OPINIÃO
Uma demonstração de senso comum vem estabelecer limites razoáveis e justos à especulação descontrolada deste tipo de capital financeiro internacional.
O ex-Presidente brasileiro Lula da Silva, uma das maiores referências políticas contemporâneas da América Latina, resumiu numa só frase o absurdo que levou a ONU, na semana passada, e a pedido da Argentina, a adoptar – com o voto a favor de 136 países e apenas seis votos contra – um conjunto de princípios básicos destinados a definir um enquadramento jurídico para os processos de reestruturação de dívidas soberanas: “Não é bom para a economia do mundo que um juiz norte-americano decida o futuro do mundo”.
Quando a Argentina entrou em incumprimento, em 2001, o seu PIB tinha caído mais de 20 por cento desde 1998, o desemprego superava os 25 por cento, a pobreza aumentava, os bancos faliam e os depositantes perdiam as suas poupanças e a dívida rondava os 160 por cento do PIB. Muitos europeus entenderão hoje do que falamos.
No entanto, após uma traumática transição política, desde 2003 o então Presidente Néstor Kirchner empreendeu um processo de reestruturação da dívida argentina que foi um dos mais complexos de que há memória, mas também um dos mais bem sucedidos. Concretizou-se em 2005 e envolveu 152 classes de títulos de dívida em sete divisas e oito jurisdições diferentes.
A Argentina completou essa reestruturação após proceder a dezenas de consultas com grupos de credores. Fê-lo sozinha, sem apoio financeiro nem enquadramento jurídico internacional que regesse o processo.
Em 2010, o país regularizou finalmente a situação de 93 por cento daquela dívida. Mas o que se passou com os restantes sete por cento? Por que não se reestruturou? Simplesmente porque não era esse o interesse dos investidores especulativos conhecidos como “fundos abutre”, protegidos neste caso por uma decisão do juiz nova-iorquino Thomas Griesa. Estes fundos atacam economias em crise comprando com dinheiro vivo títulos de dívida pública para depois recusar qualquer hipótese de acordo, já que o seu objectivo consiste em perseguir judicialmente o pagamento de 100 por cento do seu valor nominal acrescido de juros de mora.
O próprio FMI advertiu em 2011 que os fundos abutre, geralmente escondidos em paraísos fiscais, ameaçam com exigências siderais as economias em crise, e não somente em África e na América Latina. O Banco Mundial identificou pelo menos 26 fundos abutre por detrás da dívida de economias em crise que tinham aceite acordos para poderem respirar um pouco de alívio.
Assim, e apesar da oposição dos Estados Unidos, do Reino Unido, do Japão, da Alemanha, do Canadá, de Israel e com 41 abstenções, mas com o apoio decisivo do G-77 + China, a Assembleia Geral da ONU, um órgão democrático no qual a vontade de cada país vale um voto, passou uma resolução com nove princípios que serve de guia para a aprovação de um quadro de estatutos para a reestruturação ordenada e eficiente de dívidas soberanas.
Trata-se, perante a insuficiência das ferramentas existentes contra as práticas dos fundos abutre, de um primeiro – e fundamental – passo para superar a ausência de uma lei internacional de falências que, como ocorre com as empresas, contemple os Estados.
Como explicou, no interior da ONU, o Ministro da Economia argentino, Axel Kicillof, há muitos países com dívidas que superam o seu PBI anual. “Se necessitam de proceder a uma reestruturação de dívida e há apenas um único credor que se opõe e consegue que um juiz, de qualquer parte do mundo, decida a seu favor, teriam de pagar-lhe 100 por cento da dívida nas condições originais, e ainda antes que recebam os que aceitaram a reestruturação. Nessas condições, quem vai aceitar reestruturar?”.
Esses princípios incluem o direito dos estados a reestruturar a sua dívida como parte da sua política macroeconómica, a imunidade soberana contra tribunais estrangeiros e o respeito pelas maiorias qualificadas nos processos de reestruturação.
A resolução inclui também um princípio de sustentabilidade e advoga que os processos de reestruturação se completem em tempo útil e com eficácia, de forma a que não coloquem em perigo a estabilidade dos países devedores e que isso contribua para um crescimento económico inclusivo e para a estabilidade do sistema financeiro internacional.
Além disso, estabelece que os acordos aprovados por uma maioria qualificada de credores não devem ser afectados, prejudicados ou bloqueados por outros Estados ou por uma minoria de credores não representativa, mas devem antes respeitar a decisão da maioria.
Em resumo, uma demonstração de senso comum da comunidade internacional que vem estabelecer limites razoáveis e justos à especulação descontrolada deste tipo de capital financeiro internacional.
Embaixador da Argentina em Portugal. Autor do livro “Diálogos sobre Europa. Crise do Euro e recuperação do pensamento crítico” (Editorial Cambio Intelectual-Espanha)
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