31.12.2015 • 01h00
Não é apenas o ano 2015 que termina, mas 15 anos de grandes transformações que podiam ter acontecido. Não basta, por isso, analisar apenas o ano que termina, mas aquilo que nesse ano resume os últimos quinze anos.
Por Paulo Inglês.
Não é apenas o ano 2015 que termina, mas 15 anos de grandes transformações que podiam ter acontecido. Não basta, por isso, analisar apenas o ano que termina, mas aquilo que nesse ano resume os últimos quinze anos. Assim, em vez de me deter em eventos e dar-lhes notas positivas ou negativas, procedimento muito convencional em balanços de final de ano, prefiro ver os processos em curso, os seus ritmos. Essa visão longitudinal pressupõe o contexto e as interligações dos acontecimentos, e isso é desvantajoso para um texto que se supõe curto.
Duas notas prévias: a primeira tem a ver com os 15 anos. O pós-conflito começa de facto em 2002, mas já em 2000, lá para o final, o poderio militar da UNITA já tinha sido desmantelado. As suas comunicações e logísticas já não tinham condições para suportar uma guerra convencional ou de guerrilha. Além disso, a investida diplomática cortara qualquer ilusão de reatar antigos apoios; portanto, a partir do ano 2000, apesar das bolsas de resistência, o fim da guerra era iminente e a direcção da UNITA entrava na encruzilhada de se render, ou a sua inevitável decapitação, como depois se viu.
A segunda nota é que os militares, os generais mais precisamente, tinham percebido, muito antes dos civis e ainda nos anos 90, que o exercício do poder em Angola ganharia outros contornos em tempo de paz e que o seu protagonismo cessaria, a não ser que se reposicionassem estrategicamente para os tempos que advinham. Erraram, em parte, no diagnóstico, mas acertaram nas consequências da leitura que fizeram: o essencial dos novos tempos não estava tanto em ter poder, mas na técnica do seu exercício, nas suas constelações. Quando alguns deles começaram a entrar em grandes negócios e a tornarem-se, de repente, super milionários, não estavam a adquirir novo poder, nem a usurpá-lo ou a abusar dele; estavam a ser consequentes com a maneira como o poder é exercido em Angola e a retiraram disso o máximo de vantagem, evidentemente. O poder em Angola é gelatinoso nas suas pontas, quase “soft”, mas é cru e bronco nos seus nós. Nisso não mudou muitos nos ultimo 40 anos. Não se trata apenas de possuir o poder, não é só uma questão de partido, não é só o MPLA. Por isso o diálogo de surdos entre este último e os seus “adversários”, ou supostos “inimigos”, não leva a lado nenhum. Trata-se de uma cultura política que inclui violência tanto física como simbólica nas suas manifestações e actuações. Creio que foi Hannah Arendt que disse que a violência exclui o poder e, portanto, a política. A política é também a arte de negociar, contestar, rejeitar ou partilhar o poder. É anterior às disseminações institucionais do seu exercício ou às formas de regime político que o tornam possível. João Melo tem razão quando sugere que o governo tem que dialogar mais com os parceiros sociais e políticos. Mas isso é um apelo ao lado gelatinoso do poder e pretende um efeito paliativo dos problemas sociais: está bem para casos de emergência social, mas não toca nos nós do poder, nos pontos em que é mais perigoso. Não se trata apenas de mexer nos instrumento de coerção – como os canhões de água, os cães, o serviços de contra inteligência, o exército e a polícia, – mas naquela espécie de martelo mágico que ridiculariza qualquer forma de acção política. Por isso, 2015 é um ano curioso e estranho. Não é apenas o fim do benefício da dúvida que demos ao governo durante quinze anos para que nos devolvesse o sonho e a ilusão que os anos de guerra e violência injustamente nos roubaram, mas é também o ano em que nosso o “stock” de ressentimento, as nossas memórias e expectativas são expostas e banalizadas. Um aspecto que me chamou atenção no Dezembro em Luanda foi a reivindicação dos trabalhadores da TCUL – Transportes Colectivos de Urbanos de Luanda – uma empresa pública, portanto; reclamam os seus nove meses de salário em atraso.
Não se trata apenas de um direito laboral, nem é só uma questão de justiça social, tudo isso também, claro! É, no entanto, uma forma simbólica de violência que (também é física), não só lhes deixou apenas mais pobres, são sobretudo alfinetadas na sua dignidade como pessoas. Não imagino como é que os desgraçados justificam às suas famílias, aos seus filhos, o facto de saírem todos os dias às 5 da manhã para irem trabalhar e ao fim de cada mês não serem pagos, durante 9 angustiosos meses. Não se trata de chantagem política nem de jogar aos políticos como quem joga aos berlindes. Não se trata de cair na lengalenga das denúncias sociais etc. mas ir aos nós onde o poder é exercido. Voltaremos ao assunto.
Outro assunto que mexeu com a sociedade foi o caso do monte Sumi. Não vale a pena descrever aquele horror. Às vezes o poder precisa de performances, mesmo na sua forma mais bruta. Discutir o número de mortos para avaliar a moralidade do acto é um exercício grotesco! Nem se trata da violência crua. A história de Angola e do Planalto está cheia de acções violentas semelhantes. A diferença está no contexto politico em que estas violências são praticadas e na semântica política que lhes dá justificação. Antes, estas violências eram praticadas para estabelecer uma fronteira entre “nós” e “eles”; agora é entre “ordem” e “desordem”, entre “legal” e “ilegal”, entre os que estão do lado “verdade” e os que estão do lado “erro”. É uma forma de punição, mas é sobretudo uma forma de controlo social. As pessoas não puderam dar um enterro digno aos seus familiares, nem sabem se estão vivos ou mortos. Mas, mais do que isso, houve um exercício de culpabilização das vítimas. As pessoas, cujos direitos e dignidade foram feridos, têm que se autoflagelar por terem perturbado os interstícios do poder, esta é também uma forma de autoflagelação antecipada para o resto da sociedade. E para isso a Televisão Publica de Angola é um instrumento precioso (TPA).
A TPA não é apenas um instrumento de manipulação, não é isso que a diferencia de outros canais, mesmo a nível internacional; também não é apenas um exemplo de mau jornalismo, há muitos maus jornalistas por esse mundo fora. A TPA é uma espécie de “sala de catequese”; não expõe apenas uma doutrina, mas dissemina uma moral, a moral da pátria. Umas das características dessa moral é a retorção dos termos lógicos dos argumentos, dissipar qualquer forma de contradição do funcionamento do poder. Por exemplo, enquanto apresentava o desfile da comemoração oficial do dia da independência, com aquelas marchas marciais com uma estética à anos 80 e a lembrar a antiga RDA, faziam-se comentários do que se tinha conseguido nos últimos 40 anos; ufanava-se do desenvolvimento e do progresso social em prol das populações. Mesmo sabendo que centenas de trabalhadores da TCUL estavam há nove meses sem salários. Não se tratava de estragar a festa, nem perturbar a quietude com que as “autoridades” triunfantes, engalanadas e cinicamente sorridentes, assistiam ao desfile. Também não é nenhum insulto; claro que a TPA pretendia causar o efeito placebo e, sobretudo, essa coisa incompreensível, e tão angolana, de que apenas alguns podem beber refrescos mas todos têm que sentir o frescor nas suas gargantas ressequidas…
Mas a TPA não provoca apenas isso, fosse esse o seu mal! Tenta inculcar na cabeça dos telespectadores, sobretudo dos mais pobres e injustiçados, que a sua contingência é uma espécie de destino. Isso toca no mais fundo do coração das pessoas porque atravessa a fronteira do humano, da sua dignidade. A existência das pessoas aparece como um favor outorgado pelo poder, assim como os seus direitos. Parece que se abandona aquela noção kantiana de indivíduos como fins em si mesmos e tornam-nos numa espécie de meios através dos quais o exercício do poder adquire legitimidade. Isso devolve-nos para os inícios do nacionalismo. Um dos objectivos do nacionalismo foi justamente restaurar a ideia de dignidade dos angolanos que o colonialismo, através de práticas e leis abusivas, tentava obstruir. Por isso é que os primeiros nacionalistas se referiam aos angolanos em geral como o “nosso povo”; não era apenas uma fórmula poética, mas uma fórmula antropológica, era uma posição política. Mas a TPA, usa, em vez disso, “as populações”. Por exemplo, as pessoas que morrem à fome no Cunene são as “populações” do Cunene ou do sul de Angola. Não é apenas uma categoria geográfica, é sobretudo uma fronteira antropológica. É por isso que eu acho que na TV Zimbo deve haver alguém com agudiza de espírito suficiente para contrariar a TPA. Não se trata apenas de concorrência ou de aumentar o “share”, mas de reverter uma corrida para o abismo. Deve haver alguém que percebeu que as infra-estruturas são artefactos que permitem operações “emancipatórias”. Essa aparente rivalidade pode ser um processo de restauração e de recuperação de quinze preciosos anos de inacção. Veremos o que nos reserva 2016.
O assunto dominante a partir do segundo semestre do ano que termina foi, evidentemente, a prisão, o julgamento e o regresso à casa – sim, regresso – dos 15 activistas políticos. A ressonância do caso é muito mais profunda do que a ligeireza com que é analisado. Deixo de parte os contornos jurídicos, uma odisseia em si; deixo de parte também a “guerrilha” que se instalou dentro das distintas camadas do poder judicial, das distintas tradições e escolas que de repente vieram à tona; também deixo de parte a luta subterrânea entre os serviços de segurança e o poder judicial; aqueles a tentar manter o monopólio da força sobre os angolanos, e estas últimas a montarem trincheiras e a fazerem uma resistência passiva. Mas o interessante no caso do “révus” é o facto de ter levado luz às catacumbas onde jazem os nós do poder. Eu acho que é das poucas vezes, ao longo da nossa história, que esse nó é obrigado a mostrar-se. A vigília na Igreja da Sagrada Família, em Luanda, foi um momento alto, inclusive esteticamente. De um lado estavam cidadãos “despossuidos”, com uma simples vela acesa como o único recurso simbólico de que dispunham para reafirmarem a sua dignidade; do outro lado havia sombras e fantasmas do passado sob forma de canhões de jacto de água e cães famintos. Havia também o detalhe da composição das pessoas, transversal quanto à classe, raças, idade e filiação política. Isso fez estremecer os nós do poder, que reagiu com cautela e prudência primeiro, mas com propaganda e violência depois. A TPA, sempre TPA, informou ajuntamentos ilegais e acusava “desordem pública”. Depois foram os desfiles de juristas pelos ecrãs da TPA, com aquele ar de sumidades catedráticas sisudas, às vezes um pouco “poser” a debitarem, de memória, e de forma algo irritante, o código penal, com os respectivos números de artigos, alíneas e, sobretudo, as barras. O cerne da questão, isto é, o livre debate de ideias, a contestação ao modo como o poder é exercido, ou a discussão de formas alternativas de como o poder pode ser exercido, são assuntos tabus, não em decorrência de censuras, provavelmente sim, mas sobretudo porque é visto como descortês ou falta de educação ou pouco civilizado. Por isso é que se pede para os “révus” uma espécie de castigo exemplar, algo como chibatadas. Ousaram desafiar o poder. O modo como vai terminar o julgamento creio que vai marcar, em alguns aspectos, o ritmo do ano 2016. No fundo estamos todos suspensos.
Até se resolver o modo como o poder é exercido, a sua pulsão hegemónica e autoritária, “desamarrar” o nó que impede o país de dar saltos e traçar caminhos, aprofundar os mecanismos de controlo do exercício do poder, enquanto não se resolver este assunto, andaremos sempre às voltas. Não se trata só de denúncias às tropelias dos direitos humanos, ou esquemas de corrupções ou alguma incompetência administrativa. Tudo isso é bom, evidentemente, mas não são a causa dos problemas, são consequências. Um dos erros das análises sobre Angola é a repetitiva fixação nas consequências dos nossos problemas e não nas suas causas. A descrição das consequências, a sua dramatização ou possíveis exageros, podem causar o efeito contrário, além de nem sempre promover um debate profundo do que se está a passar. Não se trata de um problema de partidos políticos ou de ONG; não se trata de estar a favor ou contra o MPLA; não é a velha querela MPLA-UNITA; nem é uma questão de “adversários” políticos ou “inimigos” do governo, nem se reduzem às denuncias corajosa do Rafael Marques. É algo que está arraigado na nossa cultura política e que tem as suas raízes na nossa história social, remonta dos tempos da luta anti-colonial, quando se forjaram as lideranças dos movimentos nacionalistas; algumas práticas de como orientar a luta anti-colonial à mistura com ideologias totalitárias, as ideias messiânicas sobre a nação e o seu destino criaram o hábito do uso instrumental da violência. Com o tempo, isso transformou-se numa prática e num quase cânone; os anos de guerra civil exacerbaram estas práticas e transformaram nisso a que chamo de cultura política. É uma armadilha em que todos nos encontramos. As suas consequências são desastrosas para os mecanismos de tomada de decisão, da limitação do exercício do poder e da produção de consensos em assuntos essenciais para a nação subsistir como comunidade política e progresso social dos seus membros. Não tem a ver só com a crise económica e financeira em que nos encontramos e que está a matar gente, infelizmente. Pode ser que o preço do petróleo volte a subir e tenhamos novamente dinheiro disponível, mas o fundo do problema vai persistir e sempre estaremos vulneráveis.
Desejo que o ano 2016 seja melhor. E devo confessar que senti uma imensa alegria em ver os “révus” regressarem para junto das suas famílias. Estavam tão acossados, mas também tão fortes de espírito; traziam nos seus corpos as marcas da arrogância e da prepotência, mas, ao mesmo tempo, de resistência! Aqueles olhares radiantes e vivos eram também os nossos; as suas vozes de agradecimento transformaram as nossas angústias e medos. O tribunal provincial do Benfica, à frente do qual passei há três semanas já depois da hora da sessão dos julgamentos, tinha se convertido, por momentos, numa espécie de parlamento, onde projectávamos as nossas angústias, mas também as nossas esperanças. Mas eles saíram de lá triunfantes, tão vaidosos… e tão angolanos!
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