Reflexões soltas1
Carlos Nuno Castel-Branco2
1. Comentários sobre alguns dos termos gerais de discussão
Na sequência da proclamação dos resultados das eleições gerais e presidências de Outubro de 2014,
oficialmente vencidas pela Frelimo e pelo seu candidato presidencial, alegando fraude eleitoral
generalizada a Renamo, segundo maior partido, reclamou o direito de nomear os governadores
provinciais das províncias onde tenha obtido mais votos que a Frelimo. A posição da Renamo foi
mudando desde as eleições, de uma recusa em aceitar os resultados e exigir novas eleições,
passando pela ameaça de dividir o país proclamando a República Democrática do Centro-Norte de
Moçambique, até chegar à fase actual de sugerir a autarcização/autonomia provincial no quadro da
constituição.
3 Em linhas gerais, a proposta actual da Renamo, parcialmente inspirada na análise
constitucional realizada pelo jurista moçambicano Gilles Cistac,
4 sugere que os governadores
provinciais passem a ser indicados pelas respectivas Assembleias.
1 Este texto resulta do desenvolvimento das notas e pontos levantados para debate pelo autor na mesa redonda sobre “O
debate da descentralização em Moçambique”, que foi conjuntamente organizada pela Fundação Rosa Luxemburg, pela
Rede Uthende – advocacia e lobby social, e pela Coincide – cidadania e desenvolvimento, e que decorreu em Maputo a 9
de Abril de 2015.
2 Coordenador do grupo de investigação sobre economia e desenvolvimento no Instituto de Estudos Sociais e Económicos
(IESE), www.iese.ac.mz, Professor Associado na Universidade Eduardo Mondlane, Investigador Associado no
Departamento de Estudos de Desenvolvimento do School of Oriental and African Studies (SOAS, Londres), Investigador
Sénior Honorário na Universidade de Manchester, membro da Academia de Ciências de Moçambique.
carlos.castelbranco@gmail.com.
3 Mantendo o princípio da soberania territorial e unidade nacional, e fazendo uso da possibilidade constitucional de se
formarem autarquias de nível superior aos municípios – a Cidade de Maputo, um município de estatuto provincial, é usada
como exemplo da viabilidade de tal proposta.
4 Gilles Cisac viria a ser assassinado na Cidade de Maputo, a 3 de Março de 2015, depois de agressivamente vilipendiado
e ameaçado nos meios de comunicação públicos, nas redes sociais por elementos aparentemente ligados às alas
agressivas e conservadoras da Frelimo, e pelo porta-voz oficial da Frelimo. Os ataques a Cistac foram feitos com base na
falsificação dos seus argumentos, no argumento de falta de oportunidade e tacto políticos das suas intervenções e no
racismo (Cistac era de origem franco-argelina). Até á conclusão destas notas, a investigação da sua morte não havia
chegado a conclusões nem sobre os motivos nem sobre os mandantes e autores do crime, embora se suspeite que o móbil
possa ter sido as suas intervenções no debate sobre as regiões autónomas, com uma proposta que ajudou a eliminar o
espectro de divisão do país mas sugeria uma plataforma constitucional para maior autonomia local, o que foi entendido,
pelas alas agressivas e conservadoras da Frelimo, como legitimação das preocupações e aspirações da Renamo.
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Este debate situa-se, parcialmente, numa tradição de tensões sobre a natureza e carácter do
poder democrático em Moçambique: entre as aspirações e expectativas das elites locais e as
aspirações hegemónicas e de omnipresença das elites da Frelimo; entre a introdução de um sistema
multipartidário e a falta de confiança e de credibilidade no sistema político e eleitoral, e o não
compromisso dos dois principais partidos com princípios básicos de pluralismo e tolerância política e
de cidadania; entre a introdução do princípio constitucional da autarcização e autonomia local e o
gradualismo na municipalização e a manutenção dos governadores provinciais como entidades
representantes do Presidente da República na província. Mais fundamentalmente, a questão parece
ser que o pluralismo político foi formalmente introduzido em Moçambique por causa da exaustão das
partes envolvidas na guerra de 16 anos e não pela adesão das partes aos princípios democráticos de
pluralismo e tolerância políticos, como argumentou o Professor Luís de Brito. Este argumento pode
explicar tanto a intolerância, a agressividade e as tendências para o autoritarismo e exclusão em
ambas as partes, como ainda o facto de que ambas reservam para si o direito exclusivo de decidir os
temas e momentos de negociação e os termos dos acordos, sem o envolvimento da sociedade mais
em geral. Assim, este debate actual parece ser viciado em torno do conflito entre as duas partes
beligerantes, a Frelimo e a Renamo, uma usando a maioria do voto e argumentos legalistas a seu
favor, e a outra fazendo recurso ao populismo de comícios públicos atendidos por multidões
impressionantes e ao espectro de nova guerra.
No entanto, a questão não é quem cede ou se ambas as partes têm razões conjunturais para
os seus argumentos, muito menos deve ser uma discussão sobre a divisão do país e partilha do poder
entre essas partes. Para ser útil, este debate deve responder a questões claramente definidas e
articuladas do ponto de vista político, económico e social. As formas que o exercício democrático do
poder adquire não são permanentes e imutáveis nem podem ser tratadas levianamente. Centralização
ou autonomia não são fins em si, nem se referem apenas a territórios mas a pessoas e às suas vidas e
formas de viver. Também não são questões puramente legais, pelo que antes das discussões técnicolegais
sobre o que os termos significam e quais são as suas limitações é necessário haver uma
compreensão política sobre os problemas a resolver e as questões que a expansão e consolidação da
democracia e da cidadania colocam.
Um dos argumentos usados para desafiar as propostas da Renamo sobre autarcização
provincial é o que avança que tais propostas são anti-constitucionais ou ilegais. Qual é a validade
deste argumento?
Primeiro, não é anti-constitucional nem ilegal fazer propostas para mudar a
constituição e a lei. Os partidos, o governo, os cidadãos têm o direito constitucional e legal de pensar e
fazer propostas sobre a organização do Estado, da Sociedade e do exercício do poder. Todos têm
direito a apresentar as suas propostas e políticas e de as ter devidamente respeitadas e consideradas
no debate colectivo sobre os caminhos a seguir como povo e como nação. No entanto, é preciso frisar
que o direito de expressão não implica obrigatoriedade de aceitação das ideias apresentadas.
Segundo, qualquer sugestão ou proposta que requeira mudanças fundamentais no status quo
tende a não estar coberta na constituição ou na lei, ou de até ir contra alguns preceitos estabelecidos.
Assim foi, por exemplo, o caso da introdução do multipartidarismo e liberdade de expressão e
associação na constituição da República de Moçambique, que, na época, violava, entre vários outros,
o princípio constitucionalmente estabelecido segundo o qual o Estado e a Sociedade eram dirigidos
pela Frelimo.
A questão de fundo é se as mudanças propostas são benéficas para a sociedade como
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um todo, ou se, mesmo que reflictam sobretudo os interesses de um grupo e não de toda a sociedade,
não entram em conflito fundamental com os acordos sociais e premissas básicas que sustentam a
existência e a vida comum do país.
Terceiro, se o tema for importante e as questões reais, o assunto terá de ser tratado com o
devido cuidado e atenção e resolvido, independentemente das querelas e jogos de força e de poder
entre diferentes grupos e forças políticas num dado momento. A questão não é a origem das propostas
e se a aceitação para debate das propostas de uma parte enfraquecem a outra. Na fase de discussão
de assuntos tão relevantes para o país, pode ser social e politicamente fundamental acolher todas as
propostas como contributos da sociedade, independentemente de quem as tenha feito e das suas
supostas motivações. Ilegitimar propostas, ideias, aspirações e expectativas por via de fraude, da
ditadura do voto maioritário, do legalismo, da manipulação da opinião pública, da ameaça das armas,
ou por qualquer outra via, não faz os problemas desaparecerem. Podem ser suprimidos por um tempo
mas voltarão, sob outras formas e com outra energia.
Outro argumento apresentado contra a proposta da Renamo é que ela surge por causa dos
compromissos e promessas políticas que o líder da Renamo terá feito a elites locais e da sua
organização para consolidar a sua posição política individual. Logo, seria uma proposta para acomodar
interesses de grupo e não para democratizar o poder. É possível e provável que assim seja, do mesmo
modo que o gradualismo adoptado pelo governo para a autarcização poderá reflectir as preocupações
de hegemonia política das elites da Frelimo, mesmo em violação do espírito constitucional de
igualdade de todos os cidadãos em todo o território nacional. Mas as questões de fundo são perceber
porque é que essa reivindicação de grupo surge dominantemente expressa em torno da autonomia
regional e local e desafio a hegemonias nacionais, seja qual for a sua forma específica, e o que a torna
tão atractiva para uma parte da sociedade e tão ameaçadora para outra parte.
Um terceiro argumento contra a proposta da Renamo sugere que autonomia local poderá
incitar ambições expansionistas de países da região sobre o território nacional.
Será que centralização
e hegemonia política fortalecerão o caso da unidade nacional e soberania territorial mais do que a
autonomização local? Será que que democratização incentiva fragmentação mais do que hegemonia e
omnipresença imposta do centro? Será que o sentimento de exclusão, causa mais frequente da
fragmentação nacional, se desenvolve mais intensamente num contexto democrático do que num
contexto autoritário? Será que a moçambicanidade só existe no contexto da omnipresença da Frelimo,
e será essa presença suficiente para manter a unidade nacional e a soberania territorial? Será a SADC
incapaz de lidar com ambições expansionistas de membros seus sobre o território de outros países
membros?
Finalmente, é também argumentado que o texto proposto pela Renamo é de má qualidade. É
bem provável que assim seja. Mas o tema, autonomia local e as causas de este assunto ser tão
importante, é produto da vida política, económica e social, pelo que é real. Há questões políticas
fundamentais a debater e acertar, assim como é preciso clarificar aspectos técnicos e legais, conceitos
e mecanismos. Esta não será a única proposta sobre este tema e, provavelmente, nenhuma proposta
será completamente consensual. Aceitar trabalhar sobre o tema e construir argumentos válidos e
consensuais para a sociedade e com a sociedade como um todo, não apenas para e com os dois
beligerantes, e fazê-lo com vontade real de resolver o problema, são as questões mais importantes.
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Neste mesmo quadro, nenhuma proposta pode ou deve ser imposta como a única alternativa,
independentemente dos seus méritos e implicações para a sociedade como um todo, ou da existência
de melhores alternativas para o país, de cuja aceitação dependa a guerra ou a paz, do mesmo modo
que nenhuma deve ser rejeitada com base no proponente ou da recusa em pensar para além dos
limites do que já esteja estabelecido. Usar a ditadura do voto maioritário ou a ameaça de pegar em
armas para derrotar adversários, em vez de analisar as questões e os temas para resolver os
problemas, será chantagem e não debate público e político. Uma acção deste género, seja de quem
for, revelará que as forças envolvidas seguem e procuram alcançar objectivos que são independentes
do bem-estar do país. Chantagem conduz a permanente instabilidade, exclusão e tensão, como uma
ferida onde a crosta tenha crescido sobre uma infecção – a prazo, será necessário remover a crosta,
reabrir a ferida, com dor acrescida, para curar a infecção.
2. Comentários sobre questões económicas e autonomia local
O processo de autonomização local pode ser induzido em função de diferentes problemáticas. Uma
pode ser a “necessidade” de acomodar e pacificar elites locais excluídas, em nome da convivência
pacífica.
Este será um processo para criar “tachos” e dar poder fictício a grupos sociais com algum tipo
de “autoridade” local, seja qual for a base dessa autoridade. Neste caso, a questão fundamental é a
forma política do processo de autonomização e o poder que esta forma política dá, informalmente, a
grupos organizados politicamente. Por exemplo, colocar o foco principal, ou, mesmo, único foco, na
nomeação dos governadores provinciais e no estatuto político-administrativo das províncias parece ser
um caso em que o fundamental é acomodar elites.
Mas a questão central do poder é sempre o seu carácter, quem o exerce, como e para fazer o
quê. Estas questões são apenas muito superficialmente tocadas quando o discurso político relaciona
directamente, sem qualquer discussão crítica real, a resolução das questões de representatividade, da
credibilidade do sistema político e eleitoral e da exclusão económica e social à autonomização
provincial com governadores escolhidos pelo partido que tenha obtido mais votos numa província (e,
naturalmente, tenha mais deputados na assembleia provincial). Se, por um lado, faz sentido que,
havendo eleições para assembleias provinciais, os governadores provinciais emerjam desse processo
político local, por outro lado reduzir o problema da autonomia a esta questão reflecte uma abordagem
míope de democracia e das questões de descentralização e empoderamento local.
Uma análise intelectual e um discurso político focados na acomodação das elites deixam de
fora questões tão vitais como a origem dessas tais elites, os processos de diferenciação e exclusão
social em curso, a legitimidade social e política tanto das aspirações das ditas elites como do seu
direito ao elitismo e acomodação política das suas expectativas nos seus termos. Reflectem, também,
uma compreensão míope da natureza e do carácter das frustrações e do conflito social relacionados
com a pobreza, a crescente desigualdade, o desemprego, a deterioração da qualidade e cobertura dos
serviços públicos, a redução das remunerações reais, a falsificação das questões de representativa
(por via da fraude, do discurso incendiário, etc.). Estas frustrações e conflitos são utilizados para
justificar a rendição da guarda, isto é, a substituição das elites que exercem poder ou de quem legitima
essas elites – uma mudança de moscas, apenas – mas se as suas causas não forem enfrentadas
podem conduzir a tsunamis sociais, como diz o Professor Carlos Serra, com várias formas, incluindo
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conflitos de natureza étnica (se, por exemplo, o discurso político focar-se no regionalismo e
legitimidade étnica como base dos problemas e, portanto, das soluções).
Uma outra perspectiva problematizará esta questão como um processo de reforço de
cidadania, em vez de acomodação de elites pela partilha do autoritarismo.
Esta forma de
problematização terá que enfrentar várias questões de fundo. Primeira, é a legitimidade e qualidade
política do processo de empoderamento local. Os resultados das eleições de Outubro de 2014 para as
Assembleias provinciais são um indicador da influência política local de vários partidos políticos, mas
nenhum desses partidos concorreu com uma agenda de governação local, ou manifesto provincial, em
parte porque as Assembleias provinciais, no contexto institucional actual em que os governadores e os
governos provinciais representam o Presidente da República e o governo central, estão deslocadas de
poder real. Num quadro institucional diferente, em que o executivo provincial emerge do processo
político e eleitoral local, então faz sentido que os partidos concorram com manifestos e pogramas
provinciais. Portanto, seja qual for o formato político e institucional que se torne consensual, a
representação política provincial tem que ser legitimada por um processo político e eleitoral local que
envolva os cidadãos na definição das suas prioridades e dos caminhos a seguir, e nos processos de
implementação e monitoria.
Segunda, um processo de devolução de poderes e reforço da cidadania envolve uma
reestruturação das relações entre os poderes central e locais, e entre o Estado e os cidadãos a vários
níveis.
Estas mudanças são frequentemente causadas por conflitos políticos, sociais e económicos
que as estruturam, lhes dão forma e as aceleram ou retardam. Por exemplo, no Reino Unido, a
administração de Margaret Thatcher usou as receitas do petróleo da Escócia parcialmente para
financiar a redução dos impostos das grandes corporações, tornando mais ricos os capitalistas
financeiros e corporativos em prejuízo do desenvolvimento alargado da Escócia. A central nuclear
Sizwell B acidentalmente derramou resíduos tóxicos que contaminaram as águas oceânicas no Norte e
na Irlanda e, quando questionada sobre o que a sua administração estaria a fazer para resolver este
problema, Thatcher limitou-se a dizer que o problema era falso. Naturalmente, este tipo de abordagem
contribuiu para o ressurgimento das pressões políticas nacionalistas para devolução dos poderes às
nações constituintes do Reino Unido e radicalizaram o debate sobre as relações entre os estados
nacionais e o establishment em Westminster. Segundo um dos seus líderes políticos nacionalistas, os
escoceses queriam a devolução e o seu próprio Parlamento porque estavam já cansados de ser
governados por regimes conservadores, servidores do capital financeiro multinacional, contra quem os
escoceses sempre votavam. Portanto, a forma como questões desta natureza são resolvidas marca o
gau de tensão e fricção que processos de devolução adquirem.
No caso moçambicano, o sentimento de injustiça criado pelas assimetrias regionais (que foram
historicamente construídas pela forma de inserção de Moçambique na economia regional na lógica
económica e política colonial) e pela percepção de fraude política e eleitoral que impede as vozes da
oposição de serem devidamente ouvidas e consideradas, pode combinar-se com as expectativas
(falsas ou não) em torno dos benefícios e custos sociais da exploração dos recursos naturais para
gerarem um forte movimento pró-autonomia mais radical. Como frequentemente acontece em casos
destes, as frustrações populares podem ser mobilizadas e orientadas para oposição a um “inimigo”
que estaria na raiz dos seus problemas, seja um poder central mal definido ou uma certa região que
seja percebida como dominante. Discursos sobre unidade nacional não resolvem estas questões
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porque o que as induz é precisamente a percepção de exclusão e injustiça política, social e económica
que, por definição, entram em conflito com o conceito de unidade. A resolução de problemas desta
natureza requer uma abordagem ampla, que, por um lado, vise o empoderamento real dos cidadãos, e
não apenas acomodação de elites, e, por outro, devolva às regiões e comunidades o poder real de
influenciar as opções sociais e económicas e gerir recursos e actividades reais.
Terceira, o que é que significa autonomia, ou seja qual for conceito usado para descrever
devolução de poderes a nível local, se não se vai limitar a criar “tachos” para acomodar elites
insatisfeitas?
Qual é o grau de devolução que é consistente com as necessidades, as possibilidades,
as capacidades e os consensos nacionais? Como será organizada a gestão dos serviços públicos, da
saúde, à educação, da energia à água e saneamento, do transporte público à segurança social? O que
acontecerá com as empresas públicas, como a EDM, os CFM e as TDM? Deverão ser reorganizadas
em ramos regionais/provinciais com autonomia de gestão? Que grau de autonomia? Qual será o papel
dos governos provinciais em questões como a construção e reabilitação de estradas e pontes, a
exploração do potencial turístico e dos recursos do subsolo, florestais e aquáticos, a protecção do
meio ambiente, o desenvolvimento de estratégias industriais e de emprego, o desenvolvimento de
políticas e planeamento do uso de terras e água, etc.? O que ficará com os ministérios do governo
central e o parlamento nacional e o que passará para os governos e assembleias provinciais?
Em 2003, a convite do governo provincial fiz uma análise dos planos estratégicos distritais em
Nampula. Esta província foi piloto na experimentação de descentralização e planificação distrital, e os
distritos recebiam cerca de US$ 4 milhões cada, por ano, do Banco Mundial ou das Nações Unidas,
em função de terem uma estratégia aprovada a nível central. De acordo com o governo provincial, os
planos distritais eram todos iguais, independentes das particularidades de cada distrito, por falta de
capacidade a nível local. A análise dos planos permitiu-me observar o seguinte.
Primeiro, todos tinham
uma parte a que chamavam caracterização da pobreza no distrito, que variava de distrito para distrito,
e onde invariavelmente eram identificadas as “faltas” que o distrito considerava serem da
responsabilidade provincial ou nacional – eram a “falta” da escola, ou do centro de saúde, ou da
estrada, ou da rede de abastecimento de água, que as autoridades distritais queriam que fossem
financiadas pelos orçamentos provinciais ou nacionais. Segundo, todos os planos tinham uma
segunda parte sobre o potencial do distrito, que variava de distrito para distrito – nuns casos o distrito
tinha potencial agrícola, noutros o seu potencial era turístico ou mineiro. Nenhum distrito havia
mencionado o corredor de Nacala como potencial de desenvolvimento. A terceira parte dos planos,
que era a estratégia distrital, invariavelmente indicava três prioridades, independentemente de quais
fossem as “características da pobreza” ou o “potencial do distrito”: agricultura familiar, saúde e
educação. Por causa desta aparente inconsistência, o governo provincial considerava que as
administrações distritais não tinham capacidade para transformar diagnóstico em estratégia, e eu fui
chamado para resolver este problema.
Depois de pensar neste problema decidi falar com as administrações distritais e ouvir delas a
lógica racional que tinha presidido à planificação. As conclusões foram bastante interessantes.
Primeiro, o Corredor de Nacala era um projecto nacional em desenvolvimento sem discussão
fundamental com as administrações distritais. Além disso, o corredor atravessava uma boa parte dos
21 distritos de Nampula, não pertencendo a nenhum, pelo que a ausência de debate estratégico entre
os níveis central, provincial e distrital sobre o corredor o deixava fora das opções de cada distrito.
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Logo, para estas administrações, este corredor não era potencial para os distritos. Segundo, as
administrações distritais não tinham voz nem qualquer tipo de poder sobre os recursos estratégicos
dos distritos, fossem eles florestas, recursos minerais ou potencial turístico. Portanto, embora tais
“recursos” fossem mencionados nos diagnósticos, eles não eram incorporados na planificação sob
responsabilidade das administrações distritais. Além disso, a razão de estes recursos serem indicados
nos diagnósticos do potencial dos distritos era garantir que a nível provincial e central as autoridades
não se esquecessem de mobilizar investidores para irem explorar tais recursos. Terceiro, como o
acesso a fundos dependia da aprovação das estratégias distritais, as administrações distritais tinham
um incentivo para formularem estratégias que fossem rapidamente aprovadas, devendo, por isso, não
ser controversas.
A percepção das administrações distritais era que o governo central, o Banco
Mundial e as Nações Unidas pensavam que as prioridades de desenvolvimento para acabar com a
pobreza deveriam ser agricultura familiar, saúde e educação, pelo que dar prioridade a esses pontos,
fossem ou não as questões chave em cada distrito, era o caminho curto para ter uma estratégia
aprovada e receber US$ 4 milhões por ano.
Dado o contexto institucional da época, os planos estratégicos distritais reflectiam elevada
capacidade das administrações distritais para lidarem com a economia política da descentralização em
Moçambique. Foi isto que eu disse ao governo provincial – não há nada errado com a capacidade
distrital pois, pelo contrário, eles tinham tomado decisões racionais e inteligentes, dado o contexto em
que funcionavam. O que precisava de análise e correcção era o contexto imposto aos distritos.
Sem devolução de poder real sobre a gestão da vida pública e social, autonomia não faz
sentido para além da criação de “tachos” políticos para um novo grupo de funcionários sem trabalho
para fazer, mas quês e outorga o estatuto de ser elite de alguma coisa.
Pouco depois da formação de
governos autónomos, as multidões que hoje enchem os comícios vão começar a reclamar sobre os
mesmos problemas – emprego, saúde, educação, transporte, habitação, expropriações de terra,
exploração de recursos locais sem benefício local, custos da energia e água, etc. – e as
administrações locais vão continuar a culpar a administração central que não lhe terá dado os poderes
para poderem tratar destas questões localmente. Portanto, sem enquadrar uma visão mais ampla do
sentido de devolução, devolução não terá sentido.
Quarta, com que recursos e capacidades contarão as províncias autónomas? Devolução
requer mais responsabilidade local e mudança das responsabilidades nacionais. Os parlamentos e as
administrações provinciais têm que adquirir capacidades de trabalho imensamente melhores para que
a devolução sirva para beneficiar a vida dos cidadãos e não apenas para evitar outra guerra a curto
prazo. A curto prazo, as administrações locais terá que ser capazes de recrutar os melhores quadros e
formar mais. Provavelmente será necessário realocar alguns dos melhores quadros do aparelho
central do estado para as administrações provinciais. A qualidade das assembleias provinciais terá que
melhorar dramaticamente, tal como será necessário um envolvimento mais intenso dos cidadãos em
geral nos assuntos públicos, desse modo mobilizando o melhor da experiência e capacidades que
existam localmente.
Devolução de poder real requer devolução de capacidades humanas e técnicas
correspondentes, bem como a aceitação de um processo de transição e aprendizagem, que
provavelmente requererá uma devolução faseada.
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Quinta, os recursos financeiros são outra questão chave. O orçamento do estado é deficitário
e não vai deixar de o ser a curto e médio prazo. O défice primário (receitas correntes menos as
despesas correntes) está a aumentar e o serviço da dívida pública está a absorver percentagens cada
vez maiores das receitas públicas. O orçamento de investimento é completamente financiado por
endividamento público e/ou ajuda externa. Além disso, as grandes empresas, mesmo as que operam
em outras províncias, têm base em Maputo, onde se localiza mais de metade da base empresarial do
país e quase metade dos bancos. Logo, Maputo é onde o grosso das receitas públicas é colectado e,
na prática, todas as províncias são fiscalmente deficitárias. De onde virão os recursos financeiros e
qual será, a curto e médio prazos, a capacidade das administrações provinciais absorverem uma
expansão significativa de recursos financeiros disponíveis?
A capacidade de absorção será relacionada com uma série de factores: os recursos
financeiros disponíveis, as capacidades humanas e técnicas das administrações e das assembleias
provinciais, a legislação que oriente o processo de devolução e o aumento das responsabilidades no
contexto da devolução.
Uma mudança das responsabilidades entre o poder central e o poder local, no contexto de
devolução, permite uma realocação de capacidades financeiras para os governos provinciais.
Actualmente, três quartos do orçamento corrente do estado são gastos pelos órgãos centrais do
estado e do governo. Se as responsabilidades destes mudarem e aumentarem as dos órgãos
provinciais autónomos, uma fatia significativamente maior destes recursos pode ser transferida para os
governos provinciais. Mas se dotações do estado forem usadas para parcialmente financiar os
orçamentos provinciais autónomos, como serão distribuídas? Deverão as receitas fiscais ser todas
colectadas nas provinciais onde as empresas e as actividades económicas e sociais ocorrem?
Deverão ser as províncias a prover a administração central com recursos, com base num modelo de
distribuição entre s níveis local e central, em vez de receberem dotações do governo central? Dadas
as enormes assimetrias regionais, o que acontecerá com as províncias mais pobres? Será a sua
pobreza relativa replicada por restrições orçamentais ou deverá haver um mecanismo de redistribuição
de recursos para minimizar as assimetrias? Como operará tal mecanismo num contexto de crescente
autonomização fiscal? Deverá ser criado um fundo específico de minimização de assimetrias, para o
qual todas as províncias contribuem de acordo com as suas capacidades e do qual recebem de acordo
com as suas necessidades? Como serão definidas as necessidades e as capacidades? Se o sistema
de dotações do orçamento central para as províncias se mantiver, pelo menos a curto e médio prazos,
como evitar que seja usado pelo partido que controla o governo central para sabotar a actividade dos
governos provinciais controlados por outros partidos políticos, como frequentemente tem acontecido
em relação aos municípios?
Como garantir que as prioridades definidas ao nível central, como as
estratégias de estradas, electrificação e exploração de recursos naturais, por exemplo, não
condicionem as possibilidades e opções dos governos autónomos locais?
Como foi mencionado, o orçamento do estado é deficitário, pelo que as províncias vão
enfrentar restrições orçamentais. Será possível aumentar as receitas fiscais e outras formas de
rendimento público sem prejudicar os grupos sociais mais desfavorecidos e as pequenas e médias
empresas? Qual será o papel das províncias na renegociação dos contratos e eliminação dos
subsídios e incentivos fiscais redundantes atribuídos a grandes empresas, na negociação das
concessões e das taxas e royalties associadas, na discussão sobre as expropriações e uso de infra-
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estrutura pública para subsidiar o capital internacional, na definição das prioridades de investimento
público, na negociação das receitas extraordinárias de capital, resultantes das transacções entre
multinacionais e entre estas e empresários nacionais, das concessões de terra, água, florestas,
hidrocarbonetos, recursos minerais e outros? A renegociação dos contratos e incentivos fiscais e das
concessões de terra e infra-estruturas pode aumentar as receitas gerais do estado em cerca de 10%.
Mas os ganhos mais substanciais poderão provir da reorientação das prioridades de investimento
público para acções que apoiem o alargamento, diversificação e articulação da base produtiva, a
substituição de importações, a produção de bens e serviços básicos a baixo custo para os cidadãos, e
a multiplicação e diversificação da base fiscal.
Sexta, o que significa autonomia local quando territórios maiores que distritos, por vezes
quase iguais a províncias, são controlados ou afectados por uma grande empresa, seja ela mineira,
florestal, de hidrocarbonetos ou em qualquer outra área de actividade? Como é que estas empresas
podem ser submetidas aos programas de desenvolvimento local e ser parte deles?
Que poder terão os
governos locais para negociar e questões fundamentais – não apenas actos de caridade e relações
públicas – com estas empresas e que poder terão para influenciar os contratos assinados entre o
governo de Moçambique e as empresas? Como é que os governos provinciais desde o início
participam nas negociações e planificação deste projectos de grande impacto ambiental, social,
económico e político?
Sétima, a economia de Moçambique é prenhe de paradoxos aparentes. Por um lado, a taxa de
crescimento do PIB é elevada e acelerou nos últimos 10 anos, para uma das mais rápidas em África e
no Mundo, e a economia nacional transformou-se numa das três mais atractivas na África ao sul do
Sahara para o capital financeiro internacional. Por outro lado, o crescimento da economia deixou de
ser capaz de reduzir pobreza, e tornou-se mais dependente do endividamento público e adquiriu uma
base mais afunilada de produção, comércio e emprego. O endividamento público é “garantido” pelas
expectativas criadas em torno dos recursos estratégicos do país, relacionados com subsídios fiscais e
investimento de redução de custos para as grandes empresas multinacionais, expropriações a baixo
custo e concessões enormes que permitem às multinacionais refinanciarem por via da especulação. O
endividamento público acelerado torna o capital mais escasso e caro para as pequenas e médias
empresas, ao mesmo tempo que absorve uma maior proporção do orçamento do estado me serviço da
dívida, tornando o estado menos capaz de prosseguir política sociais e económicas mais amplas e
abrangentes.
A absorção da foça de trabalho é feita em actividades e sectores de menor produtividade
ou de produtividade em declínio, enquanto os sectores indutores de crescimento são intensivos m
capital e geram poucos empregos. Nos sectores empregadores, o trabalho é casual ou eventual, e
pouco remunerado, com a reprodução social da força de trabalho a depender da produção de autoconsumo,
que não beneficia de suficientes fluxos financeiros para prosperar.
Este modelo económico é incapaz de resolver as frustrações das pessoas, concentra recursos
e capacidades em focos grandes mas isolados, que funcionam como enclaves, hipoteca rendimentos
futuros com dívida corrente e fomenta crescimento económico especulativo. Não faz sentido
descentralizar este modelo, que concorre para o fomento da pobreza, perda de soberania sobre os
recursos e restrições financeiras para o desenvolvimento diversificado da economia e sociedade. Este
modelo também implica que as expectativas de províncias autónomas beneficiarem substancialmente
com a hipotética bênção dos recursos naturais muito provavelmente vão ser goradas. Devolução e
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empoderamento local também significa ser capaz e discutir estas questões e o estado em que a
economia se encontra, e tomar posições que permitam alterar estes cenários. Como é que isto se faz
num contexto de maior devolução, e qual será o papel das províncias na escolha das opções de
desenvolvimento que multipliquem oportunidades para todos em vez de as limitar?
É preciso que fique claro que os grandes recursos energéticos estratégicos do país ainda não
estão a gerar rendimentos – com excepção das reservas de Pande e Temane exploradas pela Sazol, e
pouco mais –, que os potenciais fluxos de rendimento ainda estão muito distantes no tempo (daqui a
10 anos ou mais) e que parte significativa desses fluxos está já hipotecada por dívida pública ou
publicamente garantida que financia a redução dos riscos e dos custos do grande capital extractivo e
pouco mais. Portanto, a replicação deste modelo não vai permitir libertar recursos adicionais para as
províncias autónomas. O risco é gerar expectativas irrealizáveis dentro do modelo económico actual,
criando ainda mais frustração e fontes de conflito.
O debate sobre autonomização pode ser uma oportunidade ímpar para a discussão de temas
fundamentais, como a efectiva relação entre Estado e cidadão, cidadania democrática e opções
económicas, que o país precisa de ter. Estes são assuntos que afectam todos os cidadãos, e não
apenas dois partidos e dois líderes, e o debate deve ser aberto e franco, começando por identificar
onde está o país hoje no seu processo de desenvolvimento. Como dizia o grande líder dos direitos
cívicos, Martin Luther King, o momento é sempre adequado para fazer a coisa certa. A coisa certa hoje
é tratar destas questões abertamente, na sociedade em geral, com informação e debate educativo e
útil, e não com campanhas e comícios emocionais e incendiários contra ou a favor de um lado ou
outro, apenas por lealdade partidária ou manipulação de frustrações e zangas históricas.
Uma plataforma social em que o povo tem medo do futuro e os políticos têm medo do passado
não é muito útil para servir de base à construção de uma sociedade mais progressista, democrática e
cidadã. Uma sociedade em que cada ideia seja julgada em função do seu custo de oportunidade para
um partido político ou outro é doente. Entre a descentralização populista do autoritarismo e o
desenvolvimento da cidadania, a escolha sobre o objectivo e o caminho de democratização e
autonomização local parece óbvia. Será?
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