KENNEDY E SALAZAR: AFRICA E OS AÇORES
de dois relatores que visitariam Angola e Moçambique. No seu lugar, o
grupo afro-asiático passou uma resolução fortemente anti-portuguesa
que exigia a imposição de sanções e condenava "o extermínio em massa
da população indígena de Angola"123. Os Estados Unidos votaram
contra a resolução, bem como Portugal, a Africa do Sul e os seus
aliados europeus mais próximos. O fracasso da iniciativa americana foi
outro ponto de viragem nas relações entre Lisboa e Washington, já que
veio mostrar a Lisboa o limite da influência americana no Conselho de
Segurança bem como a incapacidade das Nações Unidas de impor
sanções a Portugal. Para os Estados Unidos a resolução falhada foi uma
grande derrota para a política americana, que tentava colmatar a brecha
entre os implacáveis portugueses e os estados africanos que cada vez
ficavam mais impacientes.
No dia que se seguiu à votação na ONU, foi um Holden Roberto
frustrado que escreveu a Kennedy a partir de Nova Iorque. Aplaudiu a
posição anterior dos americanos na ONU como um "indicador da
vontade de aplicar a moralidade e a justiça, correndo o risco de serem
duramente criticados... Hoje, por outro lado, há necessidades
exclusivamente humanitárias dos nossos refugiados e estudantes que são
descuradas e ajuda que é terminada devido a pressões do Departamento
de Estado". Holden Roberto pediu uma reunião com um representante
da Casa Branca para discutir apoio para Angola - "uma luta que com
certeza ainda apoia". Em mais uma afronta para o nacionalista africano,
o Departamento de Estado recomendou liminarmente à Casa Branca
que "não desse qualquer resposta" à carta de Holden Roberto124.
A Fachada Portuguesa
Uma das razões porque a administração Kennedy permitiu que a
questão do colonialismo deixasse de ser prioridade na lista da política
externa americana, foi a nova medida do regime de Salazar de aparente
estabilidade em Portugal e nas suas colónias. Salazar já não tinha de lidar
com conspiradores no seio da sua administração e o conflito em Angola
tinha abrandado de intensidade. Na verdade, Lisboa estava a desenvolver
outros laços que iriam servir de travão contra os esforços americanos de
exercer pressão sobre Portugal. Numa tentativa óbvia de espicaçar os
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CONFRONTO EM AFRICA
Estados Unidos, Portugal assinou um acordo comercial com Cuba, ao
qual Franco Nogueira se referiu informalmente como "vantajoso para
ambas as partes". Em Africa Portugal apoiava materialmente Moisés
Tshombe, líder do movimento de secessão do Katanga, uma província
rica em minerais no sul do Congo. Se Katanga fosse independente e se
aliasse a Portugal, retiraria ao MPLA e à UPA um refúgio importante a
partir do qual lançava ataques a Angola. Um Katanga independente era
também contrário aos objectivos americanos e ao objectivo da força de
manutenção da paz da ONU.
Face às pressões americanas e às críticas do terceiro mundo, Portugal
aproximou-se da França e da Alemanha. A atitude francesa para com
Portugal era influenciada pelo seu interesse político e cultural em
Portugal e pelo desejo francês de manter a África ligada à Europa e de
limitar a penetração política e económica dos americanos no continente
africano. A Alemanha compartilhava os argumentos de Portugal acerca
da ameaça do bloco comunista. Além do mais, como a Alemanha não
era membro das Nações Unidas, não era pressionada nem influenciada
pelo "terrorismo psicológico" dirigido a Portugal por outros membros
desta organização125.
Enquanto Portugal manobrava através do seu isolamento internacional,
o regime tinha cada vez mais dificuldades em manter a ordem
interna. Um golpe militar na guarnição de Beja no dia de Ano Novo de
1962 teve uma liderança desastrosa e como tal foi rapidamente
esmagado. O General Humberto Delgado, que tinha sequestrado o Santa
Maria num gesto de desafio inédito contra o regime de Salazar, tinha
regressado a Portugal via Marrocos e Espanha, para liderar o ataque.
Em vez de mobilizar diversos oficiais que estavam insatisfeitos com as
políticas de Salazar, os atacantes foram confrontados e derrotados por
tropas leais que, ao contrário do que se esperava, não ficaram
"neutras"126.
A CIA atribuiu ao PCP o crédito de "dirigir e orientar" o golpe
falhado. O PCP, encabeçado pelo advogado estalinista Álvaro Cunhal,
era o principal inimigo do regime. Os seus quase oito mil membros eram
altamente disciplinados e organizados. Apesar da vigilância opressiva
da PIDE, o PCP tinha-se infiltrado eficazmente em grupos estudantis,
de trabalhadores e intelectuais. Os restantes grupos anti-Salazar - os
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KENNEDY E SALAZAR: AFRICA E OS AÇORES
socialistas, alguns católicos e republicanos - não tinham o estatuto nem
a organização do Partido Comunista, nem eram tão eficazes na sua
oposição ao regime de Salazar e, como tal, estes grupos não tinham
problemas em colaborar com os comunistas. Isto viria a ter um enorme
impacto no período que se seguiu à queda da ditadura Salazar-Caetano.
Ao golpe de Beja falhado seguiu-se meses mais tarde uma greve
estudantil na Universidade de Lisboa. O regime de Salazar tentou
esmagá-la de imediato e a polícia ocupou a universidade. Esta acção de
força acabou por levar à demissão de Marcelo Caetano, reitor da
universidade politicamente influente e antigo ministro da Presidência,
porque achou que a sua autoridade tinha sido diminuída. A demissão de
Caetano, entre acusações de que ele era incapaz de controlar os alunos
na universidade, foi uma vergonha e outra potencial ameaça para Salazar.
Três meses após a sua demissão da universidade, a sede da CIA em
Lisboa indicou que Caetano se tinha juntado a um "grupo moderado da
oposição" do qual faziam parte um antigo Presidente da República,
Craveiro Lopes e o Ministro da Defesa demitido, Botelho Moniz. De
acordo com a CIA, o grupo tinha já escolhido um "gabinete sombra" no
qual Caetano seria o Primeiro-Ministro depois de se levar a cabo um
"golpe rápido e sem derramamento de sangue". Este plano nunca
chegou a ser executado, bem como outro que estaria a ser liderado pelo
Ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Os opositores ao regime de
Salazar eram encorajados pela ideia de que Washington veria com bons
olhos "um governo português estável mas menos reaccionário".
Naturalmente que esperavam reconhecimento diplomático imediato por
parte dos EUA assim que tomassem o poder127.
Independentemente da verdade dos vários relatórios de golpes,
Salazar reforçou a sua posição em Dezembro de 1962 ao fazer uma
remodelação governamental profunda. Entre as mudanças contou-se a
demissão do Ministro da Educação Lopes de Almeida e o Ministro do
Ultramar, Adriano Moreira, que era visto por muitos no interior do
regime como sendo "demasiado ambicioso e oportunista e independente
ao ponto de ser suspeito...". Numa avaliação à remodelação, Roger
Hilsman, director do Gabinete de Informação e Investigação, concluiu
que "Salazar poderá estar a reunir o que ele considera ser a equipa de
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CONFRONTO EM ÁFRICA
defesa-ultramar mais forte e mais fiável, a prever uma deterioração da
situação em Angola e Moçambique"128.
A análise de Hilman foi muito acertada. Eml961, Salazar disse a
Elbrickque com a independência da Tanzânia (então chamada Tanganica),
que se aproximava, ele esperava um surto de violência em Moçambique,
semelhante ao que tinha ocorrido em Angola. Na verdade, em Junho de
1962, a Frente para a Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi
criada em Dar es Salaam, a capital da Tanzânia. Sob a batuta de Eduardo
Mondlane, que tinha frequentado a universidade nos EUA e estava
numa licença do seu cargo de professor de sociologia em Syracuse, a
FRELIMO estava preparada para declarar guerra aos portugueses em
Moçambique. Em Angola a situação militar tinha chegado a um impasse.
Para o Departamento de Estado parecia "improvável que os insurgentes
angolanos ou os portugueses conseguissem resolver militarmente as
insurreições que se avizinhavam". Em ambos os territórios, bem como
na Guiné-Bissau, Portugal estava perante um futuro sombrio apesar da
imagem positiva pintada pela sua propaganda oficial; no entanto, no seio
da administração Kennedy, havia pouco incentivo para se continuarem
a debruçar activamente sobre estas tendências129.
Os Kennedys e Mondlane
Apesar das dificuldades encontradas nas Nações Unidas e em
Lisboa, os africanistas da administração Kennedy continuaram os seus
esforços para reforçar a posição americana com a causa nacionalista na
Africa portuguesa e ganharam um aliado em W. Averell Harriman, que
foi nomeado Sub-Secretário de Estado para os assuntos políticos em
Abril de 1963. Harriman, um diplomata e burocrata astuto, partilhava a
preocupação do presidente em relação a Africa e conhecia bem as
personalidades e questões do continente.
Pouco tempo depois de se tornar Sub-Secretário, Williams propôs a
Harriman um programa revitalizado para a crise que escalava na Africa
portuguesa. Williams chamou a atenção para o facto da "abordagem
suavizada" dos EUA em relação a Portugal em 1962 não ter conduzido a
uma renovação do acordo dos Açores nem a uma melhoria das condições
na África portuguesa. Williams disse a Harriman que Lisboa interpretava
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KENNEDY E SALAZAR: AFRICA E OS AÇORES
esta política como um "enfraquecimento" da posição americana, o que
só encorajava o governo português a ser mais inflexível. Aos olhos dos
estados africanos os EUA tinham feito um volte-face na sua política,
agora favorável a Portugal. O Gabinete Africano sugeria que os EUA,
de "forma discreta", incrementassem os contactos com os nacionalistas,
aumentassem a assistência à educação e aos refugiados e continuassem
a promover o diálogo entre os nacionalistas e os portugueses na ONU.
Harriman aprovou as recomendações com o assentimento relutante de
Rusk130.
O apoio de Harriman surgiu numa altura propícia. Em Fevereiro de
1963, um delegado de Williams, Wayne Fredericks, sugeriu ao
Procurador-Geral Robert F. Kennedy que talvez fosse boa ideia reunirse
com Eduardo Mondlane, o recém-eleito presidente da FRELIMO.
Fredericks sugeriu que o encontro tivesse lugar num local "neutro",
como o Metropolitan Club ou talvez em Hickory Hill, a residência dos
Kennedy. Depois da resposta positiva de Kennedy, Fredericks
lembrou-o de que Rusk proibira altos funcionários de receber dirigentes
nacionalistas. Kennedy deitou a Fredericks um olhar decidido e disse
"recebê-lo-ei no gabinete do Procurador-Geral dos Estados Unidos.
Tragam-no cá. Vai sentar-se onde estás sentado"131.
Para evitar atritos com Rusk, Bali e outros, Fredericks conseguiu que
Fritz Rarig, um empresário de Filadélfia que conhecia tanto Mondlane
como Kennedy, acompanhasse o nacionalista moçambicano na sua
reunião. Uma vez no gabinete de Kennedy, Mondlane, corpulento e
volúvel, começou a criticar o papel cada vez maior da América no
Vietname. Robert Kennedy interrompeu-o e disse que estava mais
interessado nos problemas de Moçambique. O presidente da FRELIMO
começou então a falar da situação em Moçambique e dos programas da
FRELIMO para a educação de refugiados moçambicanos. Mondlane fez
referência à "queda inevitável do domínio português" e disse que seria
"trágico" se "indiferença e ignorância" juntamente com a necessidade
expressa de "aplacar Portugal" evitassem que os EUA passassem "para
a linha da frente na luta pela liberdade"132.
No fim de uma hora de reunião, Mondlane e Kennedy tinham
estabelecido uma forte relação baseada numa visão partilhada do futuro
em Angola e Moçambique. Apesar do Procurador-Geral continuar a não
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CONFRONTO EM AFRICA
se comprometer de forma oficial em relação ao apoio americano, disse
a Mondlane que pessoalmente queria ajudá-lo a ele e à sua família.
Kennedy endossou então a Mondlane um cheque de quinhentos dólares
que havia recebido por uma palestra que tinha dado133.
Alguns dias mais tarde, Fredericks organizou uma reunião entre
Mondlane e Harriman na elegante casa de Georgetown deste último: no
fim da reunião de duas horas, ambos os homens nutriam respeito
profundo e mútuo um pelo outro. Para Mondlane as suas relações com
Kennedy e Harriman eram oportunidades preciosas para ter uma visão
mais ampla e um ponto de vista superior do funcionamento da política
externa dos EUA referente à Europa, à União Soviética e a Africa. Para
estes estadistas americanos, era uma oportunidade de interagir com um
indivíduo que achavam poder vir a ser um dos governantes africanos
mais importantes134.
A seguir à reunião com Harriman, Fredericks perguntou a Rusk e a
Bali se estariam interessados em conhecer Mondlane. Por respeito para
com a delicada opinião portuguesa, ambos recusaram. Rusk tinha
reservas acerca do "desempenho" de Mondlane e comentou que este era
uma entidade desconhecida ao passo que para Bali uma reunião desse
tipo teria pouco sentido135.
No entanto Robert Kennedy não concordou. Na sua opinião, a única
abordagem correcta à questão colonial era colocar-se do lado anti
colonialista. Seria preciso assistência encoberta caso se desejasse
manter uma relação com Portugal, enquanto se criavam novos laços
com futuros dirigentes. Da mesma forma, em Washington achava-se que
se poderia evitar a guerra nas colónias se os movimentos nacionalistas
desenvolvessem fortes estruturas políticas, organizacionais e
educativas. Isto permitiria que os movimentos se tornassem alternativas
legítimas ao governo colonial e uma força que teria de ser aceite pelos
portugueses136.
Alguns dias depois da reunião, Robert Kennedy enviou uma nota a
Mennen Williams e disse-lhe que tinha ficado "muito impressionado"
com Mondlane. O seu programa de educação parecia merecer a atenção
americana e auxílio "onde fosse possível". Cari Kaysen, assistente de
McGeorge Bundy, teve também uma reunião com Mondlane e achou
que este era "muito impressionante, sincero, inteligente" e "de diálogo
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KENNEDY E SALAZAR: AFRICA EOSA CORES
fácil". Mondlane granjeou respeito não só devido às suas capacidades
de liderança, mas também por estar prestes a trocar uma vida segura na
Universidade de Syracuse por um futuro muito incerto. Em Abril de
1963, estava a pensar-se em prestar secretamente assistência a Mondlane:
"cinquenta mil dólares para manter a gente dele quieta e ficarmos por
cima". Harriman negociou este auxílio com a administração enquanto
Kaysen assegurava a um Bali céptico de que "a gente da Agência está
inteiramente confiante de que o conseguem fazer sem levantar ondas"137.
Numa carta confidencial a Robert Kennedy, Rarig pediu veementemente
apoio secreto para Mondlane. Em retrospectiva, o seu ponto de vista é
mais interessante do que a influência que exerceu:
"O dinheiro não lhe deveria ser dado com base no pressuposto de que
podemos controlar Mondlane. Na verdade, seria um erro tentar controlá-
lo porque diminuiríamos a sua utilidade para nós. A verdade é que não o
podemos controlar; só podemos confiar nele.... O apoio a Mondlane seria
um bom investimento para nós porque o seu programa representa a maior e
única esperança para uma solução relativamente pacífica para o problema de
Moçambique"138.
No fim dessa Primavera a CIA entregou a Mondlane um subsídio de
sessenta mil dólares, através do Instituto Afro-Americano em Nova
Iorque139. A 10 de Junho de 1963 a Fundação Ford atribuiu uma bolsa
de 99.700 dólares ao Instituto Afro-Americano para ajudar a formação
de refugiados moçambicanos no Instituto de Moçambique em Dar es
Salaam140.
Este apoio monetário americano ajudou Mondlane a consolidar a
sua liderança na FRELIMO, apesar de não depender especialmente do
dinheiro. A FRELIMO recebeu ainda apoio logístico e político da
União Soviética e da China, bem como de países da Europa Oriental e
Ocidental. Durante os anos 60, a FRELIMO foi o único movimento de
libertação em África a receber apoio simultaneamente dos Estados
Unidos, da União Soviética e da China141. Ainda assim, o Gabinete
Africano do Departamento de Estado, com o apoio vital de Harriman,
Robert Kennedy e outras individualidades no NSC, fazia parte de uma
minoria cada vez mais reduzida de membros da administração que
estava preparada para aceitar os riscos de se alinhar com grupos do
futuro, por contraste com "ligações a amigos do passado".
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