segunda-feira, 1 de junho de 2015

CRISTÃOS DO MÉDIO ORIENTE: VÍTIMAS ABANDONADAS OU FERMENTO ÚTIL?

General
Luis Valença Pinto

Participar neste encontro* é-me muito agradável, tanto pessoal como intelectualmente. E naturalmente também como cristão.
Mas não deixa de constituir, para mim e sobretudo para os presentes, um desafio apreciável porque, se é um facto que, por dever de ofício e por interesse próprio, tenho dedicado atenção à temática do Médio Oriente, não é menos verdade que nunca analisei detalhadamente a problemática das comunidades cristãs da região.
Foi isso mesmo que disse ao senhor Padre João Seabra quando amavelmente me convidou. Mas ele entendeu fazer-vos correr o risco e a mim cumpre-me registar, agradecer e tentar honrar esse sinal de confiança.
A esta minha intervenção dei como título “Cristãos do Médio Oriente: vítimas abandonadas ou fermento útil?”: o meu propósito é contribuir para que melhor se responda a essa pergunta.

O Médio Oriente

No tratamento da questão há alguns pontos prévios, matriciais, que por isso me parecem de sublinhar.
O primeiro, consiste em ter presente que as dificuldades israelo-palestinianas, sendo particularmente dominantes no subconjunto Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina, são omnipresentes na totalidade da região, de algum modo se transformando em dificuldades israelo-árabes.
O segundo, é frisar o meu entendimento que, pelo menos no tempo que me atrevo a tentar antever, o chamado problema do Médio Oriente é insusceptível de uma solução, no sentido de uma solução tranquilizadoramente definitiva, e tanto quanto a História nos permite o definitivo. As suas inúmeras imbricações não o permitem.
Por essa razão, penso que aquilo a que a comunidade internacional, e sobretudo os povos e países da região, podem e devem aspirar, é à procura, à identificação e à materialização do melhor “modus vivendi” possível. Isto é, de uma mútua acomodação, assente no reconhecimento e respeito mútuos e nos critérios da Justiça, da Paz e da estabilidade e que seja suficientemente assumida e robusta para conseguir não ser interferida por atores externos. Optar por esta aproximação parece-me realista, pragmático e construtivo.
Sob esta ótica de acomodação, porventura menos ilusória, há um manifesto espaço e função para uma ação informada por valores, princípios e pelas inerentes exigências. Este é um contexto onde claramente se inscrevem e podem inscrever esforços e iniciativas conduzidas pela Santa Sé.
A enorme complexidade da problemática do Médio Oriente conduz-me a uma terceira observação, a de que, no Médio Oriente, não é provavelmente possível e certamente não é fácil agir por partes. Nenhum nó pode ser desfeito sem que se disponha de uma visão concertada e partilhada sobre como se pretende desatar todos os nós.
Uma quarta consideração tem que ver com o que antes designei como “modus vivendi“. Não será viável defini-lo sem o fazer assentar no inequívoco reconhecimento do direito à individualidade em independência e segurança tanto de israelitas como de palestinianos.
O que, no plano das soberanias políticas, só é traduzível pela existência dos Estados de Israel e da Palestina. Sendo sabido que afirmar estes dois Estados é um exercício muito difícil. Para ser simples, lembraria somente a questão da definição de fronteiras, difícil pelos antagonismos, ressentimentos e desconfianças entre ambos e que em termos contemporâneos, remontando no fundamental a 1947, foi adensada em fases posteriores, particularmente após a Guerra dos Seis Dias, de 1967, que gerou o enorme pomo de discórdia que são os designados territórios ocupados.
Acresce que uma efetiva evolução neste sentido tem que assentar em diversos pressupostos, designadamente numa visão extensamente partilhada pela comunidade internacional, no abandono por uns e por outros de práticas discriminatórias e violentas (e no Médio Oriente a violência tem tido múltiplas faces) e, obviamente, no compromisso sério e firme das partes.
Quinto aspeto, para dizer que a complexidade que a vida gerou na região leva à constatação da obrigatoriedade de excluir a ideia, em si mesma pobre, de Estados “puros”, homogéneos tanto no sentido étnico como no confessional.
A bem da Paz, Israel e a Palestina têm que se perceber e ser percebidos como entes de várias comunidades. É essa a realidade da vida social, cultural e religiosa da região. Ainda que de modo limitado, é também assim no plano económico. Urge dar correspondência a essa realidade no plano psicológico e no plano político.
No passado, em particular, no período do confronto Leste-Oeste, um enunciado deste tipo era manifestamente quimérico. Hoje, talvez possa não ser inteiramente assim.
E isto porque, apesar das muitas tensões que vemos existirem e de processos tão difíceis e perigosos, como por exemplo o da Ucrânia, vivemos um tempo em que, num registo sem precedente, valorizamos e procuramos afirmar vidas, bens e direitos. Um tempo em que a Segurança, continuando atenta às fronteiras e aos territórios, está igualmente atenta e obediente à dimensão humana, às pessoas e aos seus requisitos de dignidade, de liberdade, de Paz, segurança e estabilidade. Um tempo em que a Segurança dos indivíduos se pode sobrepor à segurança dos Estados.
É nesta visão que deve radicar a compreensão de Israel e da Palestina como Estados de diferentes comunidades. Em que minoria não quer dizer parte secundária, negligenciável ou descartável. E é aqui que, talvez, se deva encontrar o espaço legítimo e próprio para a salvaguarda e para a afirmação perene das comunidades cristãs da região. Que, naturalmente, também carecem de entender os outros desta mesma maneira.

As comunidades cristãs

Não é fácil fazer uma leitura rigorosa e atualizada do que representam, hoje, em termos demográficos, as comunidades cristãs do Médio Oriente.
Por um lado, porque tanto na sua natureza como na sua obediência religiosa, elas são múltiplas e diversas.
Com o insuficiente rigor que espero que me seja tolerado, lembraria que na cristandade da região estão a igreja católica de rito romano, igrejas particulares (ditas de sui iuris, com ritos próprios, mas em comunhão de fé e obediência com Roma)igrejas ortodoxas, protestantes e outras igrejas identicamente separadas de Roma. E recordaria que há expressões cristãs no Egito, no Iraque, em Israel, na Jordânia, no Líbano, na Palestina, na Síria e na Turquia. Isto para não nos determos num segundo arco em que se incluem a Eritreia, a Etiópia, a Índia, o Irão e o Iraque.
Por outro lado, porque nas últimas décadas elas têm sofrido um processo de emigração muito intenso e de difícil controlo demográfico, orientado em particular para a América Latina e para a América do Norte. Em anos próximos, os conflitos do Iraque, do Líbano, do Egito e da Síria acentuaram muito esta dinâmica negativa. Registe-se, por exemplo, que, no Iraque, antes eram 1,4 milhões e são agora 100.000, que, no Egito, mais de 100.00 abandonaram o país após a queda de Mubarak e as mortes e perseguições de que então foram vítimas, e que, na Síria, a situação pode ser descrita como “só não tendo saído quem ainda não o pode fazer”.
Claro que não é a expressão demográfica aquilo em que nos devemos deter. O que nos deve mobilizar é a compreensão do êxodo que se tem verificado e das suas causas.
Os cristãos têm sido cumulativamente vítimas das oposições entre judeus e muçulmanos e entre sunitas e chiitas.
Este processo é também estimulado por práticas de descriminação negativa e de coação social e psicológica, nomeadamente de iniciativa e responsabilidade israelita, frequentemente dificultando por via administrativa a prática das organizações cristãs e dos cristãos ou desenvolvendo projetos urbanísticos que impõem a demolição de zonas residenciais tradicionalmente habitadas por cristãos que assim são induzidos a partir. Há nisto um certo paralelismo com a trágica política dos colonatos.
Alguma imigração recente de cristãos originários da Etiópia, da Eritreia, das Filipinas, da Índia, da Nigéria, da Roménia, do Sudão e da Tailândia não consegue promover um reequilíbrio demográfico, além de, evidentemente, em nada poder contribuir para a correcção do processo de alienação das comunidades cristãs locais que tem fundamentado a visão intolerável, mas muito espalhada, que as comunidades cristãs do Médio Oriente estão em extinção e que não adianta tentar interromper e inverter essa tendência.
No conjunto das várias denominações, estima-se que a população católica do Médio Oriente se situe, hoje, entre os 2 e os 3 milhões de pessoas, representando cerca de 3 a 4% da população da região, sendo que, há um século, correspondia a 20%. E avalia-se que um contingente de dimensão pelo menos idêntica esteja na diáspora.
É no Egito e no Líbano que a presença cristã é mais expressiva. A igreja copta do Egito compreende cerca de 6 a 7 milhões de fiéis e no Egito há ainda aproximadamente 100 000 coptas católicos. Os cristãos maronitas libaneses ainda são hoje 1,3 milhões, havendo um efectivo análogo na diáspora.
Vivem em Israel aproximadamente 300.000 cristãos, metade autóctones e metade imigrantes, neles se contando os que habitam Jerusalém, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Na Terra Santa, os cristãos, que em 1948 representavam 28% da totalidade da população, são agora 2 a 3%. Em Jerusalém eram, em 1949,16% de toda a população, hoje são 12%, mas somente 2% autóctones.
É uma situação dolorosa e difícil de entender e muito menos de aceitar. Os cristãos têm sido literalmente uma parte esquecida e alienada de uma equação que integram de facto e por direito próprio, mas que tem vindo a ser artificialmente reduzida a israelitas e árabes.
Os cristãos não são intrusos no problema do Médio Oriente. E, seja qual for a ponderação dos diferentes efectivos em questão, também não são uma parte menor. Não há menoridade nem diferenciação quando estão em causa a dignidade, a identidade e a própria sobrevivência das pessoas.
Sob uma certa leitura, o problema colocar-se-ia diferentemente para cristãos, israelitas e palestinianos. Nessa leitura, a israelitas e palestinianos importariam as dimensões política (afirmação do Estado próprio) e religiosa, enquanto para os cristãos só a perspetiva religiosa existiria.
Talvez essa leitura, que é francamente insatisfatória, seja largamente responsável pela situação que hoje existe. Não é assim. A cristãos, judeus e muçulmanos assistem os mesmos direitos cívicos, políticos e religiosos.
É preciso não consentir que os cristãos do Médio Oriente continuem a ser discriminados e esquecidos por serem “árabes entre judeus” e “árabes cristãos entre árabes muçulmanos”. E é preciso também que deixem de ser percebidos como “parte menor da sociedade cristã”.

Uma nova via

Esta é a plataforma ética e de princípio a partir da qual se deve procurar encontrar uma nova via para a Paz e estabilidade no Médio Oriente. Sabendo que sem Justiça e Verdade não é possível que haja Paz autêntica.
Perante as animosidades e os receios existentes, não será fácil aceitar essa nova via. Mas, porventura mais importante é que é não é fácil negá-la.
Em nome da moral e do Direito e com um claro propósito político, o seu reconhecimento e sobretudo a sua afirmação e a correspondente exigência, cabem em primeiro lugar à Organização das Nações Unidas, como câmara da consciência mundial e, a essa luz, como responsável primacial pela promoção e salvaguarda da Paz e da concórdia.
Mas é indispensável que, aderindo a isso no quadro das Nações Unidas, atores com particular relevância e influência na região, como os Estados Unidos, a União Europeia, a Rússia e a Liga Árabe, informem pelo mesmo entendimento as suas práticas políticas, diplomáticas e de ajuda económica e social. E que o façam de modo exigente e sem concessões.
Isso obtido, será então mais viável conseguir que os atores locais aceitem e observem esta visão, o que necessariamente tem também que incluir o abandono de uma retórica que tende a sacralizar a violência a coberto de ideias como a de “Povo eleito” ou a de “Partido de Deus” (Hezbollah). Mas, para a materialização dessa visão, é igualmente necessária a correção das posturas de entes que têm estimulado ódios e exacerbado os medos e as dificuldades, como sejam as expressões islâmicas fundamentalistas, o Irão, os judeus ortodoxos e a comunidade judaica da América do Norte. Nesse contexto é legítimo aspirar a que as comunidades cristãs locais possam verdadeiramente ser e agir como “sal na terra e luz no mundo”.
Será a partir de uma nova abordagem deste tipo que, a meu ver, se pode esboçar com uma razoável expectativa de apoio e durabilidade um novo modus vivendi, que antes enunciei como objectivo.
Num caminho desta natureza cabe um papel ao Vaticano. Pela pastoral e pela diplomacia. Em primeiro lugar, usando a sua autoridade moral e a sua influência para afirmar critérios e princípios comuns: a Paz, os Direitos Humanos, os Direitos das Minorias, o Direito Humanitário, a Liberdade Religiosa.
Mostrando caminhos e definindo exigências. Percebendo que, no Médio Oriente, é artificial e ilusório pretender separar o religioso do político, e que talvez só por esta nova e diferente via seja possível assegurar a legítima e necessária proteção das comunidades cristãs locais, a sua plena afirmação e a sua liberdade de vida no quadro das diferentes nacionalidades a que naturalmente pertencem.
Questão muito importante é a da definição do âmbito das preocupações da Santa Sé.
Penso que, no que toca aos princípios, elas devem, com universalidade, cobrir todas as partes e, consequentemente, as diferentes expressões cristãs. E serem construídas e afirmadas no contexto das relações ecuménicas e do diálogo inter-religioso. Desejavelmente de modo ativo e explícito.
E que idêntica perspetiva deve nortear a ação vaticana tendente à protecção de Jerusalém e dos Lugares Santos.
À Santa Sé importa também um outro plano. O que de modo mais temporal, e mais diretamente ligado à Igreja de Roma, respeita à protecção e liberdade de atuação das instituições católicas locais, de que relevam as estruturas do tipo diocesano e afins, a Universidade de Belém e a Pontifícia Missão para a Palestina.
A posição da Santa Sé relativamente a Jerusalém tem que continuar a ser a de entender a cidade como um lugar de simbolismo essencial e idêntico para cristãos, judeus e muçulmanos e, portanto, uma posição de firme recusa de qualquer pretensão de exclusividade sobre Jerusalém.
Recorde-se que a Resolução 181 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, datada de 1947, e versando sobre a partilha da Palestina, define Jerusalém como um corpus separatum, que a Lei Fundamental de Israel considera que Jerusalém, “completa e unida”, é “a eterna capital de Israel” e que é lá que estão o Presidente, a sede do Governo, o Parlamento e o Supremo Tribunal israelitas e que, para os palestinianos, Jerusalém é parte integrante da Palestina, ao mesmo tempo que reivindicam controlo sobre a parte oriental da cidade.
Mas não deixe de se registar que as representações diplomáticas acreditadas em Israel, portanto também a do Vaticano, estão em Tel-Aviv, em linha com uma Resolução (478, de 1980) do Conselho de Segurança, que identicamente rejeita a interpretação expressa na Lei Básica israelita.
Como encontrei escrito com propriedade, “Jerusalém tem que ser uma cidade também com vida cristã e não um mero museu da História cristã”.
Ocorre-me a imagem de “Jerusalém, capital da Humanidade” que, com grande sentido espiritual e do simbólico, o Senhor Patriarca Latino de Jerusalém recentemente invocou.

E Portugal?

Que olhar e que conduta pode Portugal ter sobre toda esta problemática?
Acima de tudo, um posicionamento responsável, em linha com os valores que nos informam como Nação, que estão consagrados no nosso ordenamento político e jurídico e que em tudo são conformes à tese que antes enunciei.
O que deve ser assumido e praticado de modo próprio, tanto em contexto bilateral, como também no seio das organizações que integramos, nomeadamente a ONU e a União Europeia, e com grande ênfase para esta última. Agindo a favor do reconhecimento desses valores e do imperativo da sua observância concreta.
Não se trata de neutralidade ou de equidistância entre partes desavindas. Trata-se de promover valores universais a favor da Paz, da estabilidade e da harmonia no Mundo.
A natureza laica do Estado Português não deve ser pretexto para uma posição de indiferença ou afastamento perante o que se está a passar com as comunidades cristãs do Médio Oriente. Exigem-no os nossos valores civilizacionais e éticos, ao mesmo tempo que a matriz e a prática tão maioritariamente cristãs da sociedade portuguesa o estimulam.
Num terreno mais temporal é necessário que, em Portugal, se perceba que o Médio Oriente faz parte da nossa vizinhança próxima, do near abroad nacional e europeu e que, independentemente da proximidade geográfica, nele se entrecruzam linhas de tensão fundamentais do nosso tempo, designadamente, para a afirmação europeia, para as relações transatlânticas, para o relacionamento com a Rússia, para a controlo da proliferação nuclear, para a segurança energética e para a irradicação do terrorismo, questões a que, sem exceção, Portugal deve dedicar atenção e interesse.
Finalmente, é bom que em Portugal se tenha plena consciência que em todo o mundo muçulmano a questão israelo-árabe afeta decisivamente a perceção relativa a europeus e norte-americanos, o que implica que, tendo uma posição de demissão ou de omissão na temática do Medio Oriente, é ilusório pensar que se podem tecer laços fortes com os Estados do Maghreb ou do Golfo, como, a meu ver justamente, é proclamado ser pretensão e prioridade do Estado português.

Conclusão

A minha convicção é de que o esquecimento a que as comunidades cristãs do Médio Oriente têm sido votadas e o modo como têm sido negligenciados os seus mais básicos e essenciais direitos e expectativas, decorre da estreita e errada perspetiva como toda a questão do Médio Oriente tem sido encarada.
Com essa perspetiva, a única forma possível de olhar para situação dessas comunidades estará resumida à preocupação com a sua sobrevivência. O que é manifestamente injusto e insatisfatório e dificilmente as retirará da condição de parte menor e abandonada.
Isto convida a que se olhe para o Médio Oriente sob um novo ângulo, conforme à Moral e ao Direito e certamente mais virtuoso para o tratamento político de toda a problemática da região.
Acredito que nessa mutação as comunidades cristãs podem ter uma função de cidadania a desempenhar, como evidência viva das atuais perversões e insuficiências e como exemplo e estímulo de um novo caminho.


* Conferência proferida, em 14 de maio de 2014, na Universidade Católica Portuguesa, no âmbito de um seminário organizado pelo Instituto do Direito Canónico e também publicada em Forum Canonicum, Revista daquele Instituto.

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