Logo pelas primeiras horas da manhã de cacimbo já pedalam na auto-estrada os incansáveis batalhadores do norte de Moçambique, numa espécie de comboio dos duros do pé-descalço. Pedalando quase com os calcanhares – para dar mais força – alguns sem pedais, lá vão eles. Com tudo às costas. Mesas de venda. Cabritos. Galinhas. Carvão. Uns para Nampula, outros para estrada de Angoche, outros para Nacala, onde me encaminho agora. A viagem faz-se tranquila, porque a estrada está relativamente boa. E não fossem somente os percalços naturais, com camiões-cavalo vindos do porto ou um insólito aviso de crocodilos no rio Monapo, bem se poderia falar de um passeio até à esquina. Mas confesso, depois da amostra de Nampula, estou bastante intrigado com o que vou encontrar na alma-gémea Nacala.
Ainda no caminho, vejo o desvio da Ilha de Moçambique e apetece-me ir matar saudades da terra que conheci no final dos anos 70 e quem sabe dizer olá a Macutana Macuta, que hoje se despede da Ilha. Não deu, fica para a próxima.
Prossigo então a minha caminhada e quase a uma trintena de kms de Nacala uma grande obra de engenharia me bloqueia a visão. Trata-se da tão desejada barragem que virá resolver o crónico problema da falta de água naquela cidade (eles acreditam, por isso nem se lembram que a água é também essencial para qualquer indústria ou imobiliário de luxo), o que a suceder, virá ser uma grande vitória eleitoral antecipada para a FRELIMO, que aliás, marca hoje omnipotente presença em todos os lugares abeiram a estrada até Nacala. Do MDM, só alguma vivalma perto do cruzamento da Ilha. A RENAMO, essa parece que se volatizou da província após o precipitado abandono da Rua das Flores pelo seu líder. Um pouco mais adiante, surge a famosa zona económica especial, onde já despontam estaleiros e algumas fábricas. Com um estilo arquitectonico duvidoso, fica-se com a impressão de se estar a entrar num Oued de Marraquexe. Até parecem símbolos maçónicos. No caso, serão islâmicos. Saboeiras, oleaginosas e grandes entrepostos comerciais, assim se resume a “indústria” pesada trazida pelo GAZEDA na porrada de anos que por lá está. Ainda vamos a tempo de ver a famosa “linha de montagem” de carros Tata e autocarros Yutong. BRICS ON FIRE..
Entro então na famosa urbe e deparo-me com um movimento muito mais caótico do que em Nampula. Um autêntico formigueiro de lojas, barracas, motas em ascensão constante cidade baixa, cidade alta, naquele viaduto que se estende por quilómetros desde o porto, curiosamente sempre bem asfaltado. O mesmo já não se poderá dizer da sua bifurcação que liga outra parte da cidade, cheio de autênticas crateras lunares. Lá na cidade alta, desponta o maior edifício da cidade, que ameaça ruir colina abaixo. Está cheio de rachas. É o consulado de Chale Ossufo, que vai acumulando pontos para as autárquicas deste ano, com uma outra estrada feita em pavê que se estende até aos subúrbios, onde um inevitável Tufo meneia as ancas de uma prole de belas macuas, com pulseira no tornozelo. Neste frenesim total, é notório que a VALE veio revolucionar a vida desta gente. Pelo menos, a sua maneira de estar. Ao contrário de Nampula, esta gente parece correr mais veloz atrás das oportunidades. E se houvesse empresários sérios por lá, talvez se conseguisse ali o almejado mozambican empowerment que o AEG tanto sonha de helicóptero. Coisa séria esta, tendo em conta que ali pulsa o comércio nampulense. E por arrastamento de toda a zona norte do país. Razão mais do suficiente para qualquer um acreditar que a pedalada dos mega projectos deveria ser ritmada naquela urbe. Felizmente, há rede móvel aqui. Amarelo, Vermelho e Laranja, conforme o freguês. Mas somente na cidade. Já a energia, é aquela base. Vai-Vém, como um boomerang. Tapando-furos, este é o lema da EDM.
Infelizmente, este conservador emirado de cantineiros seculares, hoje convertido ao capitalismo mundial, afina no mesmo amadorismo dos seus homólogos de Nampula no que tange aos processos de negócio. E até da mesquinhez somáli, no que tange à seriedade do que apresentam ao GAZEDA como projectos de desenvolvimento para usufruirem dos chorudos benefícios fiscais. Como por exemplo, o chico-esperto que engendrou a bolada desses dois navios que vêem nas fotos, que inicialmente deveriam iniciar serviços de cabotagem costeira em Moçambique e pesca oceânica do Atum, pescado muito abundante naqueles mares, mas que de um momento para o outro, se transformaram em ferro-velho para ser vendido aos locais que necessitam de materiais de construção, ou reexportado para outras paragens. Um deles até já perdeu a proa. E o Zucula a dormir. Mais uma ideia “Made in Pakistan” nos portos do norte de Moçambique. A primeira, já havia sido apresentada pelo sultão FARUK de Mocímboa da Praia...
Imaginem, minhas senhoras e meus senhores, que Nacala (a Nova), com o seu porto natural, que não necessita de dragagem, nem manutenção, o que por si só, lhe dá uma vantagem competitiva inigualável em toda a costa oriental de África, apresta-se a se transformar num estaleiro de desmanche de navios, como aquele situado em Alang na costa ocidental de Karachi, no Paquistão, onde navios jazem inactivos em gigantescos parques de estacionamento aquáticos, onde são empilhados em volumes medonhos de até três embarcações. Por ano, morrem ali 125 navios de todos os tamanhos e feitios. Pelos vistos, a indústria naval de que tanto se fala nos “projectos” do GAZEDA tem a linha de montagem pelo avesso...
Mas como é possível que o AEG, que conhece muito bem o sector dos transportes e comunicações na SADC, possa andar tão distraído com o que se passa em Nacala? Talvez os cheques que entram todos os meses nos cofres do comité provincial da FRELIMO sejam a melhor explicação. E porque também, o actual porto de Nacala já não conta para os planos da VALE que preferiu assentar arraiais em Nacala-Velha. Que se lixe Fernão Veloso, já se vê. O que conta agora é o carvão e o PROSAVANA. E os vira-casacas da JICA com os seus presentes envenenados. Sanguessugas de gravata. Sacanas de primeira.
Porque este negócio do ferro-velho de navios não é brincadeira nenhuma. Como as companhias de navegação encomendam regularmente novos navios para substituir os velhos, isso cria um excesso de capacidade similar àquele que afecta o sector automobilístico. Quando as encomendas não podem ser canceladas e os novos navios saem dos estaleiros no momento em que a demanda por eles é baixa, isso causa o aumento da pressão para vender os navios antigos como ferro-velho. Quase 90% da atividade de desmanche de navios ocorre na Índia, no Paquistão e no Bangladesh. Os trabalhadores, cantando suratas do Corão, arrastam placas de aço com longas cordas; cabos eléctricos, tubulações, caldeiras, escotilhas, geradores e espalham-nos pela costa, incluso o cancerígeneo amianto e outras substâncias tóxicas usadas como vedante de cascos. Seguidamente, as peças que não puderem ser derretidas e transformadas em lingotes de aço, são comercializadas ao longo da estrada para Alang num novo tipo de bazar. Nestes dumba-nengues especializados de Karachi, estão à venda portas, mesas, sofás, carpetes, pratos, geleiras, aparelhos de ar condicionado e até utensílios de WC. Os lingotes de aço por seu turno são comercializados no imobiliário, etc. Já imagino o mesmo a acontecer em Nacala muito em breve. E com isenções fiscais!
Sendo assim, não é de se excluir que o boom imobiliário, o porto de Nacala-a-Velha e outros, estejam na mira do lucro fácil destes cantineiros-industriais, o que não me parece bem, é bloquear o cais de Nacala, correndo-se até o risco de vê-los afundar ali...
Indisposto com esta impunidade arrogante dos que têm dinheiro em Moçambique, subi até à cidade alta para ver a quantas anda o novo aeroporto internacional de Nacala. Valeu a pena, porque fez-me esquecer aqueles dois calhaus flutuantes.
As obras estão a bom ritmo e se tudo correr bem, temos ali o futuro Hub da zona norte de Moçambique, o que vai obrigar a mudança de rotas da LAM. Assim, já posso imaginar um voo Maputo-Nacala-Lichinga-Pemba-Nampula ou vice-versa. The sky is the limit! O mausoléu do GAZEDA está lá também. De côr cinzenta fúnebre, parece ser mais habitado por fantasmas. Raramente se vê vivalma por detrás daquelas janelas...
Mas a ODEBRECHT, essa, já é outra coisa. Com as bandeiras de Moçambique e Brasil, lado a lado, vai marcando o ritmo das obras na região. O mesmo que dizer em relação à PHOENIX, de moçambicanos, que tem o seu estaleiro ali por perto, mostrando que nesta vida, como em quase tudo, o trabalho e o profissionalismo são o melhor cartão de visitas de um empresário de sucesso.
Antes de partir, dou uma vista de olhos à hotelaria, visto que de comércio já estamos conversados. E sugerem-me o Maiaia, três estrelas, um luxo empinado no viaduto principal de Nacala. Dá para o gasto. Mas recomenda-se grelhados para quem tenha o estômago fraco. É que isto é Nampula, o paraíso das especiarias.
Pego então a estrada de volta a Nampula e de repente, dá-me um vaipe e decido ir até ao Monapo, já a noite ia alta. Surpresa, a vila está mais iluminada que um Titanic. Embora já passasse da hora de expediente, tudo indica que ali se respira vitalidade. Em todos os sentidos, diga-se. Por exemplo, o político. Aqui também só dá bandeira vermelha, com a mesma precisão norte-coreana que já havia encontrado em Ancuabe. Começo a acreditar que no interior desta província onde só chega Movitel e TVM muitos ainda acreditam estar a viver na República Popular de Moçambique. Cadê a oposição? E é com essa interrogação que chego finalmente a Nampula onde descansarei para partir seguidamente para o Parapato.
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