OPINIÃO
Não podemos continuar a engolir um país assim, onde tudo se esquece.
Bem sei que o novo Governo é para cair já daqui a 12 dias, mas até por isso podia ter havido um pouco mais de brio na sua construção – ou um pouco mais de coragem na aceitação dos convites, porque a gente fica sem saber se este elenco de segunda divisão é uma escolha de Passos Coelho ou apenas uma inevitabilidade de contexto. Mas fosse o Governo cair daqui a 12 dias, a 12 meses ou a 12 anos, há um nome que nunca poderia constar de uma lista de ministeriáveis de uma democracia digna, responsável e madura. Refiro-me ao novo ministro da Administração Interna, João Calvão da Silva.
Há 14 milhões de razões para João Calvão da Silva não poder ser nomeado ministro, uma por cada euro que Ricardo Salgado recebeu do construtor José Guilherme. E nenhuma razão para que alguém se lembre de o pôr à frente da Administração Interna, tendo em conta que ele foi um dos dois distintos professores de Direito de Coimbra a assinar um parecer atestando a idoneidade de Ricardo Salgado para continuar à frente do BES após ter embolsado a famosa “liberalidade”.
Como se não bastasse a ideia peregrina de chamar “liberalidade” à oferta de um camião de notas, há ainda este facto a reter: José Guilherme era cliente do BESA, do qual o BES detinha então a maioria do capital – e portanto, mesmo que de forma indirecta, cliente de Salgado. Contudo, nada disso impediu Calvão da Silva de assinar um bonito parecer defendendo que a “liberalidade” havia sido apenas retribuição por um “conselho dado a título pessoal”, “fora do exercício das funções” de Salgado, e que por isso não se via “por que razão censurar a sua aceitação”.
Mas há mais. Calvão da Silva decidiu ainda adornar tão belo naco de direito português com reflexões delico-doces sobre a beleza da “entreajuda”. Escreveu o senhor professor de Coimbra: “[Este é] o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade – comum unidade – com espírito de entreajuda e solidariedade. De outro modo, ninguém estaria disponível para dar um conselho, uma recomendação ou informação a quem quer que fosse. É natural, pois, que um amigo possa e tenha gosto em dar sugestões, conselhos ou informações a outro amigo.”
Oh, sim, é muito natural. Tal como é natural, após a queda do BES, considerar esta argumentação indecorosa. Porque o que começou por ser apenas mais uma daquelas jigajogas jurídicas pagas a peso de ouro e feitas à medida do cliente a que se costumam chamar “pareceres” acabou por ganhar justa fama de escândalo público. Até porque o Banco de Portugal considerou que tais pareceres foram essenciais na manutenção da idoneidade de Ricardo Salgado (admito que possa ser apenas uma desculpa conveniente, mas foi o que Carlos Costa declarou na comissão de inquérito).
Donde, Calvão da Silva teve azar. Achou que estava apenas a ganhar uns trocos e a dar uma mãozinha a um cliente famoso e acabou envolvido no escândalo financeiro do século. É claro que não há nada de ilegal naquilo que ele fez, e a análise da qualidade e seriedade intelectual do seu parecer compete, em primeiro lugar, à sua universidade. Mas, sendo o parecer público, é óbvio que o gesto desastrado de Calvão da Silva tem uma dimensão política que não pode ser desvalorizada, quando Passos Coelho se lembra de o convidar para ministro. Nós não podemos continuar a engolir um país assim, onde tudo se esquece, nada tem peso e o encolher de ombros se transformou numa filosofia de vida.
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