Envolvi-me, recentemente, numa interessante discussão no mural do Honorio Isaias Massuanganhe sobre o comportamento da nossa polícia. No “post” que deu origem à discussão, o dono do mural queixava-se, com toda a razão, da falta de respeito que a nossa polícia manifesta em relação aos cidadãos. Eu próprio já escrevi várias vezes sobre o medo que tenho da nossa polícia. Já vi vários vídeos horríveis de agentes policiais a maltratarem cidadãos. O que é mais confrangedor nisto tudo, como aliás em quase tudo o resto, é que nada acontece, não se vê nenhum esforço das nossas autoridades – por exemplo, do Ministério do Interior, do Ministério da Justiça, da Procuradoria da República – no sentido de proteger o cidadão. A forma como estou a introduzir o assunto conduz, na nossa cultura de debate, a uma conclusão que muitos consideram inevitável: a polícia não presta, logo, isso justifica qualquer atitude do cidadão em relação à polícia. É o argumento do linchamento que alguns cientistas sociais explicam com recurso à ideia de que ele se justifica pela ausência (ou indiferença) do Estado.
Na verdade, na discussão aludida fiz referência a um vídeo que também circulou no “Facebook”. Mostrava um agente da polícia de trânsito a agredir um cidadão e mostrava também a retaliação desse cidadão e de um outro contra os agentes que se viram obrigados a fugir sob fortes apupos dos circundantes. Escusado será dizer que a tónica geral dos comentários era de concordância, uma concordância que se fazia com recurso ao argumento segundo o qual o povo tinha o direito de se defender contra essa gente. Qualquer semelhança com o argumento de força da Renamo contra o Estado não é mera coincidência. É documento duma sociedade que é assim mesmo de tal modo que o problema não é o Estado que permite isto, mas uma sociedade que não tem clareza sobre o que a vida num Estado de direito democrático implica. Esse é que me parece o problema. A polícia, para usar uma expressão já batida, somos nós.
Gostaria de aproveitar a efeméride que se comemora hoje para fazer uma tentativa de estruturação da discussão estabelecendo uma ponte com algumas questões relacionadas com a teoria da democracia. São duas, na verdade, ambas referentes ao que devemos fazer, como cidadãos, perante situações de injustiça. Isso requer, antes de mais nada, uma especificação do assunto. Numa sociedade democrática o desacordo é legítimo. Este desacordo, na relação entre o indivíduo e o Estado, pode assumir uma de duas formas. Ele pode assumir, primeiro, a forma de incompatibilidade na percepção do que é justo, ou não, e, segundo, a forma de incompatibilidade na interpretação do que é do interesse público, ou não. Por exemplo, a recusa tácita do Ministério da Justiça em aceitar o registo da Lambda pode suscitar a primeira forma. A Lambda pode, legitimamente, concluir que o seu direito de associação está a ser violado pelo Estado. Dito doutro modo, usa-se a maioria para negar direitos à minoria. Suponhamos, contudo, que a autorização fosse concedida e que alguns indivíduos ou grupos (religiosos sobretudo) achassem que essa autorização prejudicasse a sociedade do ponto de vista moral. Aí estaríamos perante a segunda forma onde o desacordo se legitima com recurso à protecção do interesse público, ainda que isso seja articulado por uma minoria que pensa falar em nome da maioria.
A questão, contudo, é a seguinte: que opções é que a sociedade democrática oferece a quem se sente lesado? A resposta em Moçambique é clara: no primeiro caso, a Lambda devia pegar em armas e lutar contra o Estado. Muitos têm grandes dificuldades em tirar esta conclusão porque não têm a coragem de pensar os próprios pensamentos até às últimas consequências. Muitos dos que se iriam opor a esta opção justificariam o seu posicionamento na base do argumento segundo o qual a Lambda não tem o direito de recorrer à violência porque ela não tem razão. Esta é uma parte da incoerência da nossa cultura pública que se tem revelado com profunda clareza na nossa atitude em relação à postura violenta da Renamo. No segundo caso, isto é, no caso em que uma minoria pensa agir em nome do interesse público, a resposta é a mesma. Quem não está de acordo que pegue em armas e se imponha. Espero estar a mostrar com clareza o que está errado na forma como abordamos os desafios que a democracia nos coloca e porque estes 40 anos têm sido basicamente de auto-linchamento por incoerência. Incoerente não é quem se reclama pai da democracia, por exemplo, ao mesmo tempo que revela em cada pronunciamento que faz pouco compromisso com a cultura democrática. Nem é aquele que se sente lesado pela acção da polícia e, por isso, apoia a agressão contra a polícia. Incoerente é quem perante estas situações continua a falar a linguagem da democracia ao mesmo tempo que procura justificação para uma postura essencialmente anti-democrática.
A teoria democrática prevê, porém, dois tipos de resposta profundamente ancorados na cultura deliberativa. Uma é o uso da persuasão e a outra é, claro, o uso de meios não-persuasivos – onde caberia a resposta moçambicana. O uso da persuasão consiste em discutir, apresentar argumentos, fazer recurso a todo repertório de acções que a democracia coloca ao dispor dos cidadãos para se fazerem ouvir. A Lambda, por exemplo, tem estado a fazer isto de forma excelente. Do ponto de vista argumentativo a Lambda ganhou a discussão. Quem se opõe a sua legalização não o faz mais por estar convencido da superioridade lógica dos seus argumentos. Fá-lo por pirraça e preguiça de admitir o equívoco. E, mais uma vez, a questão não é se a gente aceita ou não a condição homossexual. A questão é se um estado democrático que define o direito de associação como instrumento de participação política pode estar justificado em recusar esse direito a um grupo cujo comportamento não põe em causa nenhuma lei. No caso da Lambda está visto que ela é vítima duma grande injustiça que compromete a própria democracia.
O uso de meios não-persuasivos (esta expressão é algo curiosa, pois o que quer dizer não é que os meios não sejam persuasivos, mas sim que apostam menos no diálogo) consiste em aumentar os custos daqueles que fazem aquilo com o qual não concordamos. A desobediência civil, por exemplo, faz parte disto. O problema desta última opção, todavia, é que no fundo ela rejeita a autoridade e não contribui necessariamente para a melhoria. Por exemplo, o boicote do Parlamento feito pela Renamo inicialmente era completamente legítimo e fazia parte do que estou a chamar aqui de meios não-persuasivos. Ao fazer isso, ela rejeitou a autoridade do processo eleitoral, o que, repito, é legítimo e perfeitamente aceitável na democracia. O que não é aceitável, num contexto democrático, é ultrapassar estes limites atentado, por exemplo, contra o Estado ou tendo um líder que se vangloria de ter dado ordens aos seus homens para emboscarem as forças de defesa e segurança. Quando algo assim acontece e depois ainda aparece gente incoerente a tentar defender essa postura podemos começar a apreciar até que ponto o problema de Moçambique é menos duma polícia (ou governo) arrogante e mais duma sociedade que simplesmente não sabe o que está a defender quando fala de democracia.
Quando o agente policial se comporta mal desonra a farda que enverga. Essa farda, mais do que a pessoa que a enverga, representa aquilo que todos nós devemos defender, independentemente do que sentimos em relação ao comportamento do agente. Quando um cidadão reage violentamente contra o agente que se porta mal a vítima dessa violência não é a pessoa do agente em si, mas sim aquele uniforme que ele traz. Ao agredir o agente policial – física ou verbalmente – o cidadão está a mandar passear os valores que o uniforme representa. Enquanto isto não estiver claro na cabecinha de alguns pseudo-analistas que andam por aqui não vamos ser capazes de entender os desafios que nos são colocados por uma polícia indisciplinada e, por que não, por um governo que nem sempre é correcto na interpretação da constituição. Não basta apelar a termos como democracia, constituição, justiça e não-sei-que-mais quando o significado simbólico que esses termos têm não nos compromete com nada.
Pessoalmente já deixei de prestar atenção aos “imbecis” que levaram Umberto Eco a deplorar os efeitos nocivos destes meios de comunicação e que temos em quantidades generosas na Pérola do Índico. São dois tipos de “imbecis”. Uns são os que reproduzem tudo o que diz mal do governo e os outros são os que acenam vigorosamente a tudo o que diz mal da oposição, sobretudo da Renamo. Até existe um auto-intitulado “Movimento Anti-Renamo” que tem uma página de Facebook e cujos “posts” são partilhados por gente que me parecia decente! Esses grupos de “imbecis” são separados por uma enorme massa sem forma que basicamente repete slógans sem nenhuma preocupação em identificar os princípios que a indignação deve a todo o custo preservar. Há, claro, os outros, infelizmente poucos, que vão remando contra a maré, mas têm que perder o seu precioso tempo a tentar ajudar os “imbecis” a resolver os seus próprios problemas de incoerência.
São esses poucos aí que nos deviam dar o alento para os próximos 40 anos. Apesar de tudo.
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