar no "período de margem", descrito em 3.3.2.1, a seguir à cerimónia OHIMEERIWA. Pelos ritos de separação ou segregação o(a)s candidato(a)s são retirados do seu mundo anterior e dele segregados como que por uma morte simbólica.
b) os ritos marginais ou da liminalidade assinalam o momento de passagem sagrada, quando o candidato já não tem uma qualificação precisa (encontra-se na soleira ou limiar: limen (BERNARDI, ibidem). Nos rapazes este período refere-se ao momento de transição entre um status para o outro. Por exemplo, o tempo que decorre da entrada da orla florestal até ao momento do corte prepucial é considerado um período de anomia, para indicar um "estado de patologia" ou de "desestruturação" psíquico do iniciando, que vê coisas à sua volta, sem discernir o sentido delas. Na rapariga, o mesmo se passa quando, depois de severamente interrogada sobre a origem verdadeira do fluxo sanguíneo, fica aturdida, quedada no canto sem saber se as senhoras que a interrogaram acreditaram nela ou se algo mais de perigoso, está para lhe acontecer. Entra em transe, os nervos cedem e chora copiosamente; e
c) por fim, os ritos de agregação, que restituem ao candidato ou candidata à plenitude de vida, quase uma ressurreição simbólica e que o(a) tornam membro efectivo da sociedade (BERNARDI, ibidem). Este é um período de aceitação solene - não do candidato, mas do Homem e da Mulher, no seu novo status social, conquistado durante as duras provações. É um acto de apresentação pública que pretende a reintegração dos novos membros certificando-os de que estão habilitados para a vida de “adultos”. E, por isso, doravante deverão assumir todas as consequências: deveres e direitos consagrados na lei consuedutinário.
As festas de encerramento, solenizadas pela pompa e circunstância, reflectem a grande importância que os ritos de iniciação representam na vida das gentes, tal qual a festa de graduação que ocorre nas instituições de ensino oficial. Só que enquanto estas têm um sentido de realização individual e institucional, aquelas têm um sentido mais amplo: realização social e cultural de afirmação e de continuidade.
3.5 A violência simbólica inerente aos ritos de iniciação de puberdade
Para evitar a confusão de interpretação intencional ou não que a palavra induz, é importante que nos detenhamos um pouco sobre o significado do termo violência.
O Dicionário Universal da Língua Portuguesa (1995) define a violência como
"Qualidade do que é violento; acto violento; acto de violentar; ímpeto ofensivo; veemência; irascibilidade; tirania; abuso da força; opressão; constrangimento exercido sobre uma pessoa para a obrigar a fazer ou a deixar de fazer um acto qualquer; coacção" (1461).
Neste sentido, a violência está ligada à coacção e ao uso da força no plano físico ou moral.
O Dicionário do pensamento marxista (1988), numa outra aproximação a este termo, refere que
"Por violência entende-se a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra um indivíduo ou grupo (ou também) contra si mesmo). (...) intervenção física na qual a violência tem por finalidade destruir, ofender e coagir (...). A violência pode ser directa ou indirecta. É directa quando atinge de maneira imediata o corpo de quem sofre. É indirecta quando opera através de uma alteração do ambiente físico, no qual a vítima se encontra (...) ou através da destruição, da danificação ou da subtracção dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modificação prejudicial do estado físico do indivíduo ou do grupo que é alvo da acção violenta" (1291).
Olhando para estas duas definições da violência podemos, a partir delas, estabelecer algumas diferenças entre a violência que foi exercida por uma acção arbitrária ilegítima (física e moral), como a colonial e todo o seu aparato administrativo que inclui o sistema escolar imposto aos povos colonizados (neste sistema escolar incluo o missionário) e a violência que emana do SNE, como resquício da imposição de valores pela potência colonizadora e pela globalização, que os desenhadores do currículo em Moçambique ainda não conseguiram ultrapassar na prática.
Contudo, é preciso distinguir o tipo de violência do aparato colonial e o do SNE. Enquanto o primeiro era iminentemente físico/moral o segundo é iminentemente moral. Mas é também preciso afirmar que estes tipos de violência físico/simbólica têm um denominador comum: conduziram à desqualificação, estigmatização cultural e ao prolongamento da exclusão do ethos. Por isso, aos autores do primeiro tipo de violência chamá-los-ei por olhares menos atentos e por miopias mal intencionadas. E, aos do segundo, chamá-los-ei por cépticos e incautos.
Para os olhares menos atentos, ou guiados por miopias mal intencionadas, algumas fases dos ritos de iniciação são conotados de serem bastante violentos, no sentido de que submetem aos neófitos um tratamento "demasiado" duro. Esta leitura é feita sobretudo pela Igreja Católica, que julga obscena a linguagem usada nos ritos de iniciação, de menos decoro, de desumana a pressão psicológica (que origina o transe psicológico necessário à “incorporação activa" dos saberes) e as provações de resistência física que têm sido usadas durante os mesmos.
Os cépticos e incautos para além de desprezarem toda a educação autóctone condenam os métodos usados nos ritos de iniciação, apelidando-os de arcaicos e violentos. Não consideram violência a imposição de valores alheios aos anseios populares. O desprezo pelas tradições do ethos é justificado como acção conducente à colocação do "povo atrasado" na órbita do progresso, da modernidade e combate ao obscurantismo.
Ao que entendo, violência é o desprezo, a aculturação forçada - como processo de assimilação - a adopção sem a possibilidade de recusar e rejeitar elementos da cultura do outro que não lhe digam respeito implicando, forçosamente, subordinação política.
Os cépticos porque não são críticos no verdadeiro sentido do termo, não entendem ou não acreditam (quando é para justificar a sua acção arbitrária) que, segundo BOURDIEU & PASSERON (1992:20), "toda a acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural".
A diferença entre uma imposição arbitrária de valores (violência arbitrária por um poder arbitrário) e a "imposição legítima" da violência simbólica também legítima (porque não é exercida por um poder arbitrário e nem visa a destruição do outro) reside no facto de que a última é exercida por uma autoridade pedagógica "legitimizada" pela selecção popular, como suficientemente educada e capaz de reproduzir (pela sua acção exemplar), o capital cultural popular acumulado, com vista a sua perpetuação, como legado da ascendência às novas gerações. Por isso, acções ritualizadas como: ablação prepucial ou mesmo a tatuagem, retenção de necessidades fisiológicas para o transe psicológico necessário como o sono, a fome, a sede, visando responder a uma necessidade vital como a cura de doenças, a integração sócio-cultural de uma "geração menos amadurecida", não devem ser entendidas como uma violência gratuita, mas sim, como violência simbólica sacralizada.
A violência imanente nos ritos de iniciação é uma violência "desejada", porque transporta consigo uma necessidade de os seus participantes se afirmarem elementos pertencentes a uma cultura secular, a uma civilização cultural como é o caso de se desejar reconhecido membro de pleno direito de um grupo, de uma etnia ou sociedade. Trata-se de um "complexo de identidade" de que qualquer ser é impelido a sentir. O homem só o é quando se sente como elemento (aceite e respeitado) de um todo integrado que lhe permite sentir-se seguro. Esse todo pode ser a família, grupo de amigos, bairro, aldeia, comunidade, etnia, sociedade, etc). É aqui onde reside o valor de pertença e identificação. Nenhum homem, seja africano ou não, desejaria viver só, sem referências de ancoragem. Quando esse desejo de identificação, de afirmação, exigir "sacrifícios" sejam eles de fórum físico, psicológico ou moral, estamos perante um valor simbólico que justifica as nossas acções, do qual não podemos abdicar. É exactamente essa violência simbólica de ancoragem sócio-cultural que justifica o que acontece nos ritos de iniciação em particular e na educação autóctone tradicional Macua em geral. Por isso, se de algum modo precisamos de passar por uma prova de fidelidade a esse grupo, mesmo que isso envolva um "sacrifício", teremos assumido, por via da regra, o valor de um rito de passagem que envolve uma violência simbólica "identitária" (de identificação).
Para evitar ambiguidades na definição da violência, LUCINDA (1999), citando COSTA (1991), escreve que,
"violência é o emprego desejado de agressividade com fins destrutivos (...). Na violência a acção é traduzida como violenta pela vítima, pelo agente ou pelo observador. A violência ocorre quando há desejo de destruição" (20).
Neste sentido, a marca constitutiva da violência seria a tendência à destruição do outro, ao desrespeito e à negação do outro, físico, psicológico ou ético. Acções como as enumeradas caracterizaram e ainda caracterizam o currículo oficial do Ensino Básico, como processo do ensino-aprendizagem. Ao negar as formas de construção dos saberes locais, as formas de existir do outro, desrespeitaram e excluíram o que representava o seu histórico existencial e isso é uma violência destrutiva, que procurou aniquilar o outro. Porém a violência simbólica de ancoragem sócio-cultural que justifica o que acontece nos ritos de iniciação em particular e na educação autóctone tradicional Macua em geral é totalmente diferente, porque é uma violência "fundante" como o é a violência do parto, da dor inevitável para o nascimento de uma nova vida.
3.6 Análise critica dos ritos de iniciação
Ao longo de todos estes anos, antes e depois de 1498, que a história delimitou em período antes do colonialismo, período colonial e pós-colonial, a educação autóctone tradicional Macua, sobretudo os ritos de iniciação, desenvolveu-se contando consigo mesma. Isto é, como forma de se defender da invasão de valores estrangeiros, que perigavam a cultura secular autóctone, o povo Macua fechou-se e realizou uma educação que não permitiu contactos inter-sistemas para a aculturação e enriquecimento mútuo sempre necessários. A razão desta situação reside no facto de que os povos vindos de além-mar pretendiam a dominação e não a cooperação.
A dominação é contrária a qualquer tipo de convivência salutar. As atitudes de superioridade e de dominação dos povos vindos quer da Ásia (sobretudo árabes) quer da Europa eram de imposição da sua cultura aos autóctones africanos que na óptica dos invasores eram povos de cultura inferior. Estava-se perante o fenómeno de "asiocentrismo" (passe o neologismo) e eurocentrismo ou seja o etnocentrismo. O "asiocentrismo" e eurocentrismo, principalmente este, colocam as culturas asiática e europeia como centros e modelos para todas as demais. As visões "ásiocêntrica" e "eurocêntrica" trouxeram trágicas consequências. Em nome da suposta superioridade cultural muitas atrocidades foram cometidas contra povos de muitos continentes como ameríndios, africanos e mesmo alguns povos de regiões da Europa e da Ásia.
Quando falo do "asiocentrismo" refiro-me à cultura árabe que antes da chegada dos portugueses foi imposta aos povos do continente africano, em que Moçambique não foi excepção. Ainda hoje, entre os moçambicanos, encontramos resquícios da cultura asiática e do "asiocentrismo" como, por exemplo, a religião muçulmana, mesquitas e madraças [86], trajes árabes (túnica, cofio, véu, turbante, etc.), o desprezo e violência contra os valores culturais africanos, sobretudo contra as religiões autóctones tradicionais. Na sociedade Macua, ainda hoje, aqueles que pertencem à religião muçulmana consideram cafre[87], «infiel» ou bárbaro ao que não professa esta religião.
O eurocentrismo foi e ainda o é pior que o "asiocentrismo" porque o último foi mais subtil na sua actuação. Pautou nitidamente pela tentativa de conversão ao islão e não pela imposição a todo o custo, como sucedeu com relação aos defensores do eurocentrismo, que não hesitaram em usar a força de armas para se imporem pela violência. Os ensinamentos dados pelas madraças (escolas corânicas) têm como princípios fundamentais a moral.
A crítica ao eurocentrismo remonta ao século XIX. O seu principal mentor foi o antropólogo Franz de Boas, que defendia que cada cultura devia ser analisada em função de seus próprios princípios e as diferenças entre elas nada têm a ver com graus de inteligência. O movimento da valorização das culturas conheceu grande força no século XX com o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss que defendia que não existem culturas superiores nem inferiores, atrasadas ou adiantadas. Na óptica deste antropólogo, as culturas representam formas encontradas por uma determinada comunidade para resolver seus problemas. Por isso, não é correcto afirmar-se que a sociedade europeia é culturalmente superior à dos negros africanos, ameríndios, vietnamitas, etc., apenas porque o europeu foi pioneiro na revolução industrial. Antes da chegada dos europeus em África e em Moçambique em particular, nas sociedades autóctones não havia crianças abandonadas, a prostituição, a exclusão social.
Ao imporem seus valores aos povos autóctones, os colonialistas europeus impediram o desenvolvimento das formas de socialização desses povos, incluindo a educação, como o principal agente da transmissão cultural e de socialização dos povos. Os conteúdos da educação são, essencialmente, formados por elementos da cultura de uma sociedade. A educação autóctone tradicional do povo Macua, teimosamente rotulada como educação informal pelo colonialismo e pelos "modernistas" é testemunha deste facto. Sobretudo os ritos de iniciação da puberdade, uma fase dessa educação, tem a cultura como o seu conteúdo principal.
FERREIRA (1996), como que a corroborar o que se passa na educação autóctone tradicional Macua, que tem, também períodos informais e formais, afirma:
"A educação formal, como a educação informal, resumem-se em transmitir, através da linguagem, uma série de informações (conhecimentos [e saberes] técnicos [e teóricos]) necessários à existência do indivíduo como membro do grupo, e também os valores e as normas que se espera sejam fundamentais para o bom desempenho das suas tarefas presentes e futuros" (49).
Os conteúdos, métodos e meios da educação tradicional Macua reflectem a ânsia, a vontade de preservar os valores e as normas que a sociedade considera fundamentais para a integração do indivíduo, para além de transmitirem, através de uma linguagem própria, informações técnicos e teóricos necessários à existência e resolução de problemas do indivíduo no seu dia-a-dia.
Contudo, é preciso reconhecer que quer os conteúdos, quer os métodos ou meios da educação autóctone tradicional não podem ser considerados saberes que só por si dispensem a educação escolar oficial. É através da educação oficial que se obtém, também, a "chancela" de ter adquirido conhecimentos técnico-científicos que permitem, oficialmente, a entrada do indivíduo no mercado do trabalho, em sociedades industrializadas, além de outras visões do mundo.
Tanto os conteúdos, métodos e meios da educação autóctone tradicional Macua, como os da escola oficial precisam ser operacionalizadas, de forma a sintonizarem-se para a efectiva educação do homem moçambicano, em que esses saberes técnico-científicos se adaptem ao saber, saber fazer, saber ser e estar do ethos para constituir uma educação que funcione na resolução de problemas para a vida das pessoas.
O isolamento a que a educação autóctone tradicional esteve sujeita, ao longo de séculos, pode provocar entropia (desordem ou disfunção de um sistema fechado) que pôs em perigo a existência e a aculturação pacífica e positiva das diferentes culturas, numa sociedade composta de diferentes etnias, cada uma com uma forma específica de realizar sua educação.
A educação autóctone tradicional possui elementos que precisam de ser sintonizados com os da sociedade industrializada. Precisa, por isso, de operar mudanças sob o risco de ser acusada de "retrógrada". Alguns conteúdos precisam de ser adequados à idade cronológica dos iniciandos como, por exemplo, as alusões às funções do sexo, portanto, aos relativos à educação sexual; a preparação específica das raparigas para assumirem o papel de donas de casa não poderia ser separada da necessidade de informar e formar a rapariga no sentido de complementar essa preparação com a necessidade de escolarização oficial para obter uma qualificação profissional numa sociedade em constante mudança.
Relativamente aos métodos e meios usados no processo de ensino-aprendizagem autóctone, a eleição do método directo-demonstrativo devia ser aliada à fundamentações teóricas também baseadas no conhecimento cientificamente enquadrado. Isto passa necessariamente pela exigência da sociedade, de uma alfabetização dos seus mestres de iniciação pelo Estado, com vista a muni-los com outros saberes e visões, para que possam recorrer às fontes indirectas, na transmissão de conhecimentos, através de mapas e meios gráficos, com temas ligados à geografia ou aos perigos de doenças de transmissão sexual, como o HIV/SIDA.
As fontes do saber na educação tradicional são directas e indirectas mas sobretudo directas. As fontes directas permitem um contacto directo com a realidade, o que facilita a observação dos factos, a experimentação, a demonstração. A vantagem disso é que há concretização, visualização do processo de ensino-aprendizagem (PEA) e fixação fácil e rápida, sobretudo quando se faz a experimentação. Contudo, existem desvantagens como a limitação de tempo para fazer tantas experiências e representações.
As fontes indirectas na educação tradicional são bastante limitadas. A recorrência dessas fontes poderiam servir como auxiliares das fontes directas. As fontes indirectas como gravuras, representações e imagens permitiriam maior compreensão e penetração na essência dos fenómenos em estudo.
Portanto, a conjugação dessas duas formas de obtenção de conhecimento pode permitir maior profundidade dos conhecimentos, além de cuidados especiais de linguagem, clareza, precisão, acessibilidade/compreensibilidade.
3.7 Conteúdos, métodos e meios da educação autóctone tradicional Macua
Na Ilha de Moçambique, conforme a figura abaixo, observei uma sessão de reparação de uma barcaça de pesca (EKHANGAIA). O ”mestre de reparações”, entregue de corpo e alma à actividade de tapar fendas no taipal do barco, quase que não precisava de pedir os instrumentos e materiais necessários na acção seguinte. Bastava estender a mão, um dos rapazes (de 8-10 anos) atentos ao que acontecia, ia lhe passando ora o alcatrão ou a cola, ora o algodão ou ainda o escopro e o martelo com que ia tapando as fendas. Estes rapazes estavam numa aprendizagem directa em que tinham a possibilidade de tocar e manipular os meios de aprendizagem; assisti também, na ilha de Moçambique, ao regresso da faina de muitos barcos de pesca. Muitos deles traziam no seu bojo rapazes aprendentes do ofício de pescar.
Mal o barco tocava as alvas areias da praia, cada rapaz sabia exactamente a sua área de actuação: uns puxavam a corda ou a rede e aprendendo com os mais velhos como amarrar a âncora; outros enrolavam as redes e levavam-nas para guardá-las em locais apropriados; outros aprendiam os segredos da contabilidade prática: separar e classificar o pescado, vender o produto da faina, contar o dinheiro e, por fim, repartir o pescado reservado aos pescadores.
Entre os pescadores, o dinheiro e o pescado são repartidos de forma variável, segundo uma hierarquia, observando as seguintes posições: o dono do barco, o mestre, os pescadores e os aprendentes. Portanto, há uma parte reservada para cada uma dessas posições que todos assumem e respeitam.
Aqui o importante a observar, para além das vantagens da aprendizagem directa, está o facto de toda a teorização estar ligada ao meio real, aos saberes locais, o que deveria ser integrado e apreendido na escola oficial. A escola oficial não precisa de inventar nada, seria apenas pegar naquilo que rodeia o aluno, a vida do dia-a-dia e aplicá-lo segundo os princípios resultantes do desenvolvimento da ciência: na exploração da força do vento para mover o barco à vela; no aproveitamento das águas do rio para a irrigação de machambas, na construção de pequenos diques para a conservação da água em períodos de seca; na necessidade de se ter em conta a conservação das espécies, por isso não utilizar a rede de pesca muito fina; no uso racional dos recursos animais e florestais; no aproveitamento da energia solar para a secagem do pescado; no uso de uma estaca e corda, como compasso para a distribuição do pescado no terreno, à mesma distância da fogueira, para a secagem do pescado, etc.
Os métodos de transmissão dos saberes na educação tradicional são: o método directo a demonstração prática, os aspectos teóricos são sempre aliados à prática, através da representação de signos, muitas vezes com recorrência ao sócio e psicodramático.
O processo de ensino-aprendizagem decorre de uma acção conjugada entre os sujeitos (professor e aluno) e o objecto de conhecimento, numa relação que resume o princípio da construção de conhecimento ou fundamento epistemológico, onde acções, reacções, relações, conflitos e esforços fazem parte de um todo para a formação integral do homem.
Deste modo, pode-se afirmar que, efectivamente, na educação autóctone tradicional, esse conhecimento se dá com a criação e uso da linguagem e da palavra, o que permite dar nome às coisas, evocar coisas ausentes, combinar imagens, expressar ideias e acolher as dos outros. Isto permite a transmissão/mediação/assimilação do conhecimento já acumulado e construção do conhecimento próprio, contrariando os currículos actuais que se caracterizam pela memorização mecânica de nomes, factos e objectos que pouco representam para a vida das crianças.
Os conteúdos evidentes na acção pedagógica tradicional Macua podem ser "percebidos" a partir da combinação de dois tipos de categorias fundamentais, resultantes da análise do seu sistema de educação: as referentes às condições dentro das quais se processa a educação autóctone, ou seja o ciclo de vida, com separação nítida entre os diferentes sexos; as outras se referem ao que se pode considerar os aspectos fundamentais de uma cultura, embora seja importante dizer que nem todas as culturas focalizam do mesmo modo os aspectos fundamentais.
Para o exame do sistema educacional Macua, atendendo que qualquer sistema educacional apresenta as dificuldades de uma análise cultural, onde as diferentes teorias antropológicas propõem cada uma seus próprios esquemas e modelos de análise (MELIÀ: 1979:13), deve-se partir da operacionalização dos objectivos, ou seja, relacionando os comportamentos e atitudes observáveis com os conteúdos.
Na intenção de facilitar a percepção do quadro de reconstituição dos conteúdos da educação autóctone tradicional, apresento o quadro que se segue:
Hábitos motores
Actividades sociais rotineiras
Capacidades Linguisticas
Habilidades técnicas
Práticas rituais
Domínio da linguagem simbólica
Auto-realização pessoal
Especialização para funções políticas e/ou sociais
1ª Infância
x
x
2ª Infância
x
x
Puberdade
x
x
x
x
x
x
Adolescência
x
x
x
x
x
x
Maturidade
x
x
x
x
x
x
x
Velhice
x
x
x
x
x
x
x
x
Fonte: Quadro adaptado de MELIÀ (1979:13).
Olhando atentamente para o quadro acima, podemos encontrar semelhanças com o referencial que se adopta na selecção de conteúdos para a realização de objectivos educacionais na educação oficial moderna, tais como os que visam desenvolver as capacidades e habilidades psicomotoras, cognitivas e afectivas. Isto constitui uma prova de que existem pontos da educação autóctone tradicional relevantes (conteúdos, métodos e meios) para dar outra significação à educação escolar moçambicana, para uma sintonia dialéctica e integrativa entre elas. O ensino integrado de que o PCEB almeja realizar, encontrará, decerto, uma fonte riquíssima na educação autóctone tradicional para a formação integral e harmoniosa dos jovens se, efectivamente, buscar inspiração no ethos onde a prática serve de farol à teoria.
3.8 A Educação autóctone tradicional Macua como desafio pedagógico à escola oficial
Em Moçambique, os ritos de iniciação constituem um autêntico desafio aos estudiosos de várias especialidades, tais como pedagogos, antropólogos, sociólogos, psicológicos, etc. Todos precisamos de responder a algumas questões, como: visto que existe de facto uma educação autóctone tradicional, um processo de ensino-aprendizagem com uma função real e efectiva do qual as populações têm, até hoje, uma alternativa à educação oficial, face à insignificância dos seus conteúdos, métodos e meios, no contexto sócio-cultural, o principal problema é: como operar essa educação para integrá-la no processo de ensino-aprendizagem oficial, para uma educação integral e harmoniosa dos jovens moçambicanos no âmbito dos valores do ethos?
No estágio actual de aculturação, o desafio que se coloca a todos os pesquisadores nas diferentes disciplinas é o resgate e revitalização dos elementos genuínos da educação autóctone tradicional em vias de perda definitiva.
Por quê os ritos de iniciação resistem ao tempo, à avassaladora "modernidade", enfim, a todas as vicissitudes e continuam arrastando milhares de jovens anualmente numa relação contraditória com as desistências e reprovações da escola oficial?
Na sociedade Macua o fenómeno ganha novas características desde a independência nacional. Durante a era colonial, os mestres da iniciação foram hostilizados e combatidos pelas forças de repressão colonial. Depois, o regime concluiu que seria impossível a total eliminação dos ritos de iniciação. Por isso tentou influenciá-los através da Igreja Católica como extensão do aparelho ideológico e dos chefes tradicionais submissos. É que os colonialistas haviam descoberto que a educação tradicional era a manifestação inequívoca de resistência de todo um povo a um sistema de educação que lhe era imposto de fora e que visava fundamentalmente a subjugação cultural, para além da subjugação política que já era realidade. Assim, à administração colonial, não restava outra alternativa senão, coexistir com os "usos e costumes" dos indígenas como os ritos de iniciação, embora lhes fosse desagradável tal situação.
A missionação mais tarde adoptada como forma de amaciar a vontade dos autóctones, tinha como principal missão eliminar o que o colonialismo não conseguia à força. Pensavam que podiam acabar com a tal «prática selvagem», o que também não conseguiram, embora nas cidades e vilas onde as missões tiveram grande expressão os ritos denotem, até hoje, tal influência.
Os ritos de iniciação como o apogeu da educação tradicional autóctone, e esta como a reprodutora da herança cultural milenar, foram violentamente reprimidos. Na escola colonial, toda e qualquer manifestação cultural dos nativos era combatida, considerados sinal de prevalência de sequelas da cultura selvagem. Mesmo o uso das línguas moçambicanas era vedado através da aplicação de castigos físicos severos aos alunos que ousassem violar a regra estabelecida. As pessoas que estudaram na época, quase todas elas, sofreram algum tipo de castigo por falarem a sua língua materna na escola.
Conforme já dito, referenciando LIPHOLA (1995), o lado psicológico, inibidor, humilhante e não menos caricato e violento para os alunos era o de ser chamado por «Burro», chegando-se mesmo à prática de colocar um colar com a inscrição BURRO no aluno que fosse detectado a falar a língua nativa e obrigá-lo a percorrer o pátio da escola com o cartaz ao pescoço. Isto visava desencorajar aos restantes alunos autóctones a não usar as suas línguas, que os colonialistas denominavam dialectos.
Assim, os colonialistas impunham uma escola que sabiam que a maioria dos nativos não teria acesso. Os colonialistas sabiam que agindo assim, poucos meninos autóctones conseguiriam manter uma conversa sem recorrerem ao uso das suas línguas. Mas, para evitarem a humilhação do cartaz, seriam forçados a submeter-se. Os colonialistas pretendia levar os alunos africanos ao complexo de inferioridade, à vergonha da sua identidade. Assim, o que a escola ensinava pretendia que o autóctone abandonasse a sua cultura. Como consequência disso, nenhum nativo se sentia à vontade em tal escola.
A repressão nas escolas para indígenas era de tal ordem que as escolas missionárias podiam ser comparadas ao trabalho forçado. Os alunos tinham um horário de trabalho em grandes machambas ou plantação de cajueiros. Muitas vezes havia rusgas no campo e nas zonas periféricas para prender crianças e levá-las às escolas missionárias para produzirem para os padres, capitaneadas por sipaios[88] que na sua acção violentavam os "alunos" capturados. Oficialmente aquelas acções eram designadas de recrutamento compulsivo de crianças indígenas para evangelização e escolarização. Mas na verdade era captura da mão-de-obra infantil para o trabalho forçado nas machambas (roças) das missões católicas.
Pode-se dizer que, nas escolas missionárias, como intenção principal, o aprender a ler e contar era acidental, pois parece que o principal objectivo do ensino era a evangelização e o trabalho produtivo das crianças.
Face a estas e outras atitudes coloniais, a educação autóctone tradicional era para o nativo a única alternativa de educar os jovens segundo os ideais da sociedade.
Se tivermos em conta o texto de Benjamim FRANKLIN, reportando a reacção dos representantes das seis nações indígenas por ocasião do tratado de Lancaster à oferta de bolsas de estudo do governo da Virgínia, para jovens índios[89], veremos que reforça a ideia da diferença, em diferentes sociedades, da ideia da educação.
Compreende-se, portanto, que os povos autóctones de Moçambique tenham resistido à educação invasora que não tinha em conta a sua realidade. É assim que a educação autóctone tradicional, incluindo os ritos de iniciação resistiram a todas as vicissitudes ao longo dos anos e, como consequência, forçadas ao ostracismo.
Com a independência nacional as novas autoridades também hostilizaram a educação autóctone tradicional, acusando os ritos de iniciação de retrógrados. De novo, os ritos de iniciação passaram a ser alvos de hostilização e perseguição.
De 1498 o ano da chegada dos colonialistas portugueses a 1975, ano em que Moçambique ascendeu à independência política, passaram 477 anos. De 1975, ao ano 2000, correspondem mais 25 anos, perfazendo, no total, 502 anos e os ritos de iniciação continuam sendo uma realidade. Foram 502 anos de incompreensão, perseguição e exclusão.
A práxis, como critério da verdade, ensina-nos que cada fenómeno é o resultado de seu desenvolvimento endógeno e exógeno. O desenvolvimento dos ritos de iniciação foi unilateral, apenas endógeno, enquanto se fechava às condições externas que o hostilizava, durante esses anos todos. Quer dizer, tudo leva a crer que os conteúdos e métodos usados há anos não sofreram grandes alterações. A iniciação continua a ser quase a mesma.
Em Moçambique, mesmo que se proclame o ensino para todos, a educação oficial nunca satisfará cabalmente as crescentes necessidades culturais do povo. O que a educação oficial ensina é ainda posto em dúvida, tal como no passado, em que a escola era do colono ou do padre.
Volvidos 25 anos depois da independência, os responsáveis educacionais reconhecem que, de acordo com o PCEB (1999:4), o que a escola ensina vai-se mostrando cada vez mais inadequado para uma economia em rápida mudança e para as exigências sócio-culturais. Muito do que se ensina na escola é de uma relevância ou utilidade prática duvidosa.
Da violência imposta pelo arbítrio da educação colonial, passando pela violência da imposição de modelos importados que nada têm a ver com a realidade cultural moçambicana, pelas autoridades moçambicanas, impõem-se e com urgência, mudanças que respeitem a integridade cultural quer dos ALUUKHU, quer das IMWALI, dentro dos direitos universais do homem, adaptando-se os conteúdos, métodos e meios à realidade cultural regional e local.
O reducionismo educacional a que as populações moçambicanas estão sujeitas há mais de quinhentos anos só pode ser ultrapassado paulatinamente, o que implica soluções em que o ensino oficial e a educação autóctone tradicional não se hostilizam, em que a dialéctica entre o "moderno" e o autóctone tradicional constroem o novo, uma vez que procuram educar integralmente a mesma pessoa.
Há que encontrar uma solução, para que as populações sintam que a escola oficial e a educação autóctone tradicional, incluindo os ritos de iniciação, defendem a preservação da herança cultural milenar. Assim teremos construído uma escola culturalmente unificada e verdadeiramente moçambicana, que tem como fonte de inspiração o ethos, uma escola nova, resultante da criação, manutenção e desenvolvimento da vida e da cultura.
Na educação autóctone há conteúdos tão importantes como educação moral (aliada ao sentimento de honra), onde se mostra, por exemplo, que o mal é punido e o bem é premiado; educação sexual (normas de conduta social para uma relação sexual sã, como viver com o(a) cônjuge); educação do meio ambiente (a necessidade de preservação do ambiente, preservação dos rios como bem comum, rodízio dos solos de cultura, etc.); a caça, a pesca, os ritos funerários, as tradições (da família do clã, da etnia); a língua, a arte de viver, história (da família, do clã ou da etnia dos notáveis, da região e do país); geografia (toponímia local: nomes dos rios, das localidades, das vilas, das ruas, etc.); botânica, zoologia (aliada a características de alguns animais em paralelo com os preceitos da caça e da pesca); a psicologia (o comportamento humano), a retórica (como estudo e técnica do uso persuasivo da linguagem, em especial para o treinamento de oradores); o direito consuedutinário (aliado ao modo de ser e estar da comunidade e da moral).
Um factor muito importante da educação autóctone tradicional é o seu carácter polivalente: as disciplinas não são fragmentadas e estanques como na escola oficial. Os conteúdos formam um todo coerente, uma interdisciplinaridade que a educação oficial apesar de dizer que deve ser observada, na prática não cultiva.
Ao mesmo tempo que se ensina a caça e a pesca, dá-se "zoologia" e a importância da preservação das espécies. As tradições são ligadas aos problemas da moral, da língua, da dança, da canção; os rituais são aliados ao amor pela vida ao mesmo tempo que se ensina a importância do culto pelos antepassados, pelo respeito da história, dos heróis, do sacrifício pelo engrandecimento da etnia, da comunidade e de todo o povo.
Na educação autóctone tradicional, estão presentes as áreas de desenvolvimento, visadas por qualquer sistema de educação moderna (taxinomias de Benjamim Bloom e outros), ou seja, a educação psicomotora, cognitiva e afectiva, que podiam ser resgatadas e valorizadas pelo nosso actual sistema educativo.
Os métodos pragmáticos usados na transmissão/mediação de conhecimentos na educação autóctone tradicional permitem que os saberes teóricos sejam aliados aos conhecimentos práticos concretos. A criança participa, por exemplo, na caça, caçando; na pesca, pescando; na construção de casas e celeiros, construindo; aplica os conhecimentos da contagem e da medição contando objectos concretos, observando-os, tacteando-os, cheirando-os. Onde é possível aplicar a intuição, ela é aplicada. Na educação autóctone tradicional aprende-se, fazendo.
Como já reconhecido em meu estudo (BONNET, 1986:15) e referenciado no presente estudo, a educação tradicional, embora realizada de modo empírico, exercita e desenvolve as funções mentais de maneira viva e concreta, adaptada ao ambiente natural e social, habituando as crianças à luta contínua pela sobrevivência, contra uma infinidade de perigos, contra as forças da natureza. Os pais e a comunidade em geral, conscientes do perigo constante que ameaça seus filhos, educam os seus sentidos para que adquiram maior acuidade e precisão.
Na educação autóctone tradicional, a educação cognitiva é sobretudo prática e tem por finalidade desenvolver as capacidades de prover as necessidades individuais e, posteriormente, as da família e da comunidade em que está inserida a criança. Aprende a conhecer os hábitos dos animais e aperfeiçoa a sua acuidade sensorial. Deste modo, vai apurando o seu intelecto, tornando-o ágil, preciso e eficiente.
O ensino directo, objectivo, aplicado durante a educação autóctone tradicional, com mais incidência nos ritos de iniciação de puberdade dirige-se não só à acuidade do sentido visual, mas também do ouvido, do olfacto, do paladar, do tacto, em suma, de todos os sentidos.
Tudo o que aqui foi descrito e analisado, é o resultado do contacto com as pessoas, directa ou indirectamente ligadas ao processo educativo na sociedade Macua. A tese tendo como objecto o homem Macua, do qual procuro demonstrar o aspecto cultural que deve ser tido em conta no desenvolvimento da educação, remete-nos política, cultural e academicamente à necessidade da ligação entre a antropologia e o desenvolvimento, aspectos que têm sido analisados em separado, originando um fosso entre as políticas do desenvolvimento de Moçambique e as realidades do ethos.
CAPÍTULO IV ‑
SISTEMA OFICIAL DE EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE: A NEGAÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL
4.1 Caracterização do sistema colonial de ensino
Nesta parte do capítulo procuro fazer um referencial dos caminhos que a educação moçambicana seguiu logo após a Independência Nacional, como tentativa de entendermos as razões subjacentes ao surgimento e aplicação abrupta do Sistema Nacional de Educação em 1983. Parto da descrição do sistema da educação colonial para desembocar na análise do SNE, que ainda se apresenta como a continuação da negação da diversidade cultural em Moçambique.
Durante o período colonial, a maior parte da população foi excluída do sistema de ensino oficial. Os colonialistas não pretendiam senão dar o mínimo de escolarização a alguns “indígenas” para melhor os servirem. O ensino colonial destinado ao nativo visava assimilá-lo relativamente à civilização ocidental. Pretendia levá-lo a acreditar que a sua cultura era inferior à cultura que os colonialistas impunham através do ensino e da língua. Estavam certos de que não bastava imporem-se apenas pela força de armas. A força coerciva foi aliada à força espiritual que deveria amaciar a vontade dos nativos, através das missões católicas instituídas por força da Concordata diplomática assinada entre o governo colonial português e a Santa Sé, em 1940.
ROUSSEAU, em "O Contrato Social", apud BOURDIEU & PASSERON (1992) afirmou:
"não podendo o legislador empregar nem a força nem o raciocínio, é uma necessidade que ele recorra a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer. Eis o que forçou em todos os tempos os chefes das nações a recorrer à intervenção do Céu" (15).
Em 1941, um ano mais tarde, surgiu um outro documento: “O Estatuto Missionário”. GOLIAS (1993), que acerca do assunto, escreveu:
“Estes dois documentos institucionalizaram e deram uma maior dinâmica à colaboração entre o Estado Português e a Igreja Católica. Assim, nas colónias de Portugal de então o Estado transferiu para a Igreja a sua responsabilidade sobre o chamado ensino rudimentar e comprometeu-se a dar apoio financeiro às missões e escolas católicas” (37).
A situação era de tal ordem que falar do sistema colonial de ensino em Moçambique e mesmo nos restantes territórios colônias, era falar de um ensino montado para dificultar o acesso das crianças nativas ao ensino. Era um ensino de «desigualdades ante a selecção e desigualdades de selecção» no dizer de BOURDIEU & PASSERON (1992).
As escolas públicas, em quase todos os territórios coloniais, eram em número bastante reduzido, pretendiam apenas ensinar a língua a um mínimo de crianças e algo sobre a cultura portuguesa, o que ainda prevalece, pois ainda se pode ler nos certificados de habilitações de moçambicanos licenciados em Portugal o seguinte: licenciado em Ensino da Língua e Cultura Portuguesas.
A situação educacional na colónia de Moçambique para os indígenas era de tal ordem que, até 1950, apenas um aluno moçambicano negro tinha completado o 5º ano do liceu.
A primeira escola primária só apareceu em 1799, na Ilha de Moçambique (primeira capital da colónia), na Província de Nampula. Seguiram-se as outras, em 1818, na cidade de Quelimane e no Ibo. Portanto, o sistema de ensino colonial tinha um carácter urbano, isto é, as escolas estavam situadas nas sedes distritais.
Em 1963, existiam na então colónia de Moçambique, os seguintes níveis de ensino: Primário, Secundário e Superior.
- O Nível Primário compreendia, conforme o carácter discriminatório instituído pelo regime, o Ensino de Adaptação, destinado ao «indígena» e Primário Oficial «Comum», para brancos e pretos assimilados;
- O Nível Secundário compreendia um Ciclo Preparatório de dois anos, o Liceal, de cinco anos (2º e 3º Ciclos), o Ensino Técnico Elementar, de dois anos, o Normal Indígena (artes e ofícios), de três anos, o Ensino Técnico Profissional (Comercial e Industrial de 3 anos), e mais dois anos de Secções Preparatórias aos Institutos (comercial e industrial) e
- O Nível Superior denominado por Estudos Gerais Universitários, de quatro anos.
De acordo com GOLIAS (1993:44), “o Ensino Primário estava estruturado diferencialmente, decalcando o regime jurídico: para “«indígenas» e para «civilizados»”. Desta feita, o ensino destinado ao «indígena» chamou-se "rudimentar", inicialmente e, posteriormente, "de adaptação".
O Ensino Rudimentar, que em 1956 passaria a ser chamado de Ensino de Adaptação destinado à população indígena era totalmente diferente do Ensino Oficial - para a população de origem europeia. Para cada um desses sistemas haviam objectivos distintos conforme se resume:
a) a finalidade do Ensino Rudimentar, segundo a Lei nº 238, de 15 de Maio de 1930 e a Concordata de 1940, era «conduzir gradualmente o indígena duma vida selvagem a uma vida civilizada» e
b) de acordo com o Regulamento do Ensino Primário Oficial, de 31 de Maio de 1950, no seu artigo 2º, este ensino tinha como objectivos «habilitar a todos os portugueses não indígenas a ler, escrever e contar, a compreender os factos mais simples da vida ambiente e a exercer as virtudes morais e cívicas, dentro dum vivo amor a Portugal».
À luz da reforma de 1935, tornada pública pela portaria nº 2.456 de 27 de Março que introduziu "emendas" ao regulamento do Ensino Primário Rudimentar, no âmbito da Reforma Administrativa Ultramarina pelo seu Art. 1º, denota-se que nada tinha mudado em relação à consideração dada ao autóctone:
"Art. 1º. O ensino primário rudimentar destina-se a colocar a criança indígena em condições de aprender a nossa civilização por meio do conhecimento da língua portuguesa, educação rudimentar das suas faculdades e adopção dos costumes civilizados".
O ensino dos «civilizados» era o ensino primário comum, especialmente para brancos e posteriormente também para autóctones "assimilados".
Portanto, o ensino "rudimentar" era dirigido pela Igreja Católica à sombra do acordo entre o regime colonial português e a Santa Sê, o que ficou conhecido na história pelo nome de Concordata e representava o modelo de educação colonial para os pretos nativos. Era caracterizado pela discriminação racial e pela unidade entre o ensino e a religião. Havia uma tácita cumplicidade entre a Igreja e as autoridades coloniais na repressão dos autóctones. É testemunha da referida cumplicidade criminosa, a seguinte passagem extraída do texto de António LEITE (1971), que diz taxativamente:
“... sobretudo a partir do estabelecimento de outras potências em África, em territórios mal ocupados por Portugal, os nossos governos, não obstante o sectarismo e os preconceitos contra as ordens religiosas que os dominavam, permitiram ou até favoreceram um pouco as missões ultramarinas, como meio de consolidar a ocupação portuguesa daqueles territórios ...” (101-102).
Dada a importância do ensino "rudimentar" para o tema em tratamento, torna-se pertinente reunir o maior número de informação possível, para não deixar margem a dúvidas quanto ao papel da Igreja na violência institucionalizada contra os valores culturais do “indígena” moçambicano, no sistema colonial português. Assim, o ensino para «indígenas» foi criado em 1930 pelo Diploma Legislativo nº 238 de 16/5/1930, destinado aos moçambicanos que não gozavam da “cidadania portuguesa”, e compreendia três ramos: ensino primário "rudimentar"; ensino "profissional" e ensino "normal".
Como se pode observar, o ensino para «indígenas» estava inteiramente nas mãos das missões da Igreja Católica, consequência da aplicação do Estatuto Missionário (Decreto-lei nº 31027, 5/5/1941). O ensino "normal", o último, conforme os três ramos em que estava subdividido o ensino «indígena», tinha por finalidade habilitar professores autóctones para as escolas "rudimentares".
Até 1963, o Ensino Primário estava organizado diferencialmente, imitando servilmente o regime jurídico dos “indígenas” e dos «civilizados». O ensino especialmente destinado aos indígenas chamou-se “rudimentar”, para indicar que esse ensino era destinado à gente não «evoluída», ainda em estado «rude». Mais tarde, passaria a designar-se por “ensino de adaptação”, para referir que se destinava ao então cidadão português da segunda que, pelo ensino, passava a ter as características que convinham ao regime: amaciado, pelo ensino da religião e subjugado pela força militar de ocupação. Parte do povo, em fase de aculturação, foi assimilando paulatinamente à cultura portuguesa, mas não passava daí. O dos «civilizados» era o ensino primário oficial «comum», para os filhos dos colonos brancos e os dos nativos admoestados e convertidos em cidadãos «assimilados».
Os assimilados eram negros que, convertidos em cristãos e portugueses da segunda, depois de uma escolarização, serviam à administração colonial nos diversos escalões, desde intérpretes a professores de posto, passando por ajudantes[90] de escritórios. Ainda sobre os assimilados, MAZULA (1995) afirma que,
"Marcelo Caetano separava, nas colónias, os europeus dos africanos, classificando estes últimos em «indígenas primitivos-tribais», «indígenas em evolução» - «de influência europeia», compreendendo os mestiços e indianos, considerados «não-autóctones» -, «indígenas e destribalizados» - aqueles que tinham abandonado a tribo e adoptado parcialmente «o modo de vida europeia» - e «assimilados». Na realidade, a separação era entre a sociedade colonizada e a sociedade colonizadora" (97).
Portanto, de acordo com o mesmo autor, a assimilação era um processo de alienação cultural, uma forma de dividir mais os indígenas. Era a forma como o sistema colonial reconhecia a entrada do negro na comunidade lusíada.
E assim, de acordo com MONDLANE (1975) referenciado por MAZULA (1995:97), o negro assimilado, «legalmente podia beneficiar das facilidades dos brancos, e supostamente, ter as mesmas oportunidades de educação e de progresso».
O negro assimilado, de acordo com MAZULA (op. cit.:98), aparentemente fazendo parte da classe dominante, era formatado para ser uma figura intermediária entre o «indígena» e o «cidadão», um porta-voz e divulgador da ideologia, no seu meio igualmente indígena. Geralmente exercia cargos de professor do posto, intérprete, ajudante de escritório, capataz, entre outros. Estava moldado para se sentir superior aos seus semelhantes «indígenas», mas sempre complexado na frente do branco. Daí a expressão pejorativa de MUKUNYA ORIPA, o que na língua Macua significa “branco-preto”, isto é, alienado. Os filhos do assimilado podiam matricular-se no ensino oficial, escapando ao ensino rudimentar.
O ensino rudimentar, especialmente concebido para os africanos das zonas rurais ministrava-se em escolas das missões, conforme o Estatuto Missionário. Representava o modelo de educação colonial, baseado na discriminação racial e na unidade entre o ensino e a religião. O ensino rudimentar, para os africanos, e o ensino para os «civilizados», brancos e assimilados, eram diferentes quanto aos objectivos, à estrutura, à complexidade e aos condicionalismos da sua actividade.
Dada a importância do Estatuto Missionário, para a compreensão da política educacional do sistema colonial, veja-se a transcrição, apud GOLIAS (1993) dos artigos 68 e 69, que contêm a sua essência:
“Artigo 68º - O ensino indígena obedecerá à orientação estabelecida pela constituição política. Será, para todos os efeitos, considerado “ensino oficial” e regular-se-á pelos planos e programas adaptados pelos governos das colónias.
Aqueles planos e programas terão em vista a perfeita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho de harmonia com sexos, condições e conveniências das economias regionais, compreendendo a moralização e abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais.
O ensino indígena será essencialmente nacionalista e conducente ao indígena para poder auferir meios para seu sustento e de sua família e terá em vista o estado social e a psicologia das populações a que se destina.
Cabe ao governo, por intermédio dos serviços de instrução da respectiva colónia, indicar quais os conhecimentos técnicos que em cada região convém ministrar aos indígenas.
Artigo 69º - Nas escolas, é obrigatório o ensino e o uso da língua portuguesa. Fora das escolas os missionários e os auxiliares usarão também a língua portuguesa. No ensino da religião pode, porém, ser usada livremente a língua indígena” (37).
Era, portanto, um ensino essencialmente virado para a aculturação, despersonalização e dominação dos colonizados. Mesmo nas escolas missionárias, os indígenas que fossem apanhados a falar as suas línguas eram punidos com castigos corporais pesados, além de trabalhos forçados nas machambas dos missionários (plantio e tratamento de cajueiros além da apanha da castanha de caju, cultivo de feijões e milho, entre outros produtos agrícolas de rendimento). Portanto, nestas escolas, os indígenas eram apenas autorizados a usar as suas línguas para a interpretação correcta dos textos da Bíblia. Por causa dessa política de proibição e ridicularização das línguas maternas indígenas, hoje, muitos moçambicanos, mesmo os mais escolarizados, mal falam as suas línguas, e, consequentemente, mal dominam as línguas estrangeiras, incluindo o próprio português.
Manuel F. ROSA, apud GOLIAS (op. cit.), aponta, como pontos fundamentais dessa política de aculturação, de despersonalização e de acomodação dos colonizados, os seguintes:
“a) Nacionalização dos nativos pelo ensino e uso habitual, generalizando a língua portuguesa – a língua nacional de unidade;
b) Moralização e aquisição de hábitos de trabalho – isto é, trabalho disciplinado, sistemático, regular (o único criador de hábitos...), em vez do «dolce farniente» ou assistema, ocasionalmente de mole actividade nativa;
c) Assento ruralista do ensino no claro intuito de lutar contra o despaisamento migratório e fuga dos campos para os centros urbanos; e
d) Intenção ministerial ou artesanal com inculcada preparação de artífices, manifestamente dirigida às cortinas populacionais suburbanas onde se aglomeram as massas em processo de destribalização” (38).
A população excluída do sistema colonial de ensino continuou com a sua educação meramente de subsistência, que servia perfeitamente para a solução dos problemas do seu quotidiano. A educação autóctone tradicional foi considerada própria de animais selvagens. Os ritos de iniciação, que representavam o culminar de toda essa educação tradicional autóctone foram objecto de proibição por parte das autoridades coloniais que passaram a perseguir os seus mestres. Sobre a perseguição dos autóctones, Alexandre CANCELAS[91] (1968), alerta sobre o perigo da tentativa de «zerar» (passe o neologismo) as culturas nativas através do aniquilamento das práticas culturais tradicionais autóctones:
"O condicionalismo sócio-político aconselha, em meu entender, a que não se perfilhem soluções extremistas e antes se afeiçoe o costume aos nossos padrões culturais.
O processo de operar essa gradual transformação do costume, para além das sugestões que fiz em termos genéricos, merece um debruçar de atenções sobre o pormenor, o que não faço, porque seria tempo perdido se caso um dia viesse a adoptarem-se medidas que se enquadrassem nos extremos que condeno.
Seja como for, não se pode negar a relevância destes, como de tantos problemas sócio-políticos que reclamam uma orgânica administrativa em que haja lugar ao estudo das soluções aconselháveis, à actualização de conhecimentos e de processos ultrapassados, e, sobretudo, evito a multiplicação de métodos pessoalíssimos que conduzem à inconstância da Administração, a qual provoca no autóctone a dúvida sobre os nossos objectivos e a hesitação nos seus comportamentos" (37).
Apesar deste posicionamento louvável de Alexandre Cancelas, os colonialistas sempre consideraram o autóctone como gente inferior sem educação, cujas práticas culturais, porque diferentes das conhecidas na Europa eram sinais de um estágio ainda rude de desenvolvimento da humanidade. Portanto, em todas as esferas, o sistema colonial português desprezou, espezinhou e violentou os valores culturais dos autóctones, porque na óptica dos portugueses, tudo o que dizia respeito à vida do ethos local eram práticas selvagens que deviam ser expurgados.
É assim que a Igreja Católica aparece como a instituição que deveria quebrar estas «práticas selvagens», adoptando providências para uma acção civilizacionista dos «cafres», através do ensino e da evangelização.
Com medo desta interferência, o povo passou a realizar os ritos de iniciação da puberdade (como o apogeu, isto é, a coroa do processo de ensino-aprendizagem autóctone tradicional) na semi-clandestinidade, pois através da autoridade tradicional imposta, fiel aos seus desígnios, o colonialismo conseguiu, com o tempo, imiscuir-se paulatinamente, passando a controlar (parcialmente) o processo. A tentativa de cristianização dos ritos iniciáticos não começou agora. Ele é corolário de tentativas desde os tempos mais remotos. No início, o sistema colonial tentou banir os ritos com a aplicação da força repressiva física e depois tentou controlá-los por meio da persuasão através da cruz.
Em suma, pode-se afirmar que a educação no tempo colonial caracterizava-se pela existência de dois distintos sistemas de ensino e discriminados, com funções sociais também distintas e estruturas próprias: um ensino para indígenas e outro ensino para a população branca e a dos assimilados. O sistema colonial da educação foi uma consequência clara do sistema em todos os seus aspectos. De acordo com MAZULA (1993), o ensino destinado aos indígenas tinha como objectivo
"conduzir gradualmente o indígena da vida de selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio. O ensino rudimentar destinava-se a civilizar e nacionalizar os indígenas da colónia, [difundindo entre eles] a língua e os costumes portugueses" (45).
Os objectivos da educação colonial visavam fundamentalmente reflectir e reproduzir as relações de produção capitalista e a opressão das populações indígenas; reproduzir as relações de poder; garantir a mão-de-obra barata, submissa e despersonalizada; criar uma elite moçambicana alienada, intermediária na exploração da população indígena. Estes objectivos eram bem evidentes nos conteúdos, métodos e meios do processo de ensino-aprendizagem colonial.
4.2 O Desenvolvimento da educação no período pós-Independência
Com o advento da independência nacional, as autoridades moçambicanas também passaram a hostilizar a educação tradicional, sobretudo os ritos de iniciação. Documenta esta afirmação, o seguinte extracto de MACHEL (1978:18): “... a educação tradicional visa transmitir a tradição erigida em dogma. O sistema de classe, de idade, de ritos de iniciação, tem por objectivo integrar a juventude nas ideias velhas, destruir-lhes a iniciativa”.
Esta posição do presidente MACHEL, recondicionou a realização dos ritos de iniciação em moldes clandestinos. Ao analisar os diferentes pontos de vista sobre a educação tradicional em Moçambique, considerei (BONNET, 1996) a posição de S. Machel como sendo a que representava a posição oficial das novas autoridades moçambicanas:
“Parece-nos que a posição de Samora Machel, [integrada] no seu contexto histórico (...) tinha em vista (...) evitar o ressurgimento da autoridade tradicional, (...) que poria em causa o seu projecto de unidade nacional, baseado na filiação partidária de todo o povo na FRELIMO[92], e na sua visão sobre a educação como «meio de formação do homem novo» através da escola como «base para o povo tomar o poder (...).
Era a tentativa de preservar a recente unidade histórica de que era um dos principais promotores e depositários. [Há nesta].concepção do novo Estado soberano, julgamos, (...) a construção da nação sem lograr a fórmula de preservação da diversidade e heterogeneidade concretas e históricas dos diferentes grupos étnicos e sociais. [Pretende-se] unir e integrar [os] grupos sob o signo de identidade única, sem ter em conta [a heterogeneidade cultural da sociedade moçambicana]” (32).
Portanto, o processo de construção do conhecimento do ethos, a pedagogia que a sociedade rotulada de tradicional utiliza no processo educativo, era vista, segundo o órgão oficial da Frelimo "A VOZ DA REVOLUÇÃO" (1982:18), como "assente na tradição oral impregnada profundamente pelo meio sócio-cultural, e por outro lado uma pedagogia ritual, formalizada nos períodos da iniciação", como se isso fosse negativo.
De acordo com o órgão oficial do Partido Frelimo a "VOZ DA REVOLUÇÃO" (op. cit.), "na educação tradicional a superstição tomava o lugar da ciência e a tradição é um dogma. Encerrava a existência humana e o universo na perspectiva da tribo, da família, do grupo etário e acorrentava o presente ao passado" (ibidem).
Trata-se de uma posição polémica porque a FRELIMO não tinha em conta que até à altura em que conquistou o poder, através da Luta de Libertação Nacional a maioria do povo, aquele que ela afirmava representar, tinha como o principal veículo do processo de transmissão dos saberes seculares a educação tradicional. Por isso, é essa educação que deveria servir de base para a construção do sistema de ensino para a devida valorização do passado histórico e cultural do ethos. Os fracassos que hoje enfrentamos na educação resultam, exactamente, do desprezo do nosso passado "vergonhoso".
Frente aos fracassos que educação enfrenta, está cada vez mais evidente que o projecto de educação não pode funcionar nos moldes que hoje se pretende impor, isto é, sem ter em conta a diversidade sócio-cultural cimentada pela história secular profundamente enraizada na tradição. Isto não significa defender uma educação baseada no obscurantismo. Pelo contrário o obscurantismo combate-se com uma educação enraizada na realidade contextual do povo, na sua cultura. Constitui, também, obscurantismo, idealizar uma educação visionária, idealista, desenraizada, que engana o povo com conteúdos de aplicação duvidosa: a história provou que o "Homem Novo" que o sistema educativo moçambicano visava desencantar, não existe e nunca existiu. O tipo de sociedade que a escola pretendia realizar, que nega os direitos, interesses individuais e do ethos, pretendia também, perpetuar, à semelhança do capitalismo selvagem, a exploração entre os homens.
Apesar da aderência massiva da população à escola no período que se seguiu à Independência Nacional, devido à euforia motivada pela independência e às palavras de ordem de Samora Machel de "fazer da escola uma base para o povo tomar o poder" e da nacionalização do ensino a 24 de Julho de 1975, volvidos 25 anos de independência verificamos que, afinal, o povo continua ausente das escolas. As desistências em massa e reprovações constantes levam a concluir que algo está errado na nossa escola. Muitos factores podem concorrer para esta situação, desde a guerra de desestabilização terminada em 1992, até à deficiente formação de professores. Entre estes factores está também o próprio interesse das populações naquilo que a escola ensina como projecto de continuidade e reprodução de valores sociais.
Paradoxalmente, a educação autóctone tradicional sobrevive a todas estas vicissitudes, aparecendo como “alternativa” à educação oficial. Daí se poder afirmar que as desistências das crianças podem ser uma demonstração clara de resistência contra um ensino alienatório porque a escola nada tem de novo como proposta de vida. Isto pode ser o motivo porque a educação autóctone tradicional e os ritos de iniciação continuam a ter uma aderência massiva[93] apesar da evasão escolar e das reprovações no ensino oficial.
É assim que, numa análise da situação prevalecente em Moçambique, pode-se dizer que a importância da escola como agência educacional é limitada. PALME (1994), num estudo realizado sobre o fenómeno da desistência e da repetência no nosso país, focalizando duas áreas geográficas situadas uma no sul (Província de Maputo) e outra no norte (Província de Nampula), escreveu:
“Em quase todos os casos examinados de abandono em Matibane e no vizinho Naholoco não era um evento súbito ou dramático que quebrava inesperadamente os laços da jovem rapariga ou do jovem rapaz com a escola, mas o resultado de um processo que se vinha desenrolando lentamente desde a 1ª classe.
Estas crianças rurais viviam num mundo dominado pelos ciclos e necessidades da agricultura. O trabalho, a educação familiar, as cerimónias religiosas, a iniciação e outros rituais, e muitas vezes agências educacionais semi-institucionalizadas, tal como as escolas corânicas, educavam as crianças e preparavam-nas para o futuro. Mesmo que a escola fosse olhada como um educador, no sentido moral lato da palavra, era apenas uma das várias agências educacionais, e, na realidade, de modo algum, a mais importante. Para os poucos (...) bem sucedidos na escola, a educação oficial continuava a ser uma alternativa. Para todos os outros, deixar a escola não era um acontecimento dramático. O seu futuro era bem preparado e a sua participação em actividades importantes, muito necessitada. Ir à escola significava, de certa forma, prolongar o estado de infância e adiar a entrada na vida adulta e respeitada, incluindo coisas como contribuir mais completamente para a sobrevivência da família através de trabalho, arranjar a sua própria machamba[94] ou casar-se. Neste sentido, nada havia de anormal em não ir à escola depois de ter passado alguns anos na escola primária. Quando a escola entrava em conflito com princípios mais fiáveis e impulsionadores para a reprodução social, era abandonada – e com bons motivos.
Se a escola oficial pode ser de interesse duvidoso aos olhos dos pais ou famílias, é-o mais ainda para as próprias crianças. Ser capaz de ler e escrever, os objectivos mais básicos na educação oficial, não é um valor óbvio nas sociedades rurais, onde as crianças não só podem sobreviver sem essa competência, mas também pouco ou nenhum uso fazem dela, já que pouco há que se ler e escrever. Se as crianças rurais estivessem rodeadas de textos [não só em português como também na sua língua materna] e a competência de leitura tivesse um valor de uso imediato e evidente, as coisas seriam diferentes” (40-41).
No entanto, a análise de Palme não difere da do colonialismo, segundo a qual as crianças rurais não precisavam de escola, o que não corresponde à verdade. Se foram à escola nos primeiros anos é porque ela representa alguma coisa para as suas vidas. Caso contrário, os pais não teriam perdido tempo matriculando-as, com todos os custos que isso implica.
Palme constatou que nas cidades e seus arredores, a situação era contrária à do campo, o que não é verdade. O que acontece é que há diferenças de impacto do problema, pois, a escola continua a ser um meio necessário na luta pela sobrevivência, longe de ser apenas uma alternativa, em ambos os meios. O que acontece é que tanto no campo como na cidade, o conhecimento que a escola transmite devia ser aplicado à realidade do contexto, à realidade rural (produção agrícola, pesca, caça, higiene sanitária e ambiental, valores morais e éticos, etc.). Porém, os conteúdos dos programas vigentes não são compatíveis com as referidas realidades dos alunos.
No meio urbano, os conhecimentos adquiridos têm, em algumas situações, uma aplicação imediata na resolução de alguns problemas instantâneos, tais como a obtenção de emprego ou a continuação dos estudos num outro nível (além da aplicação na vida quotidiana da leitura, escrita e das quatro operações da aritmética).
Para as classes médias, a escola tem outro sentido: ela serve para a manutenção, elevação e reprodução das suas posições sócio-económicas. Nas grandes massas populares dos subúrbios, as famílias pobres, apesar do reconhecimento da utilidade da escola como o meio a partir do qual as pessoas são preparadas para o mercado de trabalho, essa utilidade é limitada porquanto a forma de sobrevivência segura continua sendo a aprendizagem tradicional, baseada no saber, saber fazer, saber ser/estar, segundo conteúdos, métodos e meios da pedagogia autóctone.
É assim que, em parte, se pode explicar o facto de, mesmo que um chefe de família tenha emprego fixo tem sempre uma machamba donde tira alimentos para o seu sustento. Um ditado popular Macua diz: o emprego numa unidade de produção de um patrão, não é «serviço» seguro, porque um dia, o indivíduo pode ser expulso por um contratempo. O verdadeiro emprego é a pessoa ter a sua própria machamba. Isto não é apenas porque o emprego fixo não dá rendimentos suficientes para todo o agregado, mas porque uma machamba sempre reforça a base alimentar da família. É também um factor cultural. Porém, é caso para perguntar se existem em Moçambique, nas grandes massas populares pobres das zonas peri-urbanas, pessoas com escolarização suficiente que garanta emprego (que escasseia cada vez mais), de rendimentos suficientes para plena satisfação das necessidades de todo o agregado.
Durante o trabalho de campo, de pré-testagem, nos arredores da cidade de Nampula encontrei meus antigos alunos (rapazes e raparigas) que, mesmo tendo frequentado o 8º ano de escolarização tinham, como ocupação principal, lavrar as suas machambas, das quais sobrevivem, produzindo para o seu sustento e venda dos excedentes (quando os há), para a satisfação de outras necessidades.
Pertencendo a famílias pobres, não puderam prosseguir com os seus estudos. A solicitude da vida e do dever de serem úteis aos seus pais, ajudando-os na lavoura e no sustento da família, levou-os a encurtar o "período da fantasia"[95]. O que lhes é útil, neste momento, é o que aprenderam durante a educação autóctone tradicional: pegar a enxada, caçar, pescar, cuidar do cajual, construir a sua habitação, o celeiro, etc.
A escola oficial pouca esperança oferece à maioria de moçambicanos. Ela é vista como “coisa dos outros”, assim como no tempo colonial era vista como “pertença do colono ou dos padres”. A escola moçambicana continua impermeável à realidade cultural dos seus usuários ou destinatários.
Como resultado da pesquisa, espero que os conteúdos, métodos e meios de ensino relevantes da educação autóctone tradicional possam integrar-se nos currículos formais para que a educação forme, de facto, integral e harmoniosamente a personalidade do cidadão moçambicano, tendo em conta o contexto sócio-cultural que o rodeia; que a integração entre a educação autóctone tradicional e a oficial actual na escola contribua para a elevação da taxa de escolarização; que contribua para a permanência de alunos e alunas na escola; que a integração entre a educação autóctone tradicional e a educação oficial diminua o desperdício escolar (desistência e repetência) e contribua para garantir uma capacitação para o emprego em Nampula e no país.
4.2.1 A implantação do Sistema Nacional de Educação.
Em Moçambique para além do analfabetismo; herdamos uma rede escolar insuficiente, professores com uma formação distorcida e sem quadros para a administração das poucas escolas existentes o que tem levado a educação a desenvolver-se de forma desequilibrada.
Apesar dos esforços empreendidos pelo governo da FRELIMO (frente de libertação) após a independência do país, embora, inadequadamente em alguns momentos históricos, o sector da educação é o que mais se ressente das dificuldades de mudanças no país.
A 24 de Julho de 1975, um mês depois da proclamação da Independência Nacional, foram nacionalizados a terra e os recursos naturais do país, os serviços da saúde e da educação. Estas nacionalizações visavam, fundamentalmente, eliminar a possibilidade da emergência da burguesia enquanto classe e introduzir novas relações sociais de produção (BUENDÍA, 1999:234).
As primeiras modificações introduzidas no sistema da educação em Moçambique remontam dos tempos do Governo de Transição[96]. Os objectivos da FRELIMO traçados para essa fase incluíam a descolonização das instituições, das «mentalidades» e a extensão a todo o país da experiência político-organizacional das zonas libertadas. A escola para a FRELIMO era o palco principal do combate pela transformação das mentalidades, por isso a urgência do controle estatal do sector da educação.
A proclamação da Independência (25.06.75) consagrava uma política de educacional que atribuía ao Estado o papel director, unificador e executor da educação. Portanto, de acordo com MEC (1979:4), apud GÓMES (op. cit. p. 233) "...a nacionalização da educação constituiu o primeiro passo para o Estado poder passar a dirigir o processo educativo, para poder uniformizar o sistema o sistema de ensino e, em suma, para o poder democratizar".
Moçambique vivia um momento em que, por força da linguagem revolucionária das novas autoridades, os termos nacionalização-estatização-democratização confundiam-se e eram equvalentes. Essa tendência para estatização era a tónica presente em todos os sectores.
Com a nacionalização da educação (24.07.1975), a FRELIMO procurava implementar uma democracia socialista nas escolas. Na tentativa da massificação da educação e com slogans revolucionários como "fazer da escola uma base para o povo tomar o poder", "com mais saber mais produção", entre outros, aliados à ânsia de o povo frequentar o ensino oficial, houve uma explosão escolar que o MINED (1990) reconhece,
"que não só sobrecarregou a rede escolar existente, como obrigou as embrionárias estruturas administrativas a crescer em função de respostas pontuais deste crescimento educacional, usando nas suas estruturas os [indivíduos] mais habilitados e experientes, em prejuízo da capacidade pedagógica das escolas" (1).
Só que essa explosão escolar não foi acompanhada por medidas mais radicais no que respeita ao currículo, no sentido de introduzir conteúdos, métodos e meios que respeitassem a nossa moçambicanidade, a nossa cultura, as formas locais de construção do conhecimento, para o resgate do processo de ensino-aprendizagem da educação autóctone. Embora teoricamente se faça um discurso de integração da vida da comunidade na escola, a verdade é que na prática nada se fez para pôr em prática essas intenções. Muitos documentos oficiais como o órgão oficial do Partido, a "VOZ DA REVOLUÇÂO" (1982:19) defendia princípios de "integração da escola na vida da comunidade (...), o trabalho manual e a produção como parte integrante do processo educativo, a afirmação da personalidade moçambicana, a identificação com a cultura popular...".
Porém, as intenções de integração cultural anunciadas no SNE foram dificultadas exactamente pela ausência de estratégias de transposição da ponte entre as sociedades tradicionais moçambicanas e a almejada sociedade socialista que a escola devia ajudar a construir a partir do Homem Novo nelas forjado. Portanto, a escola queria formar um novo ser culturalmente “ahistórico”, já que o SNE não queria saber da sociedade de proveniência dos alunos. O sistema pretendia apagar a socialização inicial das crianças.
"O Sistema Nacional de Educação (SNE) surgiu como a nossa estratégia para a criação do Homem Novo em Moçambique". Assim afirmara a então ministra da Educação e Cultura, Graça Machel, na sua intervenção na IX Sessão do Comité Central[97].
Não restam dúvidas que alguns dos ideais que norteavam o surgimento do SNE eram nobres, se tivermos em conta que defendiam que a concepção de um novo sistema de educação exige como seu ponto de partida metodológico, o diagnóstico da situação anterior e uma perspectiva correcta de objectivos, conteúdos e métodos de educação. A Frelimo (partido) reconhecia que, até à data da Independência, o ensino colonial não constituía nem o único nem o mais generalizado sistema a que foi submetida a população moçambicana.
Através da "VOZ DA REVOLUÇÃO" (1982:18), a Frelimo reconhecia que a maior parte do povo foi sujeita à acção da educação tradicional, através da qual "a maioria do povo moçambicano forjou os seus valores, veiculou as suas ideias e os seus comportamentos, afirmou a sua personalidade e preservou a sua cultura". Contudo, esse reconhecimento formal entrava em contradição com a prática. A educação autóctone tradicional foi colocada na mesma mira que combatia a educação colonial, o que foi um erro grave, pois isso equivalia a negar e tentar destruir, subtil e deliberadamente, a cultura popular e a nossa história secular.
A Frelimo padecia de falta de coerência. Entre o que dizia defender e as atitudes práticas sobre esse discurso de resgatar a cultura, existia um fosso bastante grande. A Frelimo, no seu discurso político, considerava a cultura, essencial para a revolução de que era vanguarda. Contudo, não incentivou estudos aprofundados sobre a cultura das sociedades a que apelidava de tradicionais-feudais. Isso permitiria um enraizamento antropológico sólido da própria revolução de que era timoneiro e para a revolucionarização das culturas MAZULA (1995:132).
A FRELIMO (Frente) e o Partido Frelimo ao hostilizarem o poder e a educação tradicionais, não revelavam senão a sua fragilidade de aceitar uma "autoridade participativa", uma convivência com as sociedades tradicionais, isto é, com aqueles que na verdade preservaram a cultura milenar. Não observaram que negando-se ao diálogo cultural com essas sociedades hostilizava o próprio povo. De acordo com MAZULA (op. cit.),
"Perante o encerramento e o radicalismo do Partido, as populações foram reagindo no silêncio, buscando formas de se refigurarem nesse silêncio e na falta de alternativas viáveis do Partido/Estado. Facilmente as populações retomam a tradição da resistência passiva, como forma de preservar a cultura" (ibidem).
Portanto, em contraposição a hostilização às tradições, assiste-se, hoje, uma total ausência de identidade cultural realística no SNE, e, consequentemente a uma sobrevalorização das práticas pedagógicas tradicionais.
Michel Cohen (1978:4) referenciado por MAZULA (ibidem), afirma que o discurso revolucionário sobre a valorização da cultura visava apenas manter uma certa «coerência» com os princípios ideológicos ditados. O mesmo autor afirma que era possível contestar a análise de Cohen, mas, ao menos, conduz à reflexão sobre as dificuldades da Frelimo para implantar o seu projecto de desenvolvimento. Desenvolvimento?
Portanto, a Frelimo não soube ou não foi capaz, também na área da cultura, de estabelecer uma ponte entre o discurso e a prática, premissa indispensável para idealizar e realizar um sistema de educação com o qual o ethos se identificasse, por ver nele contido, o seu ideal de Homem.
Não restam dúvidas que o SNE nasceu excluindo o povo de que a FRELIMO dizia principal beneficiário. Ao excluir o processo de ensino-aprendizagem do ethos, ao invés de capitalizar os aspectos "positivos" desse processo, que motiva(ra)m a sua aceitação e aderência ao longo dos séculos, mesmo no período da euforia revolucionária, que precedeu a Independência e a "massificação" do ensino oficial, o Partido condenava o projecto ao fracasso.
O SNE ficou conhecido como a Lei nº 4/83 de 23 de Março, da Assembleia Popular[98], embora tenha entrado em vigor a partir de 1 de Fevereiro de 1983, dia da abertura oficial do ano lectivo. O SNE (1983) tinha como princípios e objectivos gerais os seguintes:
Artigo 1 Princípios gerais:
a) "A educação é um direito e um dever de todo o cidadão, o que se traduz na igualdade de oportunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo o povo;
b) a educação reforça o papel dirigente da classe operária e a aliança operário-camponesa, garante a apropriação da ciência, da técnica e da cultura pelas classes trabalhadoras, e constitui um factor impulsionador do desenvolvimento económico, social e cultural do país;
c) a educação é o instrumento principal da criação do Homem Novo, homem liberto de toda a carga ideológica e política da formação colonial e dos valores negativos da formação tradicional capaz de assimilar e utilizar a ciência e a técnica ao serviço da Revolução;
d) a educação na República Popular de Moçambique baseia-se nas experiências nacionais, nos princípios universais do marxismo-leninismo e no património científico, técnico e cultural da humanidade";
e) a educação é dirigida, planificada e controlada pelo Estado, que garante a sua universalidade e laicidade no quadro da realização dos objectivos fundamentais consagrados na Constituição" (5).
Depreende-se, por estes princípios, que o objectivo central do SNE (1983:7), é a "formação do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista". Os valores da sociedade socialista que o sistema defendia, eram:
· "A unidade nacional, o amor à Pátria e o espírito do internacionalismo proletário;
· O gosto pelo estudo, pelo trabalho e pela vida colectiva;
· O espírito de iniciativa e o sentido de responsabilidade;
· A concepção científica e materialista do mundo;
· O engajamento e contribuição activa com todos os seus conhecimentos capacidades e energia, na construção do socialismo" (ibidem).
Para Sérgio Vieira[99] apud MAZULA (1995), esse Homem Novo,
"é um processo (...), que conduz a qualquer coisa (...): ao Homem comunista, que vai emergir quando for construída a sociedade comunista e sabemos aquilo que não será; (...) que ele resulta de todo um combate pela transformação das realidades objectivas e das subjectivas" (180).
Portanto, esse Homem Novo era tudo, menos o homem moçambicano, pois, esse, já nascera com atributos (tradicionais), que muito dificilmente se engajariam no ideal de homem que a FRELIMO preconizava, numa sociedade ainda por vir, uma sociedade imaginária, um homem culturalmente imaginário.
Os objectivos gerais do SNE (1983:7), antes das alterações contidas na Proposta do Plano Curricular (1999), eram os seguintes:
a) "Formar cidadãos com uma sólida preparação política, ideológica, científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação patriótica e cívica;
b) erradicar o analfabetismo de modo a proporcionar a todo o povo o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades;
c) introduzir a escolaridade obrigatória e universal de acordo com o desenvolvimento do país, como meio de garantir a educação básica a todos os moçambicanos;
d) assegurar a todos os moçambicanos o acesso à formação profissional;
e) formar o professor como educador e profissional consciente com profunda preparação política e ideológica, científica e pedagógica, capaz de educar os jovens e adultos nos valores da sociedade socialista;
f) formar cientistas e especialistas altamente qualificados que permitam o desenvolvimento da investigação científica;
g) difundir, através do ensino, a utilização da língua portuguesa contribuindo para a consolidação da unidade nacional;
h) desenvolver a sensibilidade estética e capacidade artística das crianças, jovens e adultos educando-os no amor pelas artes e no gosto pelo belo;
i) fazer das instituições de ensino bases revolucionárias para a consolidação do poder popular, profundamente inseridas na comunidade".
Comparando estes objectivos com os que aparecem no PCEB (1999), nota-se uma alteração nas alíneas a), c), e), g), i), cujos conteúdos foram mudados ou suprimidos para dar lugar a outros, com uma nova roupagem na linguagem. Procurava-se adequá-la às rápidas mudanças ocorridas no país, resultantes dos Acordos de Roma, em 1992, sobretudo para acomodar o preceituado na nova Constituição da República. O SNE que o PCEB cita é resultado da revisão havida à luz da Lei 6/92 do SNE (1983), que altera entre outros aspectos, a exclusividade do Estado sobre a educação em Moçambique, que admite a participação de outros agentes na educação.
O SNE introduzido em 1983 pretendia globalizar a experiência adquirida, principalmente nas zonas libertadas (territórios onde a tropa colonial tinha sido derrotada pela guerrilha), num sistema nacional. Procurava estabelecer coerência entre os objectivos, currículos e metodologias, e estruturava o sistema por níveis e subsistemas. Em 1977, o INDE que iniciara a produção do livro para garantir a introdução gradual do SNE ao ritmo de uma classe por ano, iria conhecer várias dificuldades entre as quais a qualidade do material. Contudo, o maior constrangimento residia no processo de planificação centralizada, que fora reforçado a partir de 1979. Essa centralização que era assente numa estrutura bastante frágil, com o fluxo informativo deficiente, limitando e impedindo muitas vezes o sucesso das iniciativas locais que, entretanto, foram desaparecendo com a maior estruturação da planificação do sistema.
Outro elemento que condicionou os resultados que se esperavam do SNE, foi a guerra movida pela RENAMO, que destruiu ou paralisou mais de 50% da rede escolar primária, agravando ainda mais a situação da rede urbana que já se ressentia da superlotação.
Para além da estrutura e do conteúdo do currículo nas escolas primárias e secundárias se mostrarem cada vez mais inadequados para uma economia em rápida mudança e para as exigências sociais (MINED, 1998:11), sobretudo os conteúdos que apelavam para um conhecimento irreal, desconexo com as realidades culturais do ethos, a população foi obrigada a migrar na procura de locais seguros, o que levou a uma profunda alteração na sua distribuição para a qual nunca houve uma rede escolar pensada (MINED, 1990:20); o processo de ensino-aprendizagem nas regiões directamente afectadas pela guerra, passou a funcionar em condições de instabilidade física, psicológica, para além da má nutrição, característica de carência logística das aglomerações de refugiados. Nestas condições, as metodologias de ensino a que os professores (sem uma formação adequada) recorriam, eram bastante inadequadas. Como resultado, houve uma redução dos efectivos escolares no Ensino Primário, em todo o país o que baixou, consequentemente a taxa bruta de escolarização.
Porém, com o fim da guerra em 1992, as suas marcas tendem a perdurar. Com a rede escolar insuficiente, a pobreza absoluta e a irrelevância dos conteúdos métodos e meios de ensino, onde os currículos desprezam e excluem as formas de construção de conhecimento e os saberes locais, a situação não promete melhorar, antes pelo contrário.
O SNE (1983) é constituído pelos seguintes subsistemas:
· "Subsistema de Educação Geral;
· Subsistema de educação de Adultos;
· Subsistema de Ensino Técnico-Profissional;
· Subsistema de Formação de Professores:
· Subsistema de Educação Superior" (9).
O Subsistema de Educação Geral devia proporcionar ao cidadão uma educação de base, de acordo com o estágio de desenvolvimento do país. Não proporciona uma preparação ou ocupação profissional específica. É uma preparação para o prosseguimento nos níveis seguintes do SNE e no âmbito dos vário Subsistemas. Estão também integradas neste Subsistema a educação pré-escolar, para crianças em idade inferior ao de ingresso no ensino primário, o ensino vocacional, para alunos que revelassem talentos especiais nos domínios das artes, da ciência, técnica, cultura física e outros, a desenvolver em escolas vocacionais e o ensino especial para crianças portadoras de deficiências físicas e mentais e para as de problemas de integração especial.
O Subsistema de Educação de Adultos tem como função a erradicação do analfabetismo e a escolarização de adultos. Devia assegurar a todos os adultos, sobretudo aos trabalhadores, uma formação integral e acesso à formação técnico-profissional nos diferentes níveis do sistema.
O Subsistema de Educação Técnico-Profissional responde à necessidade de qualificar a força de trabalho. Devia garantir uma formação profissional numa determinada área da produção material ou de outros sectores sociais, proporcionado o acesso dos jovens trabalhadores aos diferentes níveis de do sistema. Abarca as áreas do Ensino Técnico-Profissional, da Formação e Aperfeiçoamento Profissional dos Adultos e o domínio do Ensino Técnico-Profissional de adultos.
O Subsistema de Formação de Professores deve assegurar a preparação de docentes que de modo directo e sistemático deverão garantir a formação integral das novas gerações. Este Subsistema deveria ser o eixo central para a implementação do SNE, porque é no âmbito deste que são formados os professores para a Educação Geral; professores e educadores para a Educação de Adultos; professores e monitores para a Educação Técnico-Profissional e professores e instrutores para a Formação de Professores.
Dada a limitada capacidade de formação de professores em maior número para a implantação de um sistema de ensino novo, num país pobre como Moçambique, pode ter sido, também este subsistema que inviabiliz(a)ou o SNE. A introdução gradual do sistema exigia professores com uma formação sólida. A situação era mais grave, se tivermos em conta que havia falta de correspondência ente os programas leccionados nos centros de formação de professores primários (CFPPs) e os programas do SNE. De acordo com MINED (1990:3) havia [uma desarticulação] entre os objectivos, conteúdos e métodos de ensino no EP1 e os programas de formação de professores".
O Subsistema de Educação Superior deve preparar especialistas com um elevado nível de preparação técnico-científico, capaz de investigar e aplicar os conhecimentos ao serviço do desenvolvimento sócio económico do país.
O Sistema Nacional de Educação (op. cit.) estava estruturado em quatro níveis:
1. "Primário;
2. Secundário;
3. Médio e
4. Superior" (ibidem).
O Ensino Primário compreende dois graus: 1º grau, da 1ª à 5ª Classes e o 2º grau, da 6ª a 7ª Classes, que dev(e)ia ser frequentado por crianças de 7 a 14 anos.
O Ensino Secundário, para preparar alunos para o ingresso nos níveis seguintes dos diferentes subsistemas, compreende a 8ª, 9ª e 10ª Classes. Visa capacitar os alunos para frequentarem com sucesso o Ensino Pré-Universitário, sobretudo para elevar os conhecimentos nas áreas de comunicação, ciências matemáticas, naturais, sociais, bem como nas áreas político-ideológicas, estético-cultural e da educação física. Visava também desenvolver capacidades de aplicação de métodos científicos e aprofundar os conhecimentos da consciência socialista e das convicções, atitudes e comportamento correspondente.
O Ensino Pré-Universitário compreendia duas classes: 11ª e 12ª. Visava ampliar e aprofundar a formação para o ingresso no Ensino Superior.
No Ensino Superior ingressam estudantes que tenham concluído o nível médio do Subsistema de Educação Geral ou equivalente.
De acordo com o SNE (1983:), o Subsistema de Educação Superior
a) "realiza a formação de profissionais técnicos e científicos com um alto grau de qualificação e um profundo conhecimento da realidade nacional e das leis do desenvolvimento da natureza, da sociedade e dos pensamento, para participarem no desenvolvimento e defesa do país e da revolução ... b)...realiza-se em estreita ligação com a investigação científica. c) ...[dá] prioridade aos filhos dos operário e camponeses cooperativistas e aos combatentes e trabalhadores de vanguarda....(23)".
Como me referi anteriormente, a Lei 4/83 foi revogada pela Lei 6/92, de 6 de Maio, que reajusta o quadro geral Sistema Nacional de Educação e adequa as disposições nele contidas. As mudanças foram condicionadas pelo acordo Geral da Paz pelo governo e pela RENAMO, no dia 4 de Outubro de 1992. Não considero muito importante detalhar os pormenores acerca do referido acordo porque, pela especificidade do assunto em discussão e de acordo com a presente tese, é mais importante destacar as diferenças operadas no referido documento.
No âmbito dos princípios gerais:
Lei 4/83 de 23 de Março
Lei 6/92 de 6 de Maio
1) A educação é um direito e um dever de todo o cidadão que se traduz na igualdade de oportunidade de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo o povo;
2) a educação reforça o papel dirigente da classe operária e a aliança operário-camponesa, garante a apropriação da ciência e da cultura pelas classes trabalhadoras, e constitui um factor impulsionador do desenvolvimento económico, social e cultural do país;
3) a educação é o instrumento principal da criação do Homem Novo, homem liberto de toda a carga ideológica e política da formação colonial e dos valores negativos da formação tradicional capaz de assimilar e utilizara ciência e a técnica ao serviço da Revolução;
4) a educação na República Popular de Moçambique baseai-se nas experiências nacionais, nos princípios universais do marxismo-leninismo, e no património científico, técnico e cultural da humanidade;
5) a educação é dirigida, planificada e controlada pelo Estado, que garante a sua universalidade e laicidade no quadro da realização dos objectivos fundamentais consagrados na Constituição.
1) a educação é direito e dever de todos os cidadãos;
2) o Estado no quadro da lei, permite a participação de outras entidades, incluindo comunitárias, cooperativas, empresariais e privadas no processo educativo;
3) o Estado organiza e promove o ensino, como parte integrante da acção educativa, nos termos da Constituição da República;
4) o ensino público é laico.
No âmbito dos objectivos gerais:
Lei 4/83 de 23 de Março
Lei 6/9, de 6 de Maio
a) - Formar cidadãos com uma sólida preparação política, ideológica, científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação patriótica e cívica;
b)- erradicar o analfabetismo de modo a proporcionar a todo o povo o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades.
c)- introduzir a escolaridade obrigatória e universal de acordo com o desenvolvimento do país, como meio de garantir a educação básica a todos os moçambicanos;
d)- assegurar a todos os moçambicanos o acesso à formação profissional;
e)- formar o professor como educador e profissional consciente com profunda preparação política e ideológica, científica e pedagógica, capaz de educar os jovens e adultos nos valores da sociedade socialista;
f)- formar cientistas e especialistas altamente qualificados que permitam o desenvolvimento da investigação científica;
g)- difundir, através do ensino, a utilização da língua portuguesa contribuindo para a consolidação da unidade nacional;
h)- desenvolver a sensibilidade estética e capacidade artística das crianças, jovens e adultos educando-os no amor pelas artes e no gosto pelo belo;
i)- fazer das instituições de ensino bases revolucionárias para a consolidação do poder popular, profundamente inseridas na comunidade".
a)- Erradicar o analfabetismo de modo a proporcionar a todo o cidadão o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades;
b)- garantir o Ensino Básico a todo o cidadão, de acordo com o desenvolvimento do país através da introdução progressiva da escolaridade obrigatória;
c)- assegurar a todos os moçambicanos o acesso à formação profissional;
d)- formar cidadãos com uma sólida preparação científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação moral cívica e patriótica;
e)- formar o professor como educador e profissional consciente com profunda preparação científica e pedagógica, capaz de educar a criança, o jovem e o adulto;
f)- formar cientistas e especialistas devidamente qualificados que permitam o desenvolvimento da produção e da investigação científica;
g)- desenvolver a sensibilidade estética e a capacidade artística das crianças, jovens e adultos, educando-os no amor pelas artes e no gosto pelo belo;
h)- educar a criança, o jovem e o adulto para o espírito da unidade nacional, paz, tolerância, democracia, solidariedade e respeito pelos direitos humanos, em particular os direitos da mulher e da criança;
i)- educar a criança, o jovem e o adulto na prevenção e no combate contra as doenças, particularmente o SIDA e outras de transmissão sexual;
j)- educar a criança o jovem para o respeito e preservação do ambiente e do ecossistema;
k)- educar o cidadão a ter amor, orgulho e respeito pela tradição e culturas moçambicanas;
l)- educar a criança, o jovem e o adulto no espírito da lealdade, obediência, respeito e disciplina;
m)- proporcionar o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade;
n)- desenvolver na criança, jovem e adulto habilidades e conhecimentos de carácter vocacional que lhe permitam uma integração plena na sua comunidade;
o)- assegurar o conhecimento e o respeito pela Constituição da República de Moçambique;
p)- educar a criança, o jovem e o adulto no espírito da cooperação internacional, de integração regional, continental e mundial.
q)- proporcionar uma formação básica nas áreas da comunicação, ciências, meio ambiente e cultural.
Portanto, numa leitura atenta dos dois documentos, pode-se constatar uma mudança radical do discurso da FRELIMO. Este discurso não pode ser entendido apenas como corolário das rápidas mudanças que ocorrem no país. É também o reconhecimento explícito dos seus ideólogos, da impraticabilidade do projecto de desenvolvimento do país, principalmente na área da educação, se tivermos em conta a desastrosa herança em quadros qualificados que o colonialismo deixou e principalmente à falta de uma política coerente de formação de professores.
O Partido no poder ao definir a educação como «a base para o povo tomar o poder» parecia ter consciência de que com mais educação, mais produção e com mais produção mais desenvolvimento. A História incita-nos, com bastante frequência, a desconfiarmos de uma lógica formal meramente verbal. É preciso sabermos descobrir o que está por detrás de todos esses termos. Contudo, não se entende bem a origem das dificuldades da FRELIMO no plano prático, na implementação do que escrevia e afirmava nos comícios. Com essa perda de visão entre o prometido e o devido, o SNE gerava o seu próprio fracasso.
O SNE teve à nascença intenções nobres que, se tivessem sido pensadas de acordo com as práticas educativas "positivas" de que a pedagogia tradicional é rica, teria capitalizado experiências que fariam do projecto um sucesso com repercussões históricas para o país, se tivermos em conta os apelos da UNESCO, na área de educação, sobretudo, acerca da necessidade de substituição gradual dos currículos herdados da época colonial, tendo em vista os interesses nacionais.
O Subsistema de Formação de Professores devia ter sido, efectivamente, a espinha dorsal do SNE. O sistema de educação, da forma como tinha sido concebido, só podia ter funcionado com uma formação de professores em massa sem descurar a qualidade, para garantir o seu sucesso. Houve um processo inverso: massificar o ingresso para depois formar professores sem uma adequada articulação entre os conteúdos, métodos e meios dos CFPPs, com os escolares e com o quotidiano do povo, com o contexto concreto dos educandos, tornou inviável o SNE. De acordo com o educador Paulo FREIRE (op. cit.),
"a rigor, é inviável o trabalho formador, docente, que se realize num contexto que se pense teórico, mas, ao mesmo tempo, faça questão de permanecer tão longe do, e indiferente ao contexto concreto, do mundo da ação e da sensibilidade dos educandos" (97).
Os objectivos do SNE, tais como: a) formar cidadãos com uma sólida preparação científica, técnica, cultural e física e uma elevada educação moral cívica e patriótica; b) formar o professor como educador e profissional consciente com profunda preparação científica e pedagógica, capaz de educar a criança, o jovem e o adulto e c) educar o cidadão a ter amor, orgulho e respeito pela tradição e culturas moçambicanas, pretendem, como qualquer sistema educativo coerente com a sociedade, entre outros, conferir certo estatuto social aos educandos. De acordo com COULON (1995).
"O estatuto social é, com toda a certeza, a resultante de interacções complexas e contínuas entre as capacidades individuais, a primeira socialização da criança, o capital cultural da família e a sua capacidade para transformá-lo em comportamentos escolares operacionais" (139).
O SNE, na prática, pretendia educandos sem indícios da primeira socialização, sem capital cultural herdado da família e do meio, porque isso entrava em choque com a nova sociedade e do Homem Novo que almejava construir. Então, como seria possível cumprir tais objectivos, separados da prática do quotidiano das pessoa?
De acordo com BUENDÍA (1999) havia e ainda hoje há, uma
"ligação implícita [que] se faz[ia] entre a «sociedade tradicional» e o obscurantismo e superstição. Esta visão negativa expressava-se, também, em relação ao analfabetismo, cimentando-se assim a ideia de que, na construção da sociedade e da educação socialistas, se estava partindo social e culturalmente do zero, de que a sociedade e a educação tradicionais nada tinham que pudesse ser incorporado, «superado» pela sociedade e educação novas. Defendia-se uma ruptura que, na prática, se tornava socialmente difícil e psicologicamente insuportável, dando lugar, a práticas clandestinas de «cumprir com as obrigações sociais» da sociedade tradicional, a comportamentos «puritanos» ou a um certo dualismo comportamental. [...] sob o ponto de vista de educação, ao se partir de uma compreensão do analfabetismo como «erva daninha» que deve ser «erradicada», de uma educação «bancária» que pressupõe ignorância absoluta no aluno, a aprendizagem (libertação), nesta concepção, seria a recepção passiva do conhecimento depositado na consciência vazia do aluno" (356).
Esta forma de concepção elimina no aluno a condição de sujeito. Não se tem em conta que a aquisição dos novos valores deve, de acordo com BUENDÍA (op. cit., ibidem) "resultar de uma interacção dialéctica e dialógica entre o passado e o presente do homem que agindo e transformando o mundo, transforma-se a si próprio".
Estas e outras incongruências marcaram e marcam a implementação do Sistema Nacional de Educação, constituindo um dos principais entraves a ultrapassar, para uma efectiva educação virada para o desenvolvimento da população moçambicana.
4.2.2 O desenvolvimento curricular do Ensino Básico de 1983-2000, compreendendo o Ensino Primário do 1º grau (EP1-1ª a 5ª Classes).
Para a Frelimo, a Luta Armada de Libertação Nacional representara, de acordo com "A Voz da Revolução" (1982:18), "a expressão mais alta da negação e ruptura com o colonialismo e as concepções reaccionárias tradicionais". A ruptura com o sistema colonial também impunha, uma nova concepção de educação, que contribuísse para a criação de uma nova sociedade: a sociedade socialista. Portanto a educação foi assumida como a principal via para o confronto entre o passado e o presente.
Em 1975, logo após a Independência nacional, o governo decidiu nacionalizar a educação. Foram abolidos ou ligeiramente alterados os currículos de modo a reflectirem melhor o momento que se vivia no país.
De 1975 a 1982, o que se assistiu foram emendas e correcções aos conteúdos dos currículos educacionais herdados do colonialismo. Não houve introdução de um currículo totalmente novo.
Durante o período 1979 - 1983 o Ministério da educação iniciou um longo processo de planificação, direcção e controle das actividades educativas. As reformas curriculares operadas sucessivamente em 1975, 1977 e 1983 não produziram os efeitos que deles se almeja, que era melhorar a qualidade do ensino primário e estancar a baixa dos índices de aproveitamento que continuaram a descer[100].
De acordo com o relatório de um estudo realizado pelo Ministério da Educação constatou-se que duma cohorte de 1000 crianças que em 1983 se matricularam na 1ª Classe, apenas 102 é que transitaram para a 5ª Classe em 1987 o que representa somente 10% dos ingressos.
No período de 1985 - 1992 a educação foi caracterizada por uma erosão profunda quer no que respeita às condições em que decorria o processo de ensino-aprendizagem (físicas dos equipamentos e estabelecimentos educativos) quer na qualidade do ensino neles ministrado.
A taxa de escolarização de 86% para o ano 2000, ao nível do Ensino Primário, com que o Governo se tinha comprometido em 1990 na Tailândia, na Declaração Mundial sobre Educação para Todos, é impossível de se atingir. Moçambique vive numa situação de recessão em todos os sectores da sociedade, nomeadamente, produtivos, sociais e, sobretudo educativos, que estão profundamente debilitados. Como consequência, a sociedade está grandemente afectada, principalmente a população economicamente vulnerável, que vive numa pobreza absoluta. Embora as estatísticas oficiais apregoem um crescimento económico ao nível macro, a verdade é que esse crescimento ainda não se reflecte na vida real das populações. Portanto, as baixas das taxas de aproveitamento no EP1, desde a introdução do SNE, reflectem a inoperacionalidade do currículo, do seu conteúdo, sua composição, seus objectivos e sua relevância. Acerca do currículo do Ensino Básico, GOLIAS (1993:75) afirma que "a relevância de grande parte do conteúdo do currículo (...) é questionável enquanto preparação para a vida. [A prioridade devia ser] a concentração de energias à volta do que ensinar e não do aluno".
As mexidas efectuadas nos currículos, desde 1975 até à data, principalmente no do Ensino Primário não foram consequentes porque não houve nem tempo nem condições de maturação das mudanças ocorridas no país num ritmo bastante veloz.
As mudanças curriculares e metodológicas realizadas em 1975, 1977 e 1982 não foram apoiadas, na sua implementação, com acções de avaliação e apoio metodológico adequados. Também não houve (como disse anteriormente), uma política coerente de formação inicial e continuada dos professores que considero a espinha dorsal que faltou ao SNE.
Não tendo havido um sistema coerente de avaliação do impacto que as mudanças curriculares provocaram na sociedade, não houve o feed-back necessário que poderia ter mudado o rumo dos acontecimentos.
O Despacho Ministerial de 14 de Dezembro de 1989 revogou os Planos de Estudos de educação Geral em vigor até essa data e aprovou o seguinte Plano de Estudos para o Ensino Primário do 1º grau.
Plano de Estudos do Ensino Primário do 1º grau e Carga Horária
DISCIPLINAS
CLASSES E CARGA HORÁRIA SEMANAL
1ª
2ª
3ª
4ª
5ª
Português
12
11
10
10
9
Matemática
6
6
6
6
6
Ciências Naturais
2
2
3
Geografia
2
História
2
2
Educação Estética e Laboral
2
3
3
3
3
Educação Física
2
2
2
2
2
Total de horas
22
22
23
25
25
A móbil fundamental do fracasso deste plano de estudos foi e continua a ser, a operacionalização dos conteúdos programáticos com as realidades culturais do ethos. Assim, pode-se afirmar que o ensino em Moçambique, sem o devido reconhecimento dessas realidades sócio-culturais e sua operacionalização com o currículo escolar,
· não pode garantir o desenvolvimento dos reais interesses e aptidões, capacidade de raciocínio, espírito critico e sensibilidade estética a todas as crianças moçambicanas;
· não assegura o equilíbrio entre o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, a cultura escolar e a cultura autenticamente moçambicana;
· não fomenta no aluno a consciência nacional;
· não desenvolve o apreço pelos valores característicos da identidade, história e cultura moçambicanas;
· não proporciona aos alunos aquisição de conhecimentos sólidos que permitam o prosseguimento dos estudos ou a capacitação para fácil inserção em esquemas de formação profissional;
· não proporciona a aquisição de noções de educação moral e cívica.
4.2.3 Os conteúdos, métodos e meios no Ensino Primário do 1º grau do SNE.
Neste item procuro fazer uma descrição analítica à essência dos conteúdos métodos e meios do Ensino Primário da 1ª a 5ª Classes do SNE.
De acordo com o plano de estudos representados no item 4.2.2, os principais conteúdos devem assegurar no aluno o seguinte:
Português comunicar e exprimir-se em situações ligadas às práticas sociais do quotidiano; falar, ler, pensar em língua portuguesa.
Matemática desenvolver a capacidade de cálculo na base decimal e a utilização dos instrumentos de cálculo exigidos pela actividade quotidiana.
Ciências Naturais, Geografia e História estas três disciplinas devem especificamente desenvolver no aluno a capacidade de observar, analisar e compreender os principais fenómenos da natureza e conhecer os dados e factos principais da história e geografia de Moçambique, de forma a superar as concepções «obscurantistas difundidas na comunidade» e a adquirir as bases científicas necessárias à formação da sua consciência e ao cultivo da amizade e da paz com todos os povos do mundo.
Educação Estética e Laboral os conteúdos desta disciplina visam desenvolver as aptidões de observação e de enriquecimento dos meios e formas de expressão de formas a criar e ampliar o interesse pelo meio ambiente; estimular o desenvolvimento das capacidades de percepção da ordem e da beleza na natureza e na arte; assumir os valores culturais da comunidade e do povo.
Educação Física desenvolver as capacidades motoras básicas para um harmonioso desenvolvimento psíquico e físico que assegure a formação de hábitos de higiene e postura, e a aquisição da iniciativa, dinamismo, rapidez de acção, a coordenação de movimentos, o ritmo e a expressão corporal.
Outrossim, estas disciplinas devem conduzir à aquisição de hábitos de trabalho colectivo, de acordo com o desenvolvimento de valores morais e sociais da personalidade, particularmente, a disciplina, o colectivismo, organização e força de vontade.
Os métodos básicos de ensino que as condições no terreno permitem na realização do PEA são os seguintes: método expositivo que é condicionado pelo número excessivo de alunos por professor, o que não permite ao professor outra saída, senão o papel de principal orador, do princípio ao fiam da aula. O professor fala ou escreve e os alunos limitam-se a escutar e a copiar, caso tenham cadernos/ardósias e lápis/ou ponteiros.
O método expositivo é também a sugestão cómoda da deficiente formação que os professores recebem nos CFPPs. Apesar de os regulamentos exigirem do professor a aplicação de métodos activos na transmissão dos conhecimentos, é quase impossível a aplicação de tais métodos, numa sala de aula que nem mobiliário tem, com os alunos profusamente dispostos na soalheira da sala de terra batida ou sentados à volta de um cajueiro que lhes serve de escola. Nestas condições, o professor raramente corrige os TPCs (trabalhos para casa) dos alunos. As dificuldades dos alunos não são corrigidas individualmente. O professor apenas corrige “horizontalizando” (passe o neologismo) as capacidades dos alunos.
Nas condições em que os conteúdos são ministrados, não se pode falar de construção do conhecimento no verdadeiro sentido da expressão. O método de elaboração conjunta, que tanto era aconselhado aos professores durante os seminários de reciclagem das ZIPs (zonas de influência pedagógica), raramente são aplicados. Face a todas estas dificuldades, apenas é possível aplicar dois métodos de ensino: o expositivo e o de trabalho independente, este último que é aplicado nos momentos de avaliação, nos dias de provas, o que resulta numa autêntica educação bancária, já que o professor cobra, nos testes, o que deposita nas cabeças dos alunos.
Dado que a matéria dos programas de ensino é extensa, não há lugar nem está prevista a concretização dos conteúdos com os saberes locais, ou seja, com conhecimentos concretos do aluno. De acordo com GOLIAS (op. cit. p.74),
"... ainda temos a tradicional concepção enciclopedista de currículos compartimentado em disciplinas, sobrecarregadas de conteúdos às vezes pouco relevantes.
Tais disciplinas e currículos são estritamente seguidos e disseminados em todo o país sem nenhuma flexibilidade e iniciativa por parte dos professores. Estes currículos não são endereçados para responder a necessidades específicas de indivíduos ou da comunidade" (74).
Esta falta de contextualização do saber, alia-se ao problema da escassez de meios de ensino. Os meios de ensino não existem na maioria das escolas, sobretudo nas do campo. Nos casos em que existe algum material, ele é em número reduzido e é bastante convencional: livros, cadernos, lápis e quadro preto. Se a produção de materiais de ensino faz parte do currículo de formação de professores, estes nunca os produzem. A pobreza dos meios de ensino também concorre para a produção de mentalidades pobres. Imagine-se um aluno que desde os 7/9 anos teve aulas sentado no chão, que aprendeu (?) a garatujar encurvado com o caderno no chão ou apoiado no joelho. Este aluno, depois de alguns anos, jamais se sentará correctamente numa carteira, para além de ter adquirido problemas na coluna vertebral. No nosso país há ainda escolas públicas que, até ao nível médio, têm problemas de mobiliário. Recorde-se que no campo, são os alunos formados nestas condições, que depois são recrutados para frequentarem cursos de professores! Assim, perpetua-se a pobreza no seio do povo, porque a pobreza no seio dos professores atingiu foros de nível psicológico e está fatalmente enraizada.
Os alunos que frequentam tais escolas, se lhes aparece uma oportunidade de conhecer as “facilidades” da via da cidade, jamais voltarão para desenvolver suas aldeias ou distritos porque não «desenvolveram o apreço pelos valores característicos da identidade, história e cultura moçambicanas».
4.3 Os conteúdos, métodos e meios segundo o Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB).
A ênfase na análise dos conteúdos do PCEB que dedico a esta parte do texto está relacionada com a importância da selecção dos mesmos, para o alcance dos objectivos educativos, não só no SNE em Moçambique, como em qualquer sistema de ensino. O êxito do trabalho pedagógico depende da selecção e organização dos conteúdos. Não pretendo diminuir nem desprezar o papel de outros factores (eixos) como os métodos e meios, no processo de ensino aprendizagem. A selecção dos conteúdos tem de ter em vista a realização do Homem ideal que o ethos almeja, em consonância com os objectivos escolhidos para tal fim.
Olhando para os conteúdos de PCEB torna-se evidente que um dos grandes problemas do currículo do ensino oficial em Moçambique reside no seu carácter enciclopédico e na dificuldade de transpor a fronteira entre os objectivos e a sua realização prática, isto é, o tipo de homem que pretende formar e a realidade vivencial prática. Embora J. M. Stephens, referenciado por LANDSHEERE (s/d:206), afirme que as escolas não devem preocupar-se com aqueles elementos culturais que têm o mais alto valor de sobrevivência para o indivíduo, pois estes foram o currículo do lar ou da família, e, como tal, elas devem preocupar-se com as actividades sobre quais a sociedade tem um interesse «jocoso», a verdade é que uma escola desse género apenas forma alienados culturais. Deforma culturalmente mais do que forma.
O Plano Curricular do Ensino Básico (1999b), no que diz respeito aos conteúdos, está estruturado de forma a garantir o desenvolvimento integrado de habilidades, conhecimentos e valores. A abordagem do desenvolvimento integrado que agora se adopta provou, na altura, acesas discussões nas equipas de elaboração dos programas de ensino do SNE. De acordo com o PCEB (op. cit),
"Entende-se por Ensino Básico Integrado (EBI), o Ensino Primário Completo de sete classes, articulado do ponto de vista de estrutura, objectivos, conteúdos, material didáctico e da própria prática pedagógica. O Ensino Básico Integrado caracteriza-se por desenvolver, no aluno, habilidades, conhecimentos e valores de forma articulada e integrada de todas as áreas de aprendizagem, que compõem o currículo, conjugados com as actividades extra-curriculares e apoiado por um sistema avaliação, que integra as componentes sumativa e formativa, sem perder de vista a influência do currículo oculto".
Parafraseando BUENDÍA (1999:369), alguns professores integrados nas equipas de trabalho no desenho dos programas de ensino do SNE, principalmente os professores "aliados" ao pensamento pedagógico dos técnicos cooperantes da RDA, opunham-se ao método integrado, que acusavam de ser um método inventado pelos países capitalistas para ser aplicado nas escolas dos filhos dos operários. Segundo eles, esta abordagem era conveniente aos interesses da burguesia para limitar a aprendizagem dos filhos dos trabalhadores.
Por isso, como forma de se realizar o objectivo inovador de desenvolvimento integrado de habilidades, conhecimentos e valores, segundo o PCEB, o Ensino Básico foi organizado, em áreas curriculares e em graus, subdivididos em três ciclos de aprendizagem. O 1º grau está dividido em 2 ciclos, sendo o primeiro correspondente à 1ª e à 2ª Classes e o segundo, à 3ª e 4ª Classes e 5ª Classes. O 2º grau compreende a 6ª e 7ª classes correspondentes ao terceiro ciclo (PCEB, 1999b:12).
Segundo o documento de que tenho vindo a fazer referência, o ingresso para o Ensino Básico é feito aos 6 anos de idade e o aluno deverá concluí-lo, aos 12 anos, em princípio.
As áreas e disciplinas curriculares compreendem:
- Comunicação e Ciências Sociais;
- Matemática e Ciências Naturais; e
- Actividades Práticas e Tecnológicas.
De acordo com o PCEB (op. cit., p. 18), a área da Comunicação e Ciências Sociais é constituída pelos conteúdos das seguintes disciplinas:
Língua Portuguesa (de 1ª a 7ª Classes) – foi adoptada desde a Independência Nacional como a língua oficial, de unidade nacional e de ensino, assim como de comunicação nacional e internacional. As razões desta adopção estão ligadas ao facto de ser a língua Portuguesa a única falada em “quase” toda a extensão do território nacional. Digo em quase toda a extensão, porque na verdade, esta língua era falada por apenas 25% da população, na altura da Independência Nacional. Isto quer dizer que ela era circunscrita apenas às zonas urbanizadas, facto que o Governo não observou. Contudo reconheço que era a via mais prática para o problema da língua, uma vez que o colonialismo nunca incentivou um estudo sério das línguas autóctones. Portanto, aceita-se que seria mais difícil partir de uma das línguas moçambicanas como um dos elementos para a constituição de um Estado unitário. A língua portuguesa é também considerada língua Nacional porque é falada em toda a extensão do país e internacional e ao nível da CPLP.
Com o ensino do português pretende-se dotar o aluno com capacidades e habilidades para comunicar, com correcção, oralmente e por escrito.
Línguas Moçambicanas (de 6ª a 7ª Classes) - é uma das grandes inovações introduzidas no PCEB, porque reconhece-se que a maioria das crianças ingressa no ensino oficial já tem desenvolvida a competência comunicativa básica nas suas línguas maternas/locais e a escola oficial deverá partir dela para a iniciação à leitura e escrita assegurando a valorização dos conhecimentos e da cultura que estas línguas veiculam.
Língua Inglesa (de 6ª a 7ª Classes) - procura-se com esta língua proporcionar um vocabulário essencial para a comunicação para facilitar a integração do aluno na região austral onde todos os países circundantes falam essa língua além de ser a língua de acesso ao conhecimento e á tecnologia.
Educação Musical (de 1ª a 7ª Classes) - procura desenvolver no aluno o interesse e o talento musical e do seu desenvolvimento nos domínios afectivo, estético, cultural, cognitivo e psicomotor.
Ciências Sociais (da 4ª a 7ª Classes)- englobando os conteúdos de Geografia, História e Educação Moral e Cívica que visam assegurar competências básicas para compreender o processo histórico, situar os acontecimentos no tempo e no espaço. Conhecer fenómenos físico-geográficos e económicos em geral. Capacitar o aluno a conhecer os seus deveres e direitos assim como a respeitar os direitos e crenças dos outros, assumindo atitudes de tolerância e de solidariedade.
Educação Moral e Cívica - por uma questão de disciplina com a delimitação do campo deste estudo (EP1, de 1ª a 5ª classes) não me debruçarei em detalhe sobre esta disciplina. Contudo, acho importante dizer que é uma disciplina que é destinada ao 2º grau (3º ciclo). É uma disciplina que se anuncia independente, com uma carga horária própria sem, contudo, perder o carácter transversal que norteia o 1º grau. Orienta-se para alunos já adolescentes, com um estágio de formação de personalidade bastante crítico, requerendo maior acompanhamento no respeitante à observância de valores morais, cívicos, patrióticos e religiosos.
A área de Matemática e Ciências Naturais é constituída por conteúdos de Matemática e de Ciências Naturais.
Na disciplina de Matemática (da 1ª a 7ª Classes), anuncia-se que se pretende desenvolver habilidades e competências para o aluno ser capaz de contar, calcular, usando as quatro operações básicas na resolução de problemas e, paralelamente habilitá-lo a observar, estimar distâncias, medir comprimentos, calcular superfícies e volumes.
A disciplina de Ciências Naturais (da 3ª a 7ª Classes) é constituída por conteúdos elementares de Biologia, Química e Física. Procura desenvolver habilidades e competências para a interpretação científica dos seres e fenómenos naturais e, paralelamente, capacitá-lo para o uso racional dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente.
A área de Actividades Práticas e Tecnológicas (da 1ª a 7ª Classes) é constituída por Ofícios, Educação Visual e Tecnológica e Educação Física.
Na disciplina de Ofícios enunciam-se intenções para capacitar os alunos para actividades como escultura, artesanato, culinária, lavoura, costura, jardinagem, agro-pecuária, pesca, marcenaria entre outras. Com estas capacidades, tem-se em vista a necessidade de dotar o aluno de habilidades úteis à sua vida aprendendo actividades práticas e tecnológica quer como actividades curriculares quer como extracurriculares, abrindo-se a mão à participação da comunidade. Procura-se tornar efectiva a ligação escola/comunidade?
A Educação Visual e Tecnológica procura dotar o aluno de capacidades como: observar, interpretar, traçar, desenhar, pintar, picotar, recortar, colar, modelar, tecer, descobrir, concretizar ideias, organizar um espaço, estruturar um elemento, fazer construções geométricas.
Na disciplina de Educação Física (da 1ª a 7ª Classes), almeja-se desenvolver habilidades e competências psicomotoras de base e promover actividades físico-desportivas para a manutenção da saúde e integração social.
De acordo com o PCEB (1999b),
"o sucesso de qualquer plano curricular está, indiscutivelmente, associado à concepção de estratégias adequadas para a sua implementação. Essas estratégias, por sua vez, prendem-se com inúmeros factores, tais como os psico-pedagógicos, linguísticos, sócio-económicos e políticos..." (25)
O que me parece pertinente observar neste currículo e na acepção da frase acima citada, é o seu carácter enciclopédico e irrealizável, sofrendo à nascença de todas as patologias do currículo vigente até à data:
· Mantém o seu carácter centralizado e tecnicista, porquanto foi pensado de cima para baixo à semelhança do que ocorreu com a concepção dos anteriores currículos, em que o professor é reduzido apenas ao papel de elemento executor neutral, revelando entre outras coisas, um processo pouco democrático. Até hoje, nas vésperas da abertura dos anos lectivos, o MINED continua a recrutar professores sem uma reconhecida qualificação escolar, com apenas a 10ª Classe e 15 dias de formação? Isto deu origem a uma piada entre os professores em exercício que, apelidam os colegas recrutados nesses moldes de KHUVAVE- uma espécie de peixe esfumado. É uma metáfora referente aos 15 dias de "formação" dessa incompetência em massa, que mais não vai senão agravar o problema da qualidade do ensino.
· Embora se reconheça que a chave do sucesso depende do professor, de cujo desempenho depende, em larga medida, da sua formação (idem, p.26), o texto não indica onde, como e quando será formado esse professor. Tudo indica que, tal como preconizava a Lei 6/92, «dar uma formação ao professor que permita que ele se torne num educador e profissional consciente, com profunda preparação científica e pedagógica...», que nunca foi posto em prática, este currículo não passará de intenções, com profundas dificuldades de concretização. O problema reside no como sair da teoria a prática.
· Não se vislumbra no texto, um plano nacional de revisão dos currículos nos CFPPs com vista ao recrutamento e formação massiva de professores (inicial e em exercício) para o sucesso do projecto. Estas mudanças curriculares nem sempre são acompanhadas da preocupação da disponibilização de recursos financeiros para, a conservação, manutenção e funcionamento das instalações, instalação e reposição de equipamento e materiais de ensino adequados. Isto conduzirá, segundo a minha experiência, a acentuação da degradação que caracteriza as escolas moçambicanas, principalmente as do campo e das zonas peri-urbanas, senão em todas, porque não há nenhuma escola pública em Moçambique que não esteja em acelerada decadência.
· Não é clara a operacionalização do PCEB com as culturas locais visto que não consta em nenhuma parte do texto as possibilidades resultantes de pesquisas efectuadas ou em decorrência, com vista à selecção de conteúdos locais relevantes e em relação à mudanças metodológicas de ensino, uma vez que o número de escolas continua exíguo, para uma população escolar em crescimento.
Portanto, como se pode depreender, o PCEB apenas anuncia uma série de objectivos e uma listagem conteúdos através dos quais os objectivos devem ser alcançados. Descura os eixos métodos e meios como parte integrante do PEA. Não tem em conta que os métodos como conjunto de condições, técnicas e recursos didácticos são elementos importantíssimos para maximizar a construção do conhecimento. As condições ambientais, vínculos inter-educandos e entre o educador e o educando, graus de participação, a mobilização para aprender, os temas significativos (evocativos), o material didáctico vinculativo com os instrumentos dos saberes locais, são secundarizadas, uma vez que apenas se afirma a necessidade de se ter em conta o currículo local sem que, para tal os professores tenham sido iniciados, preparados para o tal desafio.
O PCEB ainda não estabelece a ponte necessária para que elementos como objectos, os símbolos, as palavras, os valores, os factos específicos, os acontecimentos, tenham ligação com as pessoas, com as datas, com os locais e com as fontes de onde se originam.
Portanto, isto tudo foi e tem sido uma negação da diversidade cultural de que o país é riquíssimo e consequentemente, a escola oficial encontra-se "esvaziada" da beleza do mosaico cultural moçambicano e, por isso, ela está divorciada do ethos.
CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES
Tudo o que analisamos até aqui leva-nos a postular a necessidade de compreender a relação dialéctica existente entre a educação autóctone tradicional e a educação oficial moderna que é o que devemos fazer na conclusão deste trabalho, onde verificaremos os pontos de ruptura e de convergência da educação tradicional autóctone e a educação oficial moderna visando uma integração de ambas.
Os Pontos de ruptura
Os pontos de ruptura são os nós de estrangulamento entre a educação tradicional e a educação oficial, que marcam uma espécie de fronteira intransponível entre as formas de construção do saber local (interpretadas como "tradicional", “retrógrada”) e as formas da educação escolar (consideradas como "modernidade" progressista).
Estes pontos são identificáveis quando fazemos uma análise comparativa dos objectivos que norteavam a educação colonial e a educação preconizada pelo SNE e ambos, em relação à educação autóctone tradicional.
O sistema de educação colonial, no seu duplo critério de classificar e dividir a população moçambicana, instituiu dois tipos de ensino primário (conforme me referi na caracterização do sistema colonial de ensino): o Ensino Rudimentar, para a população indígena que, em 1956, passou a ser chamado de Ensino de Adaptação, com o objectivo de «conduzir gradualmente o indígena duma vida selvagem a uma vida civilizada» e o Ensino Oficial, para a população de origem europeia, com o objectivo de «habilitar a todos os portugueses não indígenas a ler, escrever e contar, a compreender os factos mais simples da vida ambiente e a exercer as virtudes morais e cívicas, dentro dum vivo amor a Portugal».
Estes eram os principais pontos em que divergia, em si mesmo, o sistema colonial. A diferença dos objectivos transparecia explicitamente o racismo.
O SNE tem como objectivo central «a formação do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista». É neste objectivo e valores que o SNE defende, onde residem os principais pontos de ruptura entre o SNE e a educação autóctone tradicional, e, provavelmente, onde reside a marca do divórcio entre o projecto de educação da FRELIMO e a cultura popular.
Não havendo a incorporação do novo no campo do vivenciado da vida dos alunos os «conhecimentos científicos» da escola oficial são uma espécie de tijolos sobreposto sem o cimento necessário para ligá-los. Ao mesmo tempo que o projecto da educação defendia a valorização da cultura popular excluía-a porque essa cultura pertencia a uma «sociedade tradicional» que tinha uma ligação implícita com o «obscurantismo» e «superstição», que devia ser eliminada, para se construir o Homem e uma sociedade Nova, sem passado.
Os possíveis pontos de convergência.
Face às análises que actualmente se fazem sobre o currículo oficial na sua articulação com a cultura e saberes locais, em que se destacam, entre outros intelectuais moçambicanos Manuel Golias (1993), Carlos Machili (1998), Miguel Buendía BUENDÍA (1999), é caso para nos interrogarmos: que pontos de convergência se podem estabelecer entre o ethos local e o Sistema Nacional de Educação? O principal ponto de convergência é que a educação como um processo de socialização, é uma acção vital às culturas, sejam tradicionais, sejam modernas: permite-as reproduzirem-se e renovarem-se.
O povo tem na educação autóctone tradicional a garantia da sobrevivência e desenvolvimento da sua cultura. Quando a educação oficial se identificar com essa luta popular de resgate e de identidade cultural, então, teremos uma educação popular que realiza todas as potencialidades inscritas na condição dialéctica da educação, em que as contradições são transformadas em elementos de desenvolvimento. Um desenvolvimento que parta duma análise do que fomos o que somos e para onde queremos ir. A escola deve inspirar-se no quotidiano existencial do aluno, pois, parafraseando GADOTTI (1983), o saber aí gerado não é um saber burocrático, baptizado pelos exames, mas avaliado no dia-a-dia pelas suas próprias condições de vida. Neste caso, educar-se-á para que o povo assuma a consciência dessas suas condições, aliando o trabalho, a sobrevivência e a resistência.
Tendo em conta que a organização escolar e curricular é uma construção histórica que transmite ou cria conhecimentos que devem ser sistematicamente oferecidos e a educação autóctone tradicional é um processo importante e permanente de transmissão de saberes, mas não uma agência de transmissão de saberes sistemáticos, temporalizados, "escolarizados", o conhecimento oficial deveria nascer do encontro entre elas. O conhecimento oficial deveria nascer do encontro entre a cultura do ethos e os saberes escolarizados, usando como ponte a educação tradicional. Deveria nascer da reflexão colectiva, da disputa e integração e não do isolamento.
A Educação escolar em Moçambique, ao não articular os valores que diz defender, os do ethos fundamental de suas culturas tradicionais autóctones, provoca o seu próprio esvaziamento e a sua própria exclusão. Ao não ter em conta, na sua prática pedagógica, o currículo oculto, que funciona na socialização inicial e na resolução dos problemas do quotidiano das crianças, marginaliza-as, fomentando a evasão escolar. O SNE torna-se irrelevante aos olhos da população uma vez que os seus conteúdos, métodos e meios escolares mostram-se irrelevantes para a solução dos problemas da sua vida e, consequentemente, torna-se injustificável à presença da maioria das crianças na escola oficial.
A escola oficial não tem podido formar nem desenvolver a personalidade do aluno moçambicano de forma integral, multilateral e harmoniosa no contexto sócio-cultural moçambicano, uma vez que a centralização da selecção dos conteúdos curriculares inibe a participação popular na vida da escola.
A recuperação e valorização dos elementos educativos presentes na educação autóctone tradicional, incluindo os rituais de iniciação, são indispensáveis para uma nova qualidade da educação oficial do Ensino Básico, porque ela considera o passado como algo abominável de que as crianças não têm que se orgulhar, ao defender a construção de uma sociedade sem referências do seu passado.
O currículo actual de Educação Básica, não tendo em conta a educação e instrução autóctone tradicional (conteúdos, métodos e meios), não criando espaço para incorporar aspectos utilizados para transmitir as experiências e conhecimentos às novas gerações, não tendo ligação prática nem continuidade com a socialização inicial das crianças na família e na comunidade, o que não permite a sua contextualização sócio-cultural, gera o seu próprio fracasso.
Para que o currículo do Ensino Básico em Moçambique se torne numa base de aquisição de uma formação harmoniosa e multilateral, um ensino integrado, incorporando a contribuição cultural da humanidade (ciência/tecnologia/cultura, etc.), tendo em vista capacitar e habilitar às crianças para assumirem os valores culturais da comunidade e do povo, a Educação deverá ter em conta:
· os valores culturais e saberes locais em termos de conteúdos, métodos e meios;
· que não basta traçar uma série de objectivos educacionais. É necessário que as teorias se aliem à prática, isto é, operacionalizar no concreto as intenções, submetendo-as à avaliação do seu impacto na realização da aprendizagem e na vida real das populações;
· uma formação de professores (permanente e em exercício) de qualidade, corrigindo as discrepâncias entre os currículos nos CFPPs e os conteúdos curriculares de ensino no EP1;
· uma facilitação aos professores primários, principalmente das zonas rurais, para aumentarem o seu nível e qualidade de escolarização e formação, mediante a criação de um ensino à distância eficiente;
· a necessária democratização do ensino, abrindo um espaço para a participação efectiva dos professores na concepção dos conteúdos curriculares;
· a necessária democratização do ensino, criando espaço para a inserção da escola na comunidade com participação efectiva das populações, de modo que os conteúdos, métodos e meios da educação autóctone tradicional possam circular na escola, como elementos do currículo;
· o incentivo à pesquisa sobre os problemas da escola e da educação em geral, no âmbito da avaliação da eficiência interna do sistema, do currículo, dos conteúdos, métodos e meios de ensino.
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APÊNDICE
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Para as entrevistas da presente pesquisa foi seleccionada a seguinte população alvo:
Pais.
mestres dos ritos de iniciação.
Professores.
De acordo com o grupo alvo, as questões colocadas foram as que se seguem:
GRUPO a) pais
Dados do entrevistado:
Nome:
Sexo:
Idade:
Nível de escolarização:
Data e local da entrevista:
a) O que é que se ensina às crianças na educação autóctone tradicional?
b) Quais são os conteúdos?
c) Quando é que se ensina o quê?
d) Como é que você educa seus filhos na família?
e) Por quê se ensina isso às crianças?
f) Que meios, instrumentos se usam para a transmissão de experiências e conhecimentos aos jovens na Educação autóctone Tradicional?
g) Como é que você foi ensinado o saber, saber fazer, saber estar (os hábitos)?
h) O que há de comum entre o que a educação autóctone tradicional ensina e o que se ensina na escola?
i) Que experiências, conhecimentos, hábitos, habilidades da educação autóctone tradicional seriam relevantes para enriquecer o que se ensina na escola?
j) Que experiências da maneira de transmitir o saber, habilidades, hábitos da educação autóctone tradicional seriam aplicáveis na escola?
l) Qual é a importância do que se transmite na educação autóctone tradicional para a vida dos jovens?
Grupo b) mestre(a)s dos ritos de iniciação
Dados do entrevistado:
Nome oficial:
Nome por que é mais conhecido:
Sexo:
Idade:
Religião:
Experiência profissional:
Seu papel específico nos ritos de iniciação:
Data e local da entrevista?
a) O que são os ritos de iniciação?
b) Por que se realizam os ritos de iniciação? O que acontece se os jovens não passarem pelos ritos de iniciação
c) O que é que ensina (conteúdos) aos rapazes e às raparigas durante os ritos de iniciação?
d) Como (métodos) é que ensina aos rapazes e às raparigas as experiências e os conhecimentos?
e) Quais são os instrumentos (meios - recursos didácticos) que usa para ensinar as experiências e os conhecimentos aos rapazes e às rapariga?
f) Por quê são importantes os ritos de iniciação para o(a)s jovens?
GRUPO c) professores
Dados do entrevistado:
Nome:
Sexo:
Idade:
Nível de escolarização:
Curso de formação:
Disciplina que lecciona:
Data e local da entrevista:
a) O que é que a escola devia ensinar para melhorar a vida das comunidades?
b) O que se pode aproveitar da educação autóctone tradicional para enriquecer o que se ensina na escola?
· Conteúdos
· Métodos de ensino
· Meios de ensino
ANEXOS
[1] Zonal é o mesmo que dizer local.
[2] Moçambique é um país multiétnico e como consequência disso é um país multilíngue. As línguas étnicas são chamadas "línguas nacionais" e ,em virtude de ter sido uma colónia portuguesa, a língua portuguesa é considerada "língua oficial" e de "unidade nacional".
[3] Vide o texto completo citado no item 1.5.
[4] Lourenço do Rosário é o Reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), uma instituição privada, das mais recentes instituições do ensino superior em Moçambique. O ISPU surge à luz da revisão da lei 4/83, de 23 de Março, pela lei, 6/92, de 6 de Maio. Tratou-se de uma alteração total da estrutura educacional até então vigente que dava ao Estado o monopólio da acção educativa oficial em Moçambique. O ISPU é a primeira instituição de ensino que surge no país, fora da alçada do Estado, com autonomia curricular e financeira. O extracto aqui citado faz parte do texto de sua comunicação ao 1° Encontro de Estudantes Lusófonos do Ensino Superior, Alcobaça, de 17-21 de Abril 2001.
[5] Texto inédito, sobre ETNOGRAFIA, cedido por cortesia do autor, aos 23 Maio de 2000, aquando da sua visita de trabalho à Universidade Pedagógica em Maputo - Moçambique.
[6] Tradicional no sentido de relativo à tradição, que se funda na tradição, que se incorporou nos hábitos, nos usos, nos costumes tradicionais de uma etnia
[7] O Ensino Básico está subdividido em duas partes, compreendendo o Ensino Primário do Primeiro Nível, EP1 (1ª à 5ª Classes) e o Primário do Segundo Nível, EP2 (6ª à 7ª Classes). Ver organograma do SNE nos Anexos.
[8] Escolho este período porque 1983 é o ano da implementação do Sistema Nacional de Educação (SNE), um sistema de educação totalmente novo em Moçambique independente. Desde a Independência Nacional, proclamada em 25/06/1975, funcionava um sistema, reformulado a partir do sistema educacional herdado do tempo colonial. O ano 2000 é ponto de referência em atenção às mudanças que ocorrem ao nível da educação, às quais a pesquisa estará atenta, até à defesa da tese a ela referente.
[9]Tradução minha.
[10] Tradução minha.
[11] Tradução minha.
[12] Extracto do resumo da tese de CENTEÑO, Isolina, uma nicaraguense que faz uma análise crítica ao currículo da educação geral básica nos anos 1985-1989 na perspectiva da diversidade cultural no seu país. Trata-se de uma situação muito semelhante à realidade educacional moçambicana.
[13] Em referência a uma obra de Samora MACHEL, intitulada Fazer da Escola uma Base para o Povo tomar o Poder. Uma importante obra para a educação em Moçambique, cujos ensinamentos permanecem válidos para uma educação progressista, mas cujo conteúdo foi sendo esvaziado nos últimos tempos.
[14] As pichações de paredes em prédios públicos é um dos graves problemas "culturais" hoje nos países escandinavos, e também em Londres, Paris, Nova York, entre tantas outras cidades do mundo inteiro.
[15] Nome de uma planta trepadeira cucurbitácea. Os frutos, quando verdes, servem para caril e, quando secos servem para escova do cabelo ou para esponja de lavar louça, etc.
[16] A videira é cultivada (em quantidades insignificantes) no distrito de Lichinga, na Província setentrional do Niassa e no distrito de Chimoio, Província central de Manica, também em Angónia, Tete e provavelmente em Namaacha, onde os climas são propícios à cultura da planta.
[17] Resistência Nacional Moçambicana. Movimento criado e armado pelo regime do "apartheid" de B.W Botha, para combater o governo da FRELIMO em Moçambique, que apoiava a luta contra o regime de "apartheid". A criação RENAMO visava travar a luta de libertação sul africana liderada pelo ANC de Nelson Mandela. A RENAMO é actualmente um dos partidos de oposição em Moçambique, dentro das transformações políticas que ocorrem no país, à luz do Acordo Geral de Paz, firmado em Roma entre o governo de Moçambique e aquele antigo movimento armado, em Agosto de 1992.
[18] Constitui puberdade “legal”, porque os rapazes, depois dos ritos de iniciação passam a gozar dos mesmos direitos que qualquer membro adulto da sociedade. É "legal" segundo o direito consuedutinário.
[19] A indicação da faixa etária dos 5-10 anos parte do pressuposto de que, com esta idade, o indivíduo já pode tomar banho sem precisar de auxílio. É que depois dos ritos de iniciação, o rapaz não pode ser visto nu pela mãe, nem por outra mulher (excepto sua esposa, se for casado). Na tradição, diz-se que o rapaz saltou do colo da mãe para o alpendre do tio, para dizer que atingiu a maioridade e, como tal, já não pode andar no regaço da mãe. As relações mãe e filho passam a ser de muito respeito. Nas etnias matrilineares do norte de Moçambique, o tio materno é o principal tutor do sobrinho, filho da irmã uterina pela certeza da consanguinidade.
[20] Zonas Libertadas é a designação por que são conhecidas as áreas territoriais conquistadas às tropas e à administração coloniais, por acção da luta armada de libertação conduzida pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), onde tiveram lugar experiências inéditas de administração popular pós-coloniais, especialmente na área da educação.
[21] A FRELIMO é o movimento que conduziu a luta armada de libertação, contra o exército colonial Português, até a independência em 25 de Junho de 1975
[22] O “itálico” é meu, para evidenciar a importância dos conteúdos e os objectivos que lhes são subjacentes, seja que projecto social de educação se trate.
[23] Elevadas taxas de repetência e desistência escolares.
[24] Cf Tradução de Joaquim Ferreira Gomes (1957:28) do texto latino, das Opera Didactica Omnia (Cap.VII,4). tomo I.
[25] WORLD BANK. Priorities and Strategies for Education: A World Bank sector review. Washington, DC. 1995.
[26] Trata-se de um grupo de professores do Programa de Pós-Graduação em Educação/Currículo da PUC- São Paulo.
[27] Segundo o Ministro do Trabalho Mário Sevene, em entrevista ao programa radiofónico da Rádio Moçambique "Cartas na Mesa", em 18/09/2001. Mas estes são dados oficiais. A verdade é bem mais cruel, porque os números oficiais estão aquém da realidade. Fontes independentes estimam em cerca de 60%.
[28] Plural de MUKUNYA, isto é, branco.
[29] Tradução literal duma máxima popular Macua: MUKHALANI, MUTTTHU OOVOLA, NAMALYA, que literalmente quer dizer, aquele que tem, que come, pessoa folgada, isto é, pessoa privilegiada socialmente.
[30] Texto inédito, referenciado na introdução da presente tese.
[31] Com a independência Nacional Moçambique enfrentava dificuldades de vária índole, em diversos sectores: havia falta de quadros qualificados. Na área da educação havia falta de professores, salas de aula, etc. Face a estas e outras demandas, o governo do partido comunista cubano de Fidel Castro ofereceu a Moçambique, escolas em seu território, na Ilha da Juventude, para serem frequentadas por crianças moçambicanas.
[32] Extracto do texto aprovado pelo Fórum Mundial sobre Educação, Dakar, Senegal, 26-28 de Abril de 2000).
[33] Movimento chauvinista de direita alemão, nos moldes do fascismo, imperialista, belicista, e cuja doutrina consiste numa mistura de dogmas e preconceitos a respeito da pretensa superioridade da raça ariana, sistematizados por Adolf Hitler (1889-1945) em seu livro Minha Luta.
[34] As senhoras Dona Cecília JOÃO & Dona Luisa NIVAVELA, ambas parteiras do hospital de Meconta e de Netia respectivamente, são co-autoras do texto em referência, mas que a Diocese de Nampula coloca como sendo colaboradoras.
[35] Significa, em língua Macua: menina antes de entrar na puberdade.
[36] Esclarece-se, contudo, que entre os amakhuwa islamizados a mulher não assiste aos enterros, tarefa exclusiva dos homens. Mesmo que o morto seja do sexo feminino, as mulheres têm apenas o dever de preparar o corpo (lavá-lo e vesti-lo). O enterro é tarefa dos homens. Porém, em caso de nado-morto ou aborto, o feto é enterrado apenas por mulheres.
[37] "Estrutura" na linguagem política moçambicana pós-independência significa: posto na hierarquia social.
[38] Palavra da língua emakhuwa, cujo singular é “ekano”. IKANO designa o conjunto de conselhos, instruções ou ensinamentos que são ministrados às raparigas ou aos rapazes nos ritos de iniciação, constituindo elemento crucial destes.
[39] Em palestra proferida na Universidade Pedagógica - Delegação de Nampula, aos 26/09/2000.
[40] Vide o mapa da composição étnica de Moçambique nos anexos.
[41] O nome em latim de Jan Amos Komensky (1592-1670). A sua principal obra é Didáctica Magna. É talvez o pedagogo mais significativo do século XVII.
[42] Tradução de Joaquim Ferreira Gomes do texto latino da Didáctica Magna de Coménio contido no tomo I das Opera Didactica Omnia, da Academia Scientiarum Bohemoslovenica, Praga, 1957.
[43] Existem em Moçambique diferentes etnias, sendo as mais relevantes: Macua, Chuapos, Senas Tawaras, Macondes, Chewas. Nyanjas, Ndaus, Tsongas, entre outras.
[44] Cerimonial (upahla) de reposição sócio-cultural no sul do país, semelhante ao MUKUTTHO.
[45] A autoridade tradicional é uma instituição sócio-política tradicional africana. É representante do poder tradicional africano. Um poder reconhecido e respeitado pelas populações que acreditam ter origem divina, transmitido de geração em geração pela consanguinidade, de tio para sobrinho (filho da irmã proveniente da mesma via uterina) – em sociedades matrilineares – e de pai para o filho varão, em sociedades patrilineares. Aqueles que assumem o poder tradicional tornam-se chefes legítimos porque, simbolicamente, estabelecem uma relação permanente entre os vivos e os mortos. A legitimidade [direito e aceitação] da autoridade tradicional é lhe dada pela comunidade e só a comunidade pode lhe retirar essa legitimidade segundo a tradição.
[46] As vacinas tradicionais estiveram muito em voga no período da guerra colonial assim como na civil, recentemente terminada no país. Os guerrilheiros vacinavam contra as balas do "inimigo", isto é para não serem atingidos por projécteis. Os NAPHARAMAS foram grupos destemidos de defesa autóctone tradicional, que se tornaram famosos durante a guerra de desestabilização em Moçambique. Combatiam de peito aberto, sem necessitarem de se entrincheirarem, graças a essas "vacinas", conforme se afirma(va).
[47] Ano de início da Luta Armada de Libertação Nacional.
[48] Em entrevista, na revista ÍNDICO, de Abril/Junho de 2001.
[49] Tradução minha
[50]Território étnico ou território etnolinguístico designa a área geográfica habitada predominantemente por um grupo étnico.
[51] A sociedade Macua tem marcas de machismo bastante fortes no que se refere ao reconhecimento da «maioridade» da mulher. Ela é discriminada nos assuntos ligados à iniciação dos filhos, quando chega a altura dos ritos de iniciação, alegadamente porque são exclusivos para os homens. Mesmo que a mulher tenha passado pelos ritos de iniciação, ela não pode visitar o seu filho nos acampamentos de iniciação. É que a mulher é sempre considerada "criança" no seio dos homens, embora também o homem não possa presenciar algumas fases dos ritos de iniciação femininos. Antigamente, o caso assumia contornos de violência instituída. Se a mulher fosse surpreendida a passar perto de um acampamento de iniciação de rapazes, era injuriada e corria o risco de ser violentada. O homem, também, tinha o mesmo tratamento, caso fosse surpreendido a espiar os ritos femininos.
[52] IKANO SOOKHUMA são os conselhos finais de iniciação. Literalmente significa conselhos de saída. Os ritos de iniciação terminam com um grandioso cerimonial, que dura toda a noite, em que os ALIPA A IKANO (conselheiros dos ritos de iniciação) dão os últimos conselhos aos neófitos na presença de todo o público interessado, incluindo mulheres "adultas". Esta cerimónia termina com uma grande festa na casa do MWENE (autoridade tradicional) e na casa dos pais dos iniciados, no dia seguinte.
[53] Período de margem é o espaço de tempo em que duram os ritos de iniciação. É um período de isolamento, em que os iniciandos são submetidos à uma instrução intensiva de interiorização de normas comportamentais e aos segredos da vida.
[54] Aquilino Corrente, mais conhecido por YANAWIREYE, mestre dos ritos de iniciação, em entrevista em Fevereiro de 1996.
[55] Em entrevista em Janeiro de 1994
[56] MWENE significa rei, soberano, chefe do território linhageiro; APWIYAMWENE é uma figura feminina que aparece em todos os grupos AMAKHUWA do interior, com várias denominações, que os Portugueses qualificaram erroneamente como rainha. Desempenha o papel de principal conselheira do MWENE na tomada de todas as decisões respeitantes à vida do "mwenado"; ALIPA A MASSOMA são os mestres dos ritos de iniciação; MAHUMO (plu. de HUMO), são os chefes de uma linhagem dentro dum território linhageiro.
[57] Do Mito grego Édipo, herói tebano, filho de Laio e Jocasta, decifrou o enigma da Esfinge e que, por infortúnio, matou o pai e se casou com a mãe.
[58] No sistema capitalista, as relações de parentesco tendem a tornar-se cada vez mais restritas devido ao egoísmo pela posse de mais dinheiro (mais benefícios materiais), ou por causa da pauperização. Quanto menor é o número de parentes com quem compartilhar os benefícios do dinheiro, maior é o usufruto. Nos sistemas tradicionais, quando se fala de família, refere-se à família alargada. Transcende a tríade pai, mãe e filhos.
[59] Ajudante do mestre YANAWIREYE, em entrevista, em Dezembro de 2001.
[60] Em entrevista, em Fevereiro de 2000.
[61] Em entrevista, em Fevereiro de 1996.
[62] Tradução minha.
[63] Rapaz ou homem não circuncidado, não iniciado.
[64] Entrevistados em Outubro de 2000 (YAMPUHUA) e Janeiro 2001 (YAMPUISSI).
[65] Plural de NAMAIKHUPI, significa aquele que assiste o mestre da circuncisão, os ajudantes do “cirurgião”.
[66] Remédio, em pó, posto pelo operador na língua dos circuncisos, logo após a circuncisão: MURRETTE WOOYARIHA (remédio que faz nascer).
[67] Os mestres dos ritos de iniciação creditam que a poeira das margens do rio possui alta capacidade curativa.
[68] Antigamente não se utilizava nenhum medicamento da medicina moderna como antibióticos. A cura da ferida tinha que ser por processos naturais.
[69] Tradução minha.
[70] OTTHULAMELIA ou OTTHULAMIWA significa ser amostrado o ânus.
[71] Em entrevista, na Ilha de Moçambique, em Janeiro de 1995.
[72] Anciãos, seleccionados com base na sua idoneidade e carisma, permanecem no acampamento, onde garantem as "aulas" e a ordem.
[73] Nihímica, aportuguesado de NIHIMO (clã), para significar clânica.
[74] Não se pronuncia ITHANU NI ITHANU. Diz-se logo MULOOKO; MILOOKO MILI, etc
[75] YAPWIRIPWIRY é um dos ALIPA A IKANO do grupo do mestre YANAWIREYE. É o responsável pela construção das pirâmides simbólicas de MILEPO.
[76] Em entrevista, em Dezembro de 1993.
[77] Em entrevista, em Janeiro de 1995, na Ilha de Moçambique.
[78] Entrevistada em Janeiro de 1995.
[79] Na sociedade Macua, muitas vezes os ritos de iniciação femininos são realizados quando as raparigas já são casadas. Em parte, isto deve-se a casamentos prematuros, um dos males que é necessário combater. Algumas pessoas mal esclarecidas pensam que o primeiro fluxo menstrual das raparigas é sinal da sua maturidade para o casamento, o que em parte tem resultado na desistência escolar de muitas delas. Pensamos que uma das principais causas da elevada taxa de analfabetismo, entre as mulheres nesta região do país, deve-se, fundamentalmente, a este e outros problemas.
[80] YAMPWIRO é um dos ALIPA A IKANO do grupo do mestre YANAWIREYE. É o responsável pela construção das pirâmides simbólicas de MILEPO. Trabalho de campo em Janeiro de 2000.
[81] Entre pessoas do mesmo NIHIMO (clã), todos se consideram parentes consanguíneos, com um antepassado comum, real ou mítico. Por isso mesmo, na sociedade Macua os casamentos são exogâmicos, isto é, a proveniência dos cônjuges tem de ser de fora do grupo.
[82] A mudança de nome varia de região para região havendo, portanto, grupos Macua em que a mudança de nome está em desuso, como é o caso das NAHARAS (de origem litorânea).
[83] Em entrevista, em Janeiro de 1995.
[84] O assedio sexual às alunas virou rotina nas escolas. Descaradamente, alguns professores exigem relações sexuais às alunas, como condição para passarem de classe. Também é comum exigirem dinheiro e outros bens aos alunos. O assédio sexual e outros tipos de corrupção nas escolas que tem sido combatido pelo Estado e outras organizações não-governamentais.
[85] Para mais informação, vide minha tese BONNET (1996) na parte referente aos métodos e meios usados durante os ritos de iniciação.
[86] Templos e escolas de difusão da língua e preceitos religiosos muçulmanos em árabe.
[87] Palavra de origem árabe (cafir) que significa «infiel».
[88] Auxiliares autóctones de policiais portugueses em África a serviço da administração colonial.
[89] Vide item 5, citação do texto de Benjamim FRANKLIN, por ocasião do tratado de Lancaster entre o governo de Virgínia e as nações indígenas, em que os representante destes, se recusaram a enviar seus jovens à "lavagem cerebral" através da educação ministrada nos colégios dos brancos.
[90] Devido à discriminação racial vigente, nas diversas profissões os negros nunca passavam à designação de “escriturários”, por mais competentes que fossem. Nunca passavam de “ajudantes”, neste caso concreto de “trabalhador de escritório”. O meu pai tinha apenas a 4ª classe e era trabalhador de escritório havia mais de 40 anos. Morreu como “ajudante de escritório”.
[91] Alexandre CANCELAS foi administrador do então distrito de Moçambique no período que o documento referencia. Apesar de pertencer à elite colonial, estava contra a repressão cultural dos autóctones.
[92] A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi transformada em Partido a partir do III Congresso, em Fevereiro de 1977. Por isso, quando se transformou em partido, de FRELIMO como se vinha escrevendo, passou-se a escrever Partido Frelimo. Portanto, sempre que o leitor se deparar com a palavra Frelimo deverá entender como sendo Partido Frelimo. Moçambique foi um país de partido político único até 1993.
[93] Anualmente, em todas as aldeias e bairros da Província e cidade de Nampula são realizados ritos de iniciação dos rapazes e de raparigas. Os números das crianças submetidas aos ritos de iniciação tendem a subir todos os anos, sinal de evidente aderência.
[94] Como já foi esclarecido, machamba significa terreno de cultivo numa floresta; roça.
[95] Permanecer na escola, sabendo que pouca possibilidade de aprender algo útil para a vida é, segundo as populações, pretender prolongar a infância, fantasiando o futuro, pois, não vendo o resultado prático do trabalho da escola, que devia contribuir para a melhoria das suas vidas, as populações não podem manter as crianças na escola por muito tempo. Não é fácil, para um família pobre, manter por muito tempo, dois ou mais filhos na escola, nas condições actuais da escola em Moçambique.
[96] O Governo de Transição foi constituído durante as conversações entre o governo colonial português e a FRELIMO, em 1974, como um dos pontos do Acordo de Lussaka, na República da Zâmbia, sobre a independência de Moçambique.
[97] A IX Sessão do Comité Central do Partido Frelimo realizou-se de 9 a 11 de Dezembro de 1981. De entre outros objectivos, iria apreciar e aprovar a introdução do SNE em 1983.
[98] Em 1983, funcionava em Moçambique, uma Assembleia Popular e o país denominava-se República Popular de Moçambique. Estava-se no período de Partido único. Actualmente há uma Assembleia da República multipartidária.
[99] Antigo combatente da FRELIMO e um dos seus principais ideólogos. Depois da independência exerceu vários cargos quer no Partido no poder, quer no Governo, entre os quais Ministro da Agricultura, Governador do Banco de Moçambique, Ministro da Segurança, Director do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane. Actualmente, é Deputado.
[100] Cf. Relatório do Ministério da Educação ao Conselho de Ministros, 1988.
Grande Tese. Todos Moçambicanos deviam ler
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